A urgente e necessária reconciliação dos partidos de origem trabalhista e anti-imperialista com suas raízes

Por Alejandro Acosta, Ricardo Guerra e Wendel Pinheiro

A ideia desse artigo surgiu a partir de uma conversa estabelecida entre eu (Ricardo Guerra) e Alejandro Acosta sobre a importância das bandeiras de luta, que nas origens eram levantadas pelo PDT e pelo PT, no sentido de mudanças favoráveis ao desenvolvimento econômico e social do país e a melhoria na qualidade de vida das pessoas:

  • Bandeiras majoritariamente orientadas pelo ideário do trabalhismo em busca de conquistas para as classes trabalhadoras e da defesa da soberania e do uso das riquezas nacionais para todos os brasileiros, destacadamente aqueles que as produzem, os trabalhadores.
  • Bandeiras que precisam urgentemente ser resgatadas sob o risco de inviabilizar-se definitivamente a possibilidade de um projeto de desenvolvimento autônomo e de decretar-se a irreversível perda da soberania pelo Brasil e o completo massacre da nação brasileira, dado o aprofundamento da crise capitalista mundial e a acelerada agressividade do imperialismo sobre nosso patrimônio, cujo principal expoente é o Povo Brasileiro.

Nesse sentido, também debatemos sobre a necessidade dos verdadeiros lutadores sociais, anti-imperialistas e revolucionários que há no PDT, no PT e em outros partidos, incluindo também os militantes sociais e independentes, priorizarem o investimento de seus esforços em busca de construir uma unidade em torno da elaboração de um Projeto de Desenvolvimento Nacional Soberano Popular, orientado a satisfazer as necessidades da maioria da população, contra os interesses dos grandes capitalistas, principalmente os vinculados à especulação financeira:

  • Um projeto que deve ser estruturado a partir de práticas e ideias que precisam emergir das suas remotas origens e necessariamente revisitar tanto o pensamento daqueles que atuaram na formação dos conceitos que deram o lastro político a esses partidos, quanto às bases que são a força e o sentido de suas lutas e sustentação.
  • Que, devido a sua importância, urgência e tamanha relevância, exige um esforço de aproximação principalmente entre os lutadores nacionalistas e anti-imperialistas do PDT e do PT, os dois mais importantes partidos com ideário estabelecidos mais proximamente daquilo que entendemos como raízes do trabalhismo.
  • E cuja perspectiva de abrangência se estenda para uma composição maior de partidos que se comprometam com os mesmos ideais.

Dessa forma, em busca da construção dos argumentos mais adequados e significativos para a elaboração deste artigo, pensamos em apresentá-lo sob a perspectiva de um olhar interno, a partir da visão de quem tem proximidade com a história dos  partidos (Ricardo Guerra e Wendel Pinheiro) e de um olhar externo, na visão de quem tem uma história de vida que se confunde com a história da luta dos trabalhadores mas não está diretamente relacionada a especificamente cada um desses partidos, apesar de conhecê-los muito bem (Alejandro Acosta).

Alejandro Acosta, da Gazeta Revolucionária e colaborador do Duplo Expresso, por sua história de vida reconhecidamente ligada à luta do povo brasileiro e dos povos latino-americanos, ficará responsável por abrir as discussões aqui estabelecidas sobre essa questão.

Wendel Pinheiro, nosso companheiro de luta e também colaborador do Duplo Expresso – com uma história de vida vinculada ao PDT e na sua atuação no campo da formação política como historiador – ficará responsável por apresentar a discussão sob uma perspectiva relacionada ao conhecimento dos processos internos vinculados ao campo de sua atuação política partidária.

E eu, que apesar de não ter uma história diretamente vinculada ao campo de atuação política partidária, tenho – enquanto militante – uma história de ligação com o PT, desde o final dos anos 1980 (no microcosmo regional aqui em Recife),  ficarei responsável por apresentar a discussão a partir dessa ótica.

Alejandro Acosta

Na minha opinião, devemos começar nossa abordagem fazendo uma reflexão sobre porque os partidos auto denominados de “esquerda” têm abandonado as bandeiras mais básicas de luta, tanto em relação aos trabalhadores, quanto à defesa do Brasil:

1. Bandeiras que eram tidas como normais no cotidiano da esquerda até a década de 1980 foram jogadas na lata do lixo e atualmente o que se percebe nesses partidos é apenas um produto da enorme pressão exercida pelo imperialismo para conter a crise mundial de 1974 e que levou à queda da União Soviética, conforme podemos perceber abaixo;

  • A esquerda foi se integrando ao denominado “neoliberalismo” de maneira tão escandalosa que hoje, após os governos do PT, abandonou qualquer bandeira básica de luta e passou a defender abertamente políticas da extrema direita apenas para conseguir votos.
  • Defender, como fez Boulos, o fortalecimento da polícia seria um escárnio há 30 anos atrás.
  • Receber dinheiro de Armínio Fraga ou Gerdau seria ainda pior.
  • Admitir Tábata Amaral ou o próprio Ciro como uma grande liderança de esquerda seria inconcebível.
  • Ir aos Estados Unidos para pedir a benção a Bush junto com a cúpula do PSDB em 2002, teria parecido algo surreal: em 1989, o PT quase entrou em crise por ter buscado como vice de Lula, o Gabeira, e depois o latifundiário Bisol.

2. É preciso detalhar um pouco essas histórias:

  • O PT, a partir de 1983, se tornou um grande partido de massas a partir da formação da CUT e do MST.
  • Os setores classistas, principalmente os que se agruparam na CUT pela base, tiveram muita força no Partido chegando a controlar a CUT de São Paulo por alguns anos e vários sindicatos importantes, além de diretórios regionais do PT.
  • Em 1987, a Articulação Sindical passou a controlar a CUT, através de muitas manobras (por exemplo, se valer de centenas de sindicatos rurais) e apoiada na relativa estabilidade do Plano Cruzado.
  • Em 1992 o então líder do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, Vicentinho, inaugurou a “nova época” do sindicalismo com as “câmaras setoriais”. Foi a antessala para o PT apoiar na prática o governo de FHC (depois de ter quebrado a greve dos petroleiros de 1995, com a participação do próprio Lula na campanha).
  • Nos governos do PT, mais de 150 mil sindicalistas foram cooptados por meio de cargos no governo ou em empresas ou órgãos públicos. O MST abandonou a luta contra o latifúndio.
  • O PSOL surgiu como um partido a partir da ruptura de 4 deputados com o PT, em 2005. A desculpa foi que o PT teria aprovado a Reforma da Previdência. A realidade era a pressão do Escândalo do Mensalão. Até porque esses mesmos militantes do PSOL tinham participado ativamente de outras “coisitas” do PT ainda piores. A já direitista Heloísa Helena apareceu como a principal liderança do PSOL da mesma maneira que hoje o é Marcelo Freixo.
  • Do antigo Partidão, o PCB, que era um partido de massas, não sobrou absolutamente nada. O constante revisionismo do PCB, desde o seu VI Congresso em 1967, e as consecutivas concessões dos comunistas do Partidão em nome da redemocratização fariam com que Luís Carlos Prestes denunciasse a descaracterização ideológica do PCB e o oportunismo dos seus dirigentes na “Carta aos Comunistas” em março de 1980, provocando uma crise aguda na organização que paulatinamente agonizaria até o liquidacionismo promovido por Roberto Freire, Salomão Malina e outras lideranças afins no seu X Congresso em 1992, onde o verdadeiro PCB se transformaria no PPS. Em suas mutações, passou da centro-esquerda para a direita a partir de 2004 e se transformaria, em 2019, no Cidadania.
  • No caso do PCdoB, a direção se formou a partir de 1979 com o retorno de João Amazonas que se juntou com os dirigentes da AP-ML (Ação Popular – Marxista Leninista), se colocou a serviço de Orestes Quércia e até 1988 expulsou os militantes revolucionários que tinham sobrado no Partido. Muitos outros tinham sido assassinados pelos militares.
  • Por sua vez, o trabalhismo brasileiro, com todas as suas singularidades e vicissitudes, teve em seu maior mérito inserir as massas no debate nacional, vislumbrando a emancipação nacional e o combate ao imperialismo estadunidense como instrumento de fortalecimento de um Estado Nacional a serviço do povo.
  • Desde as idas e vindas de Vargas, entre as suas limitações e acertos através do nacional-desenvolvimentismo e de um agressivo nacionalismo popular em seu segundo governo (1951-1954), a Carta Testamento seria o azimute pela qual os trabalhistas, através do PTB, prosseguiriam a sua luta, para além das interpretações doutrinárias promovidas por Alberto Pasqualini.
  • Um ponto de destaque é que Getúlio Vargas se suicidou para pôr fim à agressividade golpista da direita. Esse fato adiou o golpe militar em 10 anos.
  • Em agosto de 1961, a própria renúncia de Jânio Quadros à Presidência da República teve objetivos golpistas, mas o golpe foi barrado pela mobilização civil e militar – liderada pelo então governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola – conhecida como Campanha_da_Legalidade.
  • Em 1963, frente às pressões golpistas, a conturbada relação do Partido Comunista com o Governo Goulart mudou. Prestes reconheceu a força política e a importância na formação de uma Frente Única de Esquerda e definiu o alinhamento, junto com seus correligionários comunistas, ao presidente Goulart, ao deputado Brizola, ao governador de Pernambuco Miguel Arraes e outras forças como a Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), desde que fossem excluídas forças políticas de centro como o PSD.
  • A Frente Única de Esquerda foi nomeada Frente Popular e passou a governar o país, o PSD da base do governo. Mesmo sem maioria no Congresso, a Frente Popular concorreu para a realização de importantes reformas pressionando os parlamentares com mobilizações populares – comícios, greves e passeatas, entre outras ações.
  • A síntese destas lutas estaria na agenda nacional-reformista de Jango e, com a linha nacionalista-revolucionária de Brizola, onde as agendas associadas às Reformas de Base permitiriam a superação das arcaicas estruturas e a fomentação da plena justiça social. Os setores reacionários reagiram, culminando com o golpe militar ocorrido nos dias 31 de março e 1º de abril de 1964.
  • O golpe interrompeu o processo em curso, resultando em ditadura. Não casualmente, as primeiras iniciativas do governo militar foram perseguir as esquerdas, particularmente trabalhistas e comunistas, e o movimento sindical.
  • Após o Golpe Civil-Militar de 1964 e o duro ostracismo passado pelos trabalhistas, a tentativa de reconstrução do trabalhismo através da refundação do PTB seria boicotada abertamente pela ditadura, onde o TSE, à serviço dos generais, negou a sigla para o grupo de esquerda e dos trabalhistas históricos liderados por Leonel Brizola.
  • O PDT, na condição de um partido trabalhista, renovou e repaginou o legado do antigo PTB. Entretanto, com a morte de Leonel Brizola em 2004, os duros desafios para a manutenção institucional do PDT na condição de agremiação trabalhista fariam com que a organização, em vários momentos, fizesse determinadas concessões políticas em nome da manutenção da continuidade da sigla.
  • Mesmo que a presença de Ciro Gomes viesse a reoxigenar o PDT, com a vinda de novos militantes e quadros, o preconizado Projeto Nacional de Desenvolvimento (PND) está à direita da perspectiva histórica trabalhista e nacional-popular abraçada por Vargas, Jango, Brizola, Darcy, Doutel e Prestes. O combate ao imperialismo e a agenda de libertação nacional para a superação da dependência econômica do Brasil,  foram substituídos por um social-desenvolvimentismo que oscila entre a tímida social-democracia e o social-liberalismo por vezes, até à direita das teses preconizadas pelo teórico Alberto Pasqualini.

3. Temos um cenário de terra arrasada;

  • Da esquerda anterior não sobrou nada.
  • Ao mesmo tempo, há a “esquerda” oficial atual onde as direções (as que mandam) estão corrompidas até o tutano e penduradas em dossiês pelo GSI do governo Bolsonaro e o imperialismo.
  • Esses partidos não têm mais base de massas e os mecanismos para formar uma verdadeira esquerda de luta são inexistentes.
  • O próprio imperialismo confia muito pouco nessa esquerda porque sabe que ao mínimo ascenso real de massas, ela desaparecerá; tal como sempre tem acontecido.
  • O fato da Gazeta Revolucionária ter impulsionado as duas únicas greves nacionais contra o Governo Bolsonaro ou o Duplo Expresso aparecer como um importante polo de agrupamento de lutadores são também sintomas. Isso teria sido impossível até a década de 1980; inclusive até a década passada.

4. Precisa ser debatida a criação de uma nova esquerda de luta, verdadeiramente anti-imperialista, combatente, revolucionária e para isso deve-se ter eixos claros;

  • Passar pelo crivo da Navalha Expressa é muito importante porque estabelece um deslinde claro de campos.
  • Ao mesmo tempo é preciso definir um programa de luta que levante bandeiras claras para tirar o Brasil da crise, sob o ponto de vista do povo e não dos abutres capitalistas.
  • À diferença da “esquerda” moribunda atual, esse programa deve ser defendido em toda circunstância, até em eleições.
  • Há considerações organizativas também. Como por exemplo, criar mecanismos para impedir que parlamentares direitizados controlem as organizações e imponham agendas da direita sob a desculpa da “realpolitik”, se distanciando das lutas sociais estabelecendo relações promíscuas com grandes empresas e o estado e a corrupção com dinheiro público e privado.

Wendel Pinheiro

O Trabalhismo brasileiro, desde as experiências precursoras na Primeira República no movimento operário carioca e gaúcho, teria ao longo de sua história uma forte influência político-ideológica não apenas do positivismo, bem como da Doutrina Social da Igreja, das experiências administrativas da Era Vargas, da agenda nacional-reformista e popular e do próprio marxismo – principalmente através do “Prestismo” e da Teoria Marxista da Dependência.

Com a formação do PTB, decorrente do Movimento Queremista, e à luz de uma agenda pautada na justiça social, no redistributivismo e na emancipação nacional, paulatinamente os seus quadros passariam à integração do Brasil no cenário latino-americano, no decorrer dos anos 1950 para os 1960, bem como reivindicavam para si a defesa da soberania nacional e o combate intransigente ao imperialismo estadunidense, como o instrumento capaz de promover o pleno desenvolvimento nacional – com justiça social – através do papel proativo do Estado como o instrumento indutor do crescimento.

A democratização da agenda nacional-popular e o destacado papel dos sindicatos e das entidades estudantis e campesinas no Governo João Goulart (1961-1964) assustaram as elites antinacionais que, associadas aos EUA, demonizaram as Reformas de Base promovidas por Jango.

Em agosto de 1961, a renúncia de Jânio Quadros à Presidência da República tinha objetivos abertamente golpistas. O golpe foi barrado pela resistência do então governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola, que permitiu que o vice presidente da República, João Goulart, que se encontrava em viagem, retornasse ao Brasil, via Porto Alegre, e colocando em prontidão Polícia Militar gaúcha para resistir. Também havia o plano para estruturar milícias populares no caso de intervenção federal. As classes dominantes se assustaram com a possibilidade de uma guerra civil e com medo da perspectiva de fortalecer setores populares da base, recuaram.

Com o avassalador crescimento do PTB como o maior partido do país nas eleições de 1962 com 116 deputados federais, não restaria às elites e aos setores conservadores da pequena-burguesia outra alternativa senão a aposta na desestabilização do governo constitucional de Jango.

Com o Golpe Civil-Militar de 1964 e a implantação do AI-1, trabalhistas, comunistas e socialistas seriam duramente perseguidos e proscritos dos seus direitos políticos. Com o AI-2 em outubro de 1965, o PTB, assim como os demais partidos, seriam extintos. Os longos 15 anos seguintes, desde a eclosão do golpe, fariam com que os trabalhistas resistissem no Brasil ou no exílio.

