O retorno à antiga Idade Moderna II – Angola: A Rainha Nzinga e a Resistência

 

Por João de Athayde, para o Duplo Expresso

 

O retorno à antiga Idade Moderna segue. Por um lado, querem empurrar o Brasil para os tempos-sem-direitos de antes da queda da Bastilha, e por outro, certos temas sobre a Idade Moderna (1453-1789) estão muito em dia. Em artigo anterior tratei do tema do sebastianismo português e brasileiro¹. Mas a história do Brasil não tem fundo só europeu e mesmo que o atual ministério deseducativo no poder não tenha a isso nenhuma afeição, insistimos em trazer Brasil e África para o centro da discussão.

Nzinga Mbandi, também conhecida como rainha Ginga, Jinga ou ainda Njinga foi soberana de Matamba, numa região que hoje é Angola e viveu de 1582 à 1663, morrendo então com 81 anos sendo a “inimiga invicta dos europeus”. Foi batizada em 1621 com o nome de Ana de Souza. Uma conversão certamente estratégica no jogo de comércio e poder em que se afrontavam portugueses, holandeses e vários povos africanos. Conversão que talvez em algum momento se tornou fé genuína. De qualquer maneira Nzinga em muitos momentos foi e voltou ao cristianismo, e praticou os ritos iniciatórios e costumes locais que podiam incluir a antropofagia. Ela manteve durante um período uma espécie de harém ao contrário, uma corte de homens amantes. Um dia, porém, disse numa carta aos portugueses : “agora vou casar com um só”².

Nzinga não era abolicionista, idéia que não existia naquele momento e contexto local, parte de sua luta era efetivamente pelo controle de rotas de comércio de escravos. Ela foi uma rainha resistente contra a expansão portuguesa e contra o fato que os povos liderados por ela fossem escravizados e enviados para o Brasil. Para isso uniu diversos povos até então inimigos, como os temíveis guerreiros Jagas, e comandava pessoalmente seus exércitos nos campos de batalha. Virou por isso, símbolo de independência e de resistência.

Talvez o momento mais representativo da altivez de Nzinga, foi durante uma audiência para a negociação de um tratado de paz com o governador português, que a recebia em seu palácio em Luanda. O governador estava sentado em uma cadeira, porém não havia outra cadeira para que Nzinga se sentasse, ela deveria acomodar-se em almofadas no chão, numa clara estratégia de humilhação de parte do europeu. Nzinga, pensou rápido e ordenou que uma serva sua ficasse de quatro para que ela pudesse sentar-se sobre ela e assim negociar de igual para igual com o representante português. Sua perspicácia, assim, entrou para a história.

 

“Audiência do governador João Correia de Sousa com a diplomata Jinga-Mbandi- Ngola, no palácio das autoridades portuguesas, em Luanda, no ano de 1622, para conversação de um acordo de paz.
Fonte: CAVAZZI, Descrição Histórica dos Três Reinos do Congo, Matamba e Angola”

 

As povoações à base de madeira e palha onde viviam os Jagas aliados de Nzinga, eram chamados de quilombos. Não é a toa que nesse mesmo período no Brasil, muitos escravos foragidos originários desta mesma região da atual Angola viviam e lutavam no Quilombo dos Palmares. Tropas luso-brasileiras³ que haviam combatido os quilombolas de Palmares, também foram usadas na guerra contra Nzinga. Afinal, de que adiantava expulsar os holandeses do Nordeste se, como disse o religioso irmão Gonçalo João, “sem Angola não há Brasil”, e o padre Antônio Vieira, “sem negros não há Pernambuco, e sem Angola não há negros”⁴. Há, pois, que se dominar Angola para fazer o Brasil escravagista existir e prosperar. Fica a lição de que, se por um lado, para dominar um determinado país, o comércio imperialista precisa passar pela dominação de outras nações, por outro, a autonomia desses outros países e a resistência no exterior dá força à resistência no Brasil.

Muito foi dito sobre a mítica Nzinga e muito ainda se poderia falar, mas não sou especialista nessa região da África. Simplesmente a saga de Nzinga me golpeou – como a muitos – de maneira emocional, me levando a compor uma canção sobre este tema (que apresento num link logo a baixo). Nzinga aliás, aparece no congado, na capoeira e em outras tradições populares brasileiras.

Nzinga, uma tão importante personagem histórica é certamente uma figura complexa.
Complexidade a qual eu certamente não faço jus nos breves versos que escrevi para esse enredo-canção onde tento exaltar o aspecto de resistência política e cultural que se pode extrair do legado da rainha Nzinga, e juntá-lo à imagem, tanto concreta como arquetípica, de “tambores da liberdade”. Tambores que comunicam, que expressam o dizível e o indizível, anunciam o combate e celebram a liberdade de indivíduos plenos em corpos e mentes; liberdade de nações autônomas, independentes. Brasil Nação-Tambor, assim como o são tantas nações africanas e latino-americanas.

Compus esses versos então assim, de supetão, quando primeiro entrei em contato com a história de Nzinga e narrativas que muitas vezes se confundem com lendas. Só posteriormente fui conhecer um pouco mais esta figura histórica, seu contexto e suas representações.

Afinal a história não é exatamente o passado, mas uma relação entre presente e o passado. História, eu diria, são maneiras de ver, de interpretar e articular certas fontes do passado com outras fontes do passado e todas estas com fatos e idéias do presente. Como nos servimos da História ? Isso é parte das ações sociais e políticas que podemos efetuar. Educação é política; quando não a de hoje, a do amanhã. No Brasil, distingue-se claramente : de um lado, quem valorizou e aumentou o acesso à educação, quem incluiu a África e as africanidades no currículo escolar (colocando neste ponto o ensino brasileiro entre os mais modernos do mundo), e de outro, quem corta verbas para educação e sem nenhum pudor da indecência fala de “escola sem partido”, cínico nome para “escola sem consciência”, uma escola para dominados.

Aliás, me parece que Nzinga, sempre altiva em suas ações e negociações, não tinha complexo de vira-latas, por isso, enquanto ela viveu, imperialistas não conquistaram seu reino. Organizemos hoje nossa resistência, para que não se (re)instale no Brasil um tempo em que o simples fato de dar uma aula possa ser considerado como uma desobediência civil.

 

Vídeo musical « Nzinga », de João de Athayde:

 

 

1 De retorno à antiga Idade Moderna o o contemporâneo retorno aos tempos antigos

2 Luiz Felipe de Alencastro, O Trato dos Viventes (2000 : 278-279)

3 Ou « brasílicas » como prefere Alencastro (2000), porque o Brasil como conhecemos hoje, nesse momento não estava formado.

4 Luiz Felipe de Alencastro (2000 : 230)

 

Para um aprofundamento na questão de Nzinga e sua época, aconselho o livro de Luiz Felipe Alencastro, O Trato dos Viventes, livro aliás fundamental para a compreensão do Brasil e das redes internacionais na qual o Brasil foi formado. A obra esclarece muito do que vivemos e acreditamos – ou fantasiamos – hoje.
Para um olhar sobre Nzinga num belo âmbito literário, “A rainha Ginga – e de como os africanos inventaram o mundo”, do escritor angolano José Eduardo Agualