O problema com a Jacobin no Brasil

Por Lise Ma

A revista Jacobin e sua filial brasileira são projetos na linha do que pode se considerar um renascimento/redescobrimento do Marxismo, direcionados à conscientização das classes médias sobre a extensão das grandes desigualdades atuais. Na prática, a revista soa mais como uma convocação à classes médias ascendentes (ou, aspirantes às mesmas) à liderança no processo de conscientização da classe trabalhadora. Posição de liderança essa caracterizada não como algo necessariamente quisto ou imposto pela classe média, mas como algo essencialmente ‘nato’, quase um ‘fardo’; como se o ‘direito de liderança’ lhes fosse outorgado por conta de uma vocação como educador-a ou orador-a, ou como o famoso ‘multiplicador político.’ Imagina, essa posição de liderança sempre ‘calha’ em bater com uma certa posição socioeconômica/profissional/racial/de gênero.

Parágrafo importante sobre a revista Jacobin no site liberal da Vox: falando a mesma lingua, argumentos nos mesmos termos

Pra resumir em bom e curto inglês, a revolução à esquerda, representada pela Jacobin, que se diz contra neoliberais, é feita, na prática, como um ‘top down approach with a trickle down effect’ – repetindo, mesmo se ela alega ser a favor de um cenário hipotético onde movimentos de base lideram suas questões de formas autônomas, igualitárias, com uma compatibilidade de recursos e com processos dignos de uma democracia direta. Isso não é um detalhe, é uma importante distinção sobre prática e discurso: é a premissa de uma agenda política na qual existe, no fundo, uma diferença crucial entre líderes e àqueles que devem ser educado(a)s. Os oprimidos tendem a ser aqui lidos como revolucionários em potencial – potencialidade que só pode ser exteriorizada através do contato com um líder ou formação política suficiente. De preferência, líderes formados em Ivy leagues ou formação política feita com base de um syllabus do complexo acadêmico industrial.

O que tem acontecido no seio da esquerda estadunidense tem sido importado pro Brasil – o que em si, não é nenhuma novidade. E por que não, já que há tempos compramos o modelo de líder, o papo de representatividade liberal, por que não termos literalmente a mesma formação e os mesmos meios de comunicação que a esquerda norte-americana possui? Essa Americanização de partidos, sindicatos e movimentos sociais na construção da Nova Esquerda, observada por outros cientistas sociais como na tese de doutorado de Regini Zornetta, não costuma ter como horizonte a emancipação popular, principalmente no que diz respeito à América Latina.

No primeiro episodio da Radio Jacobina, o podcast da revista Jacobin Brasil, o complexo Jacobin é descrito da seguinte forma:

“Em poucos anos, a iniciativa se tornou um sucesso editorial. Em 2011, saiu o primeiro volume impresso pouco antes do Occupy Wall Street. Em 2015, a revista foi pro mainstream com a campanha do Bernie Sanders que tornou o público americano mais curioso à respeito do socialismo. Inclusive, tem ajudado a revitalizar o DSA, os Socialistas Democráticos da América, que, em 2 anos, passaram de 5000 filiados a 55000 filiados. Noam Chomsky disse que a aparição da Jacobin foi uma luz brilhante em tempos sombrios e a VOX, uma publicação liberal, chamou-a de “a mais vibrante publicação socialista em um longo tempo.” Hoje, a revista conta com edição de mais de 40.000 exemplares com cerca de 30.000 assinaturas e 1 milhão de acessos mensais no site. E está se espalhando. Comprou e reformou a Tribune recentemente – a revista clássica da esquerda trabalhista na Inglaterra-, lançou uma publicação também impressa na Itália e está a caminho também de uma publicação na Alemanha. E a próxima parada desse trem socialista é o Brasil.”

Na realidade, estamos vivendo o momento onde a revista Jacobin vira uma multinacional à esquerda, com franchises espalhadas pelo mundo, o que funciona, como Sunkara admite na entrevista com a Columbia Journalism Review, como uma estratégia de expansão frente à grande segmentação do mercado midiático digital estadunidense.

O editor-chefe da Jacobin, Bhaskar Sunkara, celebrando o sucesso de sua multinacional.

Ao lado da esquerda radical brasileira, essa permissividade representa um grande perigo: nada é criado no seio da esquerda brasileira, tudo se copia tal e qual a versão norte-americana; o site, o material impresso e, porque não, a mesma linha gráfica. Como que por ironia histórica, o logo da revista, Toussaint L’Ouverture, um Jacobin negro e líder da Revolução Haitiana, o mesmo logo que nasce num meio elitista branco estadunidense, encontra-se agora num país de maioria negra, sendo trazido ao país por uma professora branca, montando uma revista cujo corpo editorial muito provavelmente não corresponde à proporção de PPI (pretos, pardos e indígenas) do país. Relembra-se aqui, ponto feito também na resenha do livro de Sunkara na MLR, o desinteresse da versão norte-americana em propagar o pensamento de movimentos sociais radicais Negros Americanos e Indígenas Latino-Americanos, assim como da classe trabalhadora excluída da academia. A página brasileira, servindo como franchise de republicação de textos da versão norte-americana, e possuindo seu próprio podcast, pergunta-se: herdará a versão brasileira do original US a política de evitamento de um paradigma racial, de pensamentos do Sul global e até da emancipação da classe trabalhadora por si mesma?

Pra entender melhor o escopo da crítica aqui feita, a gente precisa entender exatamente o que a revista Jacobin representa como meio de articulação para uma idéia de socialismo conforme ao meio neoliberal. Em dominando o discurso, ela apaga ou invisibiliza círculos da esquerda radical norte-americana. Revendo os argumentos de vários autores escrevendo sobre a Jacobin, as críticas mais importantes parecem ser duas: o fato da revista ser fraca em seu anti-imperialismo e demonstrar uma tendência de impedir o protagonismo de movimentos negro estadunidense e de outros movimentos concretamente radicais, cujas aspirações não são a da mera gestão da classe trabalhadora. Isso não quer dizer que a revista não lance, vez ou outra, textos de intelectuais negros importantes, como Adolph Reed e Cedric Johnson, com críticas importantes ao identitarismo liberal.

No geral, a revista é acusada de fazer um tango com as seções mais neoliberais da esquerda ligadas ao Partido Democrata, criando o enquadramento do debate entre duas alas da esquerda institucionalizada no partido, sendo uma radical e outra moderada, fingindo que estas apresentam opiniões antagônicas. Jacobin e os círculos da DSA pregam estratégias de implosão do sistema por dentro/explosão por fora, uma aproximação com o Partido democrata, ao invés da estratégia de se formar um terceiro partido, “o que fora rejeitado por gerações de socialistas americanxs antes deles”, segundo Nathaniel Flakin, na revista alemã ‘Análise e Crítica’. Não por nada, a Jacobin é aclamada por liberais como tendo contribuído para o maior poder do Partido, centralizando o foco da esquerda neste. Ouso dizer, algo típico de uma defesa da democracia social.

Bhaskar Sunkara, o ex-vice-presidente do partido Socialistas Democráticos da América (DSA) e criador da magazine Jacobin, oferece ao sistema a cultural commodity de seu tempo e para sua geração: uma versão da esquerda que se diz radical (num antagonismo com conservadores e esquerdistas mais visivelmente em favor do poder institucional), mas que mantém uma âncora nos mesmos círculos de graduados de colégios liberais e universidades das elites costais e no coração do imperialismo estadunidense. Esta procura manter também as mesmas práticas de aceitação social, referências, habitus, entendimento político e consumo tecnológico, ainda que divirjam de vozes conservadores, formadas nas mesmas escolas.

Pra discutir o que é a Jacobin, eu utilizo a mesma analogia usada por Joseph Kishore no seu excelente artigo sobre o editor chefe da revista, que seria, segundo este, “um líder socialista ideal para investidores liberais, acadêmicos bem pagos e com estabilidade profissional, e outras camadas das classe média alta e afluente que acreditam sinceramente que um pouco do dinheiro correndo no ápice da sociedade capitalista deveria ser distribuído de forma mais igualitária entre estes que caem entre os 90 e 99 por cento da pirâmide (…) sem infligir dano irreparável ao sistema capitalista.” Trata-se de uma esquerda radical que eu chamaria aqui de salonfähig (uma esquerda que entra nos salões da corte, mesmo quando de passagem). Isso, a gente percebe lendo a conversa de Sunkara no site liberal VOX, a entrevista do Bhaskar Sunkara com o infame jornal pro-complexo militar New York Times e o perfil do sucesso da revista Jacobin pela igualmente infame de elitista da Columbia Journalism Review.

O que Kishore ignora em sua análise é exatamente esse aspecto apresentado no primeiro episódio da Rádio Jacobina como algo a se orgulhar: A internacionalização da revista norte-americana – agora presente no Brasil, na Itália, na Inglaterra e com grupos de estudo na Alemanha. Numa entrevista com Sunkara, fica claro que a linha editorial aparenta ter o intuito de desmantelar o imperialismo através do reforço da frágil constituição de círculos socialistas nos Estados Unidos. Isso deliberadamente põe análises de contribuições e práticas fora dos EUA e, de alguma maneira, do complexo militar-econômico intervencionista estadunidense em segundo plano.

Dito isso, ela não se esquece de ver a esquerda de outros países como uma possível audiência consumerista para essa determinada variante da prática socialista, e ponte pra aquisição de novos mercados político-culturais (sem deixar de ‘flexibilizar’ salários, diga-se de passagem). A exportação da Jacobin

e o fato da esquerda burguesa e liberal de outros países cair nesse discurso, demonstra que relações neocoloniais na mentalidade da esquerda brasileira estão alive and well, mesmo esta sendo economicamente empoderada o suficiente para adotar concomitantemente uma posição contrária ao fascismo nacional e à hegemonia estadunidense, em prol do revigoramento de referências nacionais e de outros países do Sul global. A presença da revista em países em situação de crise profunda, como a Itália e o Brasil, exemplifica – mais do que um “retorno ao debate sobre a classe” – que as esquerdas mundiais estão muito ocupadas em agir conforme as práticas da esquerda norte-americana, tirando o foco das novas relações de exploração e expansionismo internacional da plutocracia americana. Exemplifica também o quanto as esquerdas mundiais permanecem subvalorizadas aos olhos das esquerdas centrais, que necessitam de ‘editores regionais’ e socialistas profissionais na construção da dita solidariedade internacional – enquanto a premissa reinante é que o socialismo só chegará a sua maturidade e emancipação no Sul Global após o fortalecimento da esquerda americana.

Isso implica que a esquerda norte-americana não tem muito o que aprender com as esquerdas periféricas e ignora toda a história de resistência da esquerda no Terceiro Mundo apesar de toda a história da intervenção estadunidense e complacência, impotência ou inércia de sua esquerda. Cito aqui o autor da resenha do livro de Sunkara no Marxist Left Review, sua ironia na leitura das conclusões feitas no livro é quase óbvia, mas necessária de se repetir: “O Socialismo será legislado pela Casa Branca. O Estado que passou o último século fisicamente destruindo movimentos populares ao redor do mundo, inclusive dentro de suas próprias fronteiras, nós esperamos que ele por fim vai desistir.”

Enquanto esquerdas mundiais pensam mais no alinhamento teórico ao que acontece dentro da esquerda norte-americana, a crítica necessária ao papel imperial do complexo militar estadunidense que catapulta administrações ao redor do mundo e financia a arquitetura de tais processos – como no caso brasileiro do MBL, da Lava Jato, mas também da Fundação Henrique Cardoso e da ONG Novas Cidades, essas últimas financiadas pelo think tank republicano National Endowment for Democracy (NED) – torna-se secundária. Se Sunkara realmente defendesse o socialismo no coração do sistema, ao invés de revisitar teorias e exemplos da democracia social alemã com uma interpretação errônea da mesma e uma omissão de suas consequências, segundo Nathaniel Flakin e a resenha de seu livro na Marxist Left Review, ele necessariamente precisaria revisitar (como elemento central informando sua política) a história recente da política externa das Américas (vide América Central, Vietnam e outros conflitos durante a Guerra Fria), e até da intervenção americana na Síria. Infelizmente, não é isso que o editor da Jacobin pretende fazer, nem em seu livro, como denota o autor Frank Guan, nem no controle da linha editorial da Jacobin, que acabou publicando diversos artigos pro-intervenção americana na Síria, fenômeno visto por muitos (Will Morrow do Global Research Canadá, Ben Norton e Max Blumenthal do The Gray Zone ). Na verdade, até artigos abertamente pró- ou revisionistas do imperialismo estadunidense na América Latina a Jacobin já publicou.

Não faltava mais nada.

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