Leonel Brizola se exilou no Uruguai. Desde lá ajudou a organizar a primeira guerrilha como resposta armada contra a Ditadura Militar, a Guerrilha do Caparaó. Essa guerrilha foi derrotada em 1967, mas Brizola tentou articular também a resistência a partir dos setores democráticos e de esquerda que havia no Exército.

Com a redemocratização do país e a tentativa malograda de reconstrução do PTB, o PDT seria fundado em 26 de maio de 1980, à luz da perspectiva do socialismo-democrático como o objetivo final do trabalhismo, de acordo com sua visão nacional-reformista e popular.

A democratização das agendas como os Direitos Humanos, a Educação e a valorização do trabalho em detrimento do capital estaria marcado nos governos do PDT no decorrer dos anos 1980 e 1990, com destaque à atuação de Leonel Brizola, no Rio de Janeiro, e de Alceu Collares, no Rio Grande do Sul.

Com a morte de Brizola e com a rotinização das atividades burocráticas diárias exercidas pelas lideranças em um partido carismático de esquerda, os desafios seriam grandes para a manutenção institucional da agremiação trabalhista, incluindo a presença de quadros nem sempre identificados com o trabalhismo e com a agenda nacional-popular.

Assim, ainda que o PDT viesse a contribuir de forma efetiva no Governo Lula e Dilma no Ministério do Trabalho, os desafios para o PDT voltar a pautar o seu projeto de sociedade demoraram a prosseguir, diante da prioridade da sobrevivência institucional do PDT.

Com a recente presença do Ciro, se esboçou quimericamente o ressurgimento do trabalhismo e a sua influência em setores da sociedade civil brasileira. Entretanto, as pautas evocadas por boa parte das lideranças trabalhistas estão aquém e à direita dos desafios históricos e do caráter programático do PDT, herdeiro histórico do velho PTB 1945-1965. O propalado PND, defendido por setores do PDT e por simpatizantes do “Cirismo”, não passa de uma agenda nacional-centrista que, em muito, chega a se igualar ao Plano de Metas de JK – o mesmo Juscelino que seria acusado, de forma contundente pelo historiador Caio Prado Jr, de que “jamais houve no Brasil um governo mais entreguista que o do sr. Juscelino Kubitschek”.

O desafio maior de Ciro, à luz do trabalhismo e em face do seu malabarismo tático na construção de alianças, reside em promover um projeto de emancipação nacional que agregue as massas a partir da realidade vivida e vivenciada por elas, à luz da perda de direitos sociais históricos desde o Golpe de 2016.

Há o enorme desafio de livrar o Brasil do “abraço de urso” imposto pelo imperialismo, principalmente pelo imperialismo estadunidense, que impede qualquer tentativa de desenvolvimento nacional mais ou menos sério.

Nesse ambiente a formação política de dirigentes, parlamentares, quadros, ativistas e militantes trabalhistas urge. Principalmente em face do espectro da Guerra Híbrida que assolou toda a esquerda brasileira pondo no ostracismo todos os que defendem a pauta nacional-popular.

Ricardo Guerra

Programaticamente, concordando ou não, não podemos negar que o PT surgiu ancorado em princípios e ideais pautados pela busca de justiça social: para isso (acreditava-se) a estratégia da luta política deveria se estabelecer no campo da disputa pela hegemonia ideológica. Ou seja, o Partido nasceu sob a estrutura de um ideário muito próximo dos conceitos da Social-Democracia Europeia e, inegavelmente, demonstrava uma concreta proposta para melhorar o País.

Como vivemos de esperança e fomos, vamos dizer assim, doutrinados para acreditar que eleição é sempre uma oportunidade para mudar a realidade, diante de um cenário tão adverso em termos de liberdades individuais e condições econômicas e sociais amplamente desfavoráveis, como era na época da Ditadura Militar, o PT representou uma guinada na velha política brasileira em busca de alavancar a renda, melhorar a saúde, a educação e a qualidade de vida do povo brasileiro.

