Presidência Democrata: O Retorno da Bolha Assassina

Por Pepe Escobar, Asia Times (29/10/2020)

O que acontece dia 3 de novembro? Como o replay maior que a vida do famoso adágio hollywoodiano: “Ninguém conhece todos os fatos.”

A estratégia dos Democratas é clara como cristal, disseminando para todos os cantos o jogo de cenários eleitorais reunidos no Transition Integrity Project (Projeto Integridade da Transição), e ainda mais claramente explicitado por um dos co-fundadores do projeto TIP, professor de Direito da Georgetown University.

Hillary Clinton, já disse sem meias palavras: Democratas devem retomar a Casa Branca por qualquer meio e em quaisquer circunstâncias. E, por via das dúvidas, já se posicionou para emprego cobiçado por muitos, com artigo de 5 mil palavras.

Assim como os Democratas já disseram claramente que jamais aceitarão vitória de Trump, o contragolpe trumpista foi Trump clássico: disse aos Proud Boys[1] que “fiquem de longe”, tipo ‘sem violência por enquanto’ – mas, crucialmente, “fiquem de longe”, tipo ‘estejam preparados’.

O cenário está montado para Mayhem [Dia de Caos, 1917] padrão Kill Bill dia 3 de novembro, e dali em diante.

Say it ain’t so, Joe [Diga que não é verdade, Joe]

Seguindo pistas do TIP, encenemos um retorno dos Democratas à Casa Branca – com a possibilidade de uma presidenta Kamala assumir antes do que se supõe. Significa, em essência, O Retorno da Bolha Assassina.

O presidente Trump chama de “o pântano”. O ex-vice Conselheiro de Segurança de Obama Ben Rhodes – sujeito medíocre – pelo menos cunhou o termo “A Bolha” (“Blob”), mais engraçado, aplicado à gangue incestuosa da política exterior de Washington, DC, think tanks, academia, jornalões (do Washington Post ao New York Times), e à revista Foreign Affair, aquela Bíblia não oficial.

Presidência dos Democratas, terá de enfrentar, imediatamente, as implicações de duas guerras: da Guerra Fria 2.0 contra a China, e da interminável Guerra Global ao Terror (GGT) de um trilhão de dólares, rebatizada pelo governo Obama-Biden como Operações de Contingência Além-mar, ing. OCO (Overseas Contingency Operations).

Biden passou a integrar a Comissão de Relações Exteriores do Senado em 1997, e assumiu a presidência em 2001-2003 e novamente em 2007-2009. Desfilou como assumido líder de torcida pró guerra do Iraque – que seria necessária, dizia ele, como parte da GGT – e até defendeu uma “partição soft do Iraque, o que ferozes nacionalistas, sunitas e xiitas, de Bagdá a Basra, jamais perdoarão.

As realizações geopolíticas de Obama-Biden incluem uma guerra de drones, ou diplomacia de mísseis Hellfire, complementada por “listas de matar”; o fracassado ‘levante’ [surge] afegão; a “libertação” da Líbia ‘pela retaguarda’, que converteu o país em terra de ninguém, devastada por milícias; a guerra por procuração na Síria combatida com “rebeldes moderados”; e outra vez liderando pela retaguarda, a destruição do Iêmen, orquestrada pelos sauditas.

Dezenas de milhões de brasileiros tampouco esquecerão que Obama-Biden legitimaram a espionagem pela Agência de Segurança Nacional dos EUA e o uso de táticas de Guerra Híbrida que levaram ao impeachment da presidente Dilma Rousseff, à neutralização do ex-presidente Lula e à evisceração da economia brasileira pelas elites compradoras.

Dentre seus seletos antigos interlocutores, Biden conta com o belicista e ex-secretário-geral da OTAN, Anders Fogh Rasmussen – que supervisionou a destruição da Líbia – e com John Negroponte, que “organizou” os Contras na Nicarágua e depois “supervisionou” o ISIS/Daech no Iraque –, elemento crucial da estratégia de Rumsfeld/Cebrowski, de instrumentalizar jihadis para fazer o trabalho sujo do império.

É seguro apostar em que um governo Biden-Harris supervisionará uma expansão de facto da OTAN para abocanhar partes da América Latina, da África e do Pacífico, agradando, assim, a Bolha Atlanticista.