Assim, com as bênçãos da ala progressista da Igreja Católica e a doutrina da Teologia da Libertação, além do aparecimento de uma nova proposta de sindicalismo – no ABC paulista – que aliava reivindicações salariais com palavras de ordem e luta pela democracia, o PT ganhou espaço nos movimentos sociais e no ambiente acadêmico e se fez presente nas trincheiras de luta pelos direitos dos brasileiros. Tomou a frente na batalha pela retomada da democracia e nesse processo de reconstrução da democracia no Brasil, após muitas batalhas – a maioria inglórias – chegou à Presidência da República, quando milhões de brasileiros perceberam, pela primeira vez, o olhar de um Governo para os mais pobres.

Mas, uma coisa é ser estilingue e outra coisa é conviver com a realidade de passar a ser a vidraça, ainda mais num país como o Brasil no qual a classe dominante não tem senso de pertencimento e é culturalmente cooptada, e cujas riquezas e patrimônios financeiros e estatais vivem submetidos a ameaça voraz do assédio e cobiça imperialistas.

Assim sendo, apesar de muitos discordarem, não tenho dúvidas que sob tais condições só é possível chegar ao poder e governar conciliando. Na minha opinião o problema não passa apenas ou principalmente por essa questão, conforme muitos insistem em apontar.

Para mim, o problema do PT se encontra no fato de ter abdicado de investir na formação política da população, quando teve a oportunidade, o que poderia ter lhe oferecido as condições históricas de romper com esse processo.

A formação política é o instrumento fundamental para que um partido obtenha e mantenha a sua solidez ideológica e é exatamente esse o cerne do problema: o PT não deu a devida e necessária atenção às bases e não trabalhou no sentido de estruturar um projeto político inclusivo e de formação de consciência de classe e, consequentemente, de consciência política.

O PT nasceu de núcleos em comunidades, nas favelas, nos  bairros, nas universidades, nos sindicatos e movimentos sociais, mas isso foi se perdendo ao longo do tempo – e o que é pior – principalmente no período no qual o Partido foi Governo.

E assim, ao invés de agir para ir se libertando do acordo com os grandes empresários nacionais e principalmente estrangeiros, representantes do imperialismo norte-americano  e verdadeiros donos do estado brasileiro, que ajudou a levar o Partido ao poder, o PT foi aprofundando e ficando cada vez mais preso aos acordos (com a direita e os representantes do imperialismo), apenas para continuar garantindo algumas migalhas para programas sociais e não tratou de investir e ampliar a organização das bases, a formação política das classes populares e a consolidação de uma ideologia de classe (conforme é possível ver no capítulo 6 de “O Doleiro”).

Sem saber sair da armadilha, que muitos acreditam nunca deveria ter entrado, o PT cedeu demais aos interesses corporativos e não foi, por exemplo, arrojado o suficiente para reverter a entrada da Petrobrás na bolsa de valores de Nova York ou sequer percebeu essa necessidade, deixando a empresa a mercê da cilada armada pelo PSDB que a submeteu às legislações imperialistas.

Aí, quando menos se esperava, a maioria dos que se beneficiaram com o poder das corporações, agora já não estavam dispostos a correr riscos caso o Partido ousasse romper seu acordo, também porque estavam engajados no propósito de desviar as atenções do Escândalo do Banestado, como parte de todo o esquema arquitetado em parceria com os seus titereiros imperialistas, foram os que primeiro e mais atacaram o Partido e trataram de escorraça-lo do poder.

É claro que o imperialismo só permite que seus representantes abram a possibilidade de conciliar, depois que estes lhes entregam o máximo possível do prometido, por eles esperado. Então, quando um grande estrago está feito e a governabilidade se apresenta como algo impossível e a situação está prestes a perder todo o controle, como aconteceu na ditadura militar e deixaram o Brasil quebrado com uma inflação de mais de 300% ao mês e com FHC após a venda de meio Brasil – a troco de nada – e um prejuízo para a Nação brasileira de US$ 281 bilhões, gastos somente com as propinas (a quantia que poderia garantir aos brasileiros um salário mínimo 15 vezes maior, durante 500 anos), abrem essa possibilidade. Tudo isso é possível ver mais detalhadamente na websérie “O Doleiro” (aquiaqui; aqui; aqui; aqui; aqui e aqui).

No entanto, e apesar de tudo disso, não tenho dúvidas de que só foi e seria possível avançar em muitos pontos nos direitos sociais e na democratização de diversas políticas públicas no país, justamente a partir dessa atuação conciliadora. Foi ela que permitiu ao PT (junto com os partidos de direita e também daqueles considerados como de centro e de esquerda) essa possibilidade. Através da conciliação, o projeto político de Estado Neocorporativista adotado pelo PT pôde ser implementado e isso não pode deixar de ser percebido do ponto de vista Trabalhista e Nacional Desenvolvimentista. 

De acordo com a ciência política europeia, o Neocorporativismo age para a transição e atenuação dos problemas do capitalismo em governos com hegemonia de partidos trabalhistas. E foi exatamente assim, auxiliando a associar empresas estratégicas ao capital de origem trabalhista (fundos de pensão) para atender suas políticas de desenvolvimento, que o PT conseguiu associar esse capital aos grandes empreendimentos nacionais e todas essas iniciativas contaram com o apoio estratégico do BNDES, sob o comando do Governo e uma orientação Social-Desenvolvimentista.

Dessa maneira, apostando em algumas  empresas, denominadas de “campeãs” e que o Governo acreditava ter mais condições de enfrentar a competição internacional – emprestando recursos e se associando a elas para dividir riscos – foi a política de Estado escolhida pelo PT o que assegurou, em grande parte, o sucesso obtido nas suas administrações, principalmente nos governos de Lula e no primeiro governo de Dilma.

Essa política levou o País a alcançar relativa autonomia em financiamento e é possível de ser visualizada nos avanços tecnológicos obtidos em algumas áreas como na indústria extrativa, aérea e agricultura no cerrado e até em grandes obras estruturais como na construção da Usina de Belo Monte, mas não teve força suficiente para conseguir dar um enfoque na indústria de transformação, que exige um processo mais longo para se realizar e mais recursos, o que – de forma alguma – não poderia ter deixado de ser priorizado junto com o investimento em desenvolvimento de tecnologias de ponta.

Além disso, ao não priorizar a organização pela base, nos locais de trabalho, nas comunidades, nas universidades, etc, o PT permitiu que o eleitorado fosse se desgarrando e ficando à disposição para manipulações que o aproximou de lideranças – muito bem escolhidas e inseridas neste novo contexto – com uma narrativa e abordagem que leva as pessoas a acreditarem que o melhor caminho a ser seguido é a busca por saídas individuais e não coletivas.

As igrejas neopentecostais e as milícias foram avançando e ocupando o espaço deixado pelos movimentos sociais e o Partido agora já não sabe como chegar e o que falar para esse eleitorado individualista.

Sem militância de base e dominado por uma estrutura burocrática dos infernos, o PT, quase que exclusivamente apegado às lutas dos movimentos identitários e preocupado com eleições, deixou de confrontar a agenda de destruição da plutocracia, sobretudo da agenda de destruição neoliberal, e quedou paralizado pensando com a preservação da governabilidade, o que o levou, entre outras coisas, a tomar a decisão estrategicamente errada de não investigar quaisquer casos de corrupção sob os Tucanos: um verdadeiro vale tudo para poder governar.

Assim, muito mais do que ir perdendo o poder, o PT foi perdendo essência – trocando os militantes e o protagonismo dos trabalhadores e dos intelectuais orgânicos por burocratas, contexto no qual abriu suas portas para a possibilidade de mais fácil ocorrência de infiltrados e de infiltração. Dessa forma, foi ficando sem possibilidade de reação e a ver passar boi e passar boiada, praticamente aniquilado e perdido, sem saber o que fazer: enquanto os interesses nacionais, populares e democráticos do povo brasileiro foram e continuam sendo submetidos a um forte e jamais visto ataque.