Em contraste com isso, dois acontecimentos  ‘redentores’  quase certos serão a volta dos EUA ao ‘tratado nuclear iraniano’, oficialmente, JCPOA, único feito positivo da política exterior de Obama-Biden; e a reabertura de negociações com a Rússia para o desarmamento nuclear. Implicaria conter a Rússia, não alguma nova Guerra Fria total, ainda que Biden tenha destacado recentemente, on the record, que a Rússia seria “a maior ameaça” aos EUA.

Kamala, a falsa, ‘tá com tudo’

Kamala Harris começou a ser cevada para ascender ao topo  já no verão de 2017. Como se poderia adivinhar, é totalmente a favor de Israel – no que copia Nancy Pelosi (“se esse Capitólio desabasse em cacos, a única coisa que permaneceria é nosso compromisso em  ajudar… E nem digo ajuda, digo, nossa cooperação com Israel”).

Kamala é da linha duríssima contra Rússia e Coreia do Norte; não assina projeto de lei para impedir guerra contra a Venezuela e, novamente, contra a Coreia do Norte. Pode-se declará-la, harpia Democrata[2] da linha mais dura.

Mesmo assim, o posicionamento de Kamala é bem esperto,   para atingir dois diferentes grupos. É perfeitamente adequado À Bolha Assassina, mas com toques ‘modernos’, de ‘politicamente correto’[3] (tênis ‘descolados’, muito divulgado afeto pelo hip hop). E , como prêmio extra, tem conexão direta com a gangue dos “Trump Nunca”.Os Republicanos “Trump Nunca” – operantes especialmente na Think-tankelândia – infiltraram-se completamente na matrix Democrata. São matéria-prima da Bolha Assassina. O neoconservador super Trump-Nunca consumado é Robert Kagan, marido da distribuidora de sanduíches em Maidan, Victoria “F*da-se a União Europeia” Nuland; daí que piada corrente em várias partes da Ásia Ocidental, já há anos, fale do “Kaganato de Nulandistão”.

Kagan, autoglorificado e autoidolatrado como star dos intelectuais conservadores, é, claro, um dos co-fundadores do Project for the New American Century (PNAC), temido projeto neoconservador. Subsequentemente, foi traduzido em espalhafatosa dança de líder de torcida a favor da guerra contra o Iraque. Obama leu com encantamento os livros de Kagan. Claro que Kagan apoiou empenhadamente Hillary, em 2016. Desnecessário acrescentar que neoconservadores da cepa dos Kagans são doentiamente anti-Irã.

No front do dinheiro, há o Lincoln Project, montado ano passado por uma gangue de ex e atuais estrategistas Republicanos, muito próximos, dentre outros, de estrelas da Bolha Assassina como Bush Pai e Dick Cheney. Um punhado de bilionários doaram festivamente para esse super-PAC, inclusive o herdeiro de J. Paul Getty, Gordon Getty, o herdeiro do império de hotéis Hyatt, John Pritzker, e a herdeira da Cargill, Gwendolyn Sontheim.

Aquelas Três Harpias

O personagem chave da Bolha Assassina numa suposta legítima Casa Branca Biden-Harris é Tony Blinken, ex-vice-conselheiro de segurança nacional durante o governo Obama-Biden, nome frequentemente citado como próximo Conselheiro de Segurança Nacional.

É geopolítica – com um importante adendo: a ex-conselheira de segurança nacional, Susan Rice, que foi cortada, sem cerimônias, da lista de possíveis vice-presidentes, em favor de Kamala, pode vir a ser a próxima secretária de Estado.

Concorre possivelmente com Rice o senador Chris Murphy, o qual, num documento estratégico intitulado “Rethinking the Battlefield” [Repensar o Campo de Batalha] repete Obama-Biden, como se poderia prever que fizesse, e fez, sem diluição: nada de “repensar”; é só retórica pró combate ISIS/Daech e conter a Rússia e a China.

O doce Tony Blinken trabalhou para a Comissão de Relações Exteriores do Senado nos anos 2000s. Portanto, não surpreende que estivesse muito próximo de Biden já antes do primeiro mandato Obama-Biden, quando ascendeu ao topo como vice-conselheiro de segurança nacional e, daí, no segundo mandato, como Secretário de Estado.