A plutocracia, apesar de todos os ganhos que obteve nos Governos do PT, deu as costas ao Partido, o que era de se esperar – afinal de contas – essa é a sua natureza. Ao PT, então, na visão de seus autênticos correligionários, até mesmo aqueles posicionados menos à esquerda dentro do Partido, apenas resta a alternativa de se reaproximar daqueles pelos quais – na sua origem – se qualificou para defender os interesses e deu esperanças de uma nova realidade: voltar às origens e reconstruir o Partido a partir do que foi grande parte da sua história, com o foco na construção de um projeto que reedite sua credibilidade aos olhos do povo pobre e reafirme o seu compromisso com o interesse Nacional e Popular.

Para tanto, enquanto maior partido de esquerda do Brasil, da América Latina e provavelmente do mundo, o PT precisa se assumir como tal. Não pode se conformar em ser o novo MDB da ditadura (uma oposição moderada, frágil e consentida) e tem que deixar de pensar prioritariamente em eleições e, sim, pensar exclusivamente em liderar o Povo brasileiro na luta que realmente interessa: o enfrentamento à plutocracia e ao seu projeto de destruição neoliberal a serviço dos interesses imperialistas, sem permitir qualquer condição contrária a isso.

Isso significa dizer, dedicar-se incansável e invariavelmente à construção de um Projeto de Desenvolvimento e Integração Nacional Popular e Soberano, o que incondicionalmente exige o expurgo dos quadros do Partido de qualquer um que se posicione ou faça qualquer movimento contrário à Soberania Nacional, seja por convicção, “incentivos” ou chantagens.

Mas, como a realidade agora é outra e no contexto da crise capitalista atual não existem mais margens para as políticas que foram aplicadas no passado – elas ficaram super estreitas com o imperialismo conseguindo impor, cada vez mais, o massacre total – as perguntas que ficam são: o que fazer? Como fazer? E qual deve ser a saída?

Esse será o tema tratado num próximo artigo, cuja abordagem passa necessariamente pelo alinhamento político, não só entre o PDT e o PT, mas também entre estes e os demais partidos autodenominados de esquerda, para a definição de critérios, estratégias e ações em busca de uma base comum para a construção do Projeto Soberano de Desenvolvimento Nacional e Popular para o Brasil com foco em satisfazer as necessidades da ampla maioria da população.

Outra opção seria fazer a escolha pelo ingresso nas fileiras de um movimento (formatado e reivindicado pelo PSOL) que afirma a necessidade de um novo radicalismo político de esquerda no Brasil e aposta na organização da militância política não apenas como ideia, mas também como força material dentro do movimento dos trabalhadores, do movimento estudantil e dos partidos em prol da Revolução Brasileira.

Mas esse é um outro debate e ficará para outra oportunidade, até porque hoje o domínio do PSOL está sob a ala mais à direita do Partido e que (agora) conta com o apoio preferencial dos setores mais pró-imperialistas e age em prol da legalidade, conforme ficou muito claro a partir das eleições de 2018 e pode ser percebido no artigo escrito por Romulus Maya: “Cui Bono? Quem matou Marielle Franco?”.

__________________

Siga o Duplo Expresso em várias plataformas:

Canal do DE no Telegram

Grupo de discussão no Telegram

Canal Duplo Expresso no YouTube

Romulus Maya no Twitter

Duplo Expresso no Twitter

Romulus Maya no Facebook

Duplo Expresso no Facebook

Romulus Maya no Linkedin

Romulus Maya no Mastodon

Grupo da Página do DE no Facebook

Romulus Maya no Instagram

Romulus Maya no VK

Duplo Expresso no Twitch

Áudios do programa no Soundcloud

Áudios no Spotify

Áudios na Rádio Expressa

Link para doação pelo Patreon

Link para doação pela Vakinha

https://twitter.com/romulusmaya

Facebook Comments

Redação D.E.

Redação do Duplo Expresso - onde "a verdade chega primeiro". Bem... às vezes primeiro, segundo, terceiro e... último! Único! rs

Redação D.E. tem 1649 posts e contando. Ver todos os posts de Redação D.E.