Próximo de Blinken está Jake Sullivan, que, sob a asa protetora de Hillary Clinton, substituiu Blinken como conselheiro de segurança nacional no segundo mandato Obama-Biden. Terá alto posto, ou no Conselho de Segurança Nacional, ou no Departamento de Estado.

Mas… e As Três Harpias?

Muitos de vocês lembram de “As três harpias [estão de volta]”, como as chamei, antes do bombardeio e da destruição da Líbia, e novamente em em  2016, quando o impulso de versões remix das harpias, rumo a glorioso novo capítulo, foi rudemente interrompido pela vitória de Trump. No que tenha a ver com O Retorno da Bolha Assassina, o que aí virá é a versão 5K, 5G, IMAX.

Das três harpias originais, duas – Hillary e Susan Rice – parecem prontas para abocanhar novo emprego no colo do poder. O caso engrossa para Samantha Power, ex-embaixadora dos EUA na ONU e autora de The Education of an Idealist, onde se aprende que a tal “idealista” reduz Damasco e Moscou a trapo, ao mesmo tempo em que ignora completamente a ofensiva de drones, as listas de matar, aquilo de “liderar pela retaguarda”, o envio de armas para al-Qaeda na Síria rebatizada como “rebeldes moderados” de Obama-Biden, além da incansável destruição do Iêmen pelos sauditas.

Samantha parece ter sido descartada. Há nova harpia na cidade. O que nos leva diretamente para a verdadeira Rainha da Bolha Assassina.

A Rainha da Bolha Assassina

Michele Flournoy talvez seja o epítome do Retorno da Bolha Assassina: quintessência da funcionária imperial do que Ray McGovern, ex-analista da CIA, chamou brilhantemente de MICIMATT (complexo Militar-Industrial-Congressional-de Inteligência-Mídia-Academia-Think-Tanks).

A funcionária imperial ideal viceja nas sombras: virtualmente ninguém conhece Flournoy fora da Bolha Assassina, o que significa todo o planeta.

Flournoy é ex-conselheira sênior do Boston Consulting Group; co-fundadora do Center for a New American Security (CNAS); senior fellow no Belfer Center de Harvard; foi subsecretária da Defesa no governo Obama-Biden; favorita da harpia-chefe Hillary para chefe do Pentágono depois de 2016; e novamente favorita para chefiar o Pentágono depois de 2020.

O item mais delicioso do currículo de Flournoy é que é co-fundadora de WestExec Advisors com ninguém menos que Tony Blinken.

Qualquer insider da Bolha Assassina sabe que WestExec é o nome da rua que corre ao longo da Ala Oeste da Casa Branca. Em roteiro de Netflix, seria dica óbvia de que uma caminhadinha rápida pela fama diretamente para o número 1600 da Pennsylvania Avenue está raiando no horizonte para os protagonistas star.Flournoy, mais que Blinken, fez de WestExec sucesso absoluto no Complexo MICIMATT da Beltway (interestadual 495), falando exclusivamente a think-tanks e ignorando blitz de Relações Públicas e da mídia.

Aqui, uma amostra interessante e  crucial do pensamento de Flournoy. Ela diz, com todas as letras, que algum tipo de simples contenção benigna dos EUA frente à China é “erro de cálculo”. E é importante ter em mente que Flournoy é, de fato, o cérebro de onde brotou a estratégia de guerra geral – e fracassada – de Obama-Biden.

Em resumo, Biden-Harris significaria A Volta da Bolha Assassina com fome de sangue. Biden-Harris seria Obama-Biden 3.0. Pensem naquelas sete guerras. Pensem naqueles ataques. Pensem nas listas de matar. Pensem na Líbia. Pensem na Síria. Pensem no “golpe soft”no Brasil. Pensem em Maidan. Considerem-se avisados.

[1] Proud Boys, literalmente “rapazes orgulhosos”, designa um grupo neofascista de extrema direita, só de homens, ativo nos EUA e Canadá. (NTs, com informações de Wikipedia).

[2] 7/7/2016, “As três Hárpias estão de volta”, Pepe Escobar, Russia Insider, Blog do Alok.

[3] Orig. woke gloss.

 

Trad. do Coletivo de Tradutores Vila Mandinga, com autorização do autor. Versão revista.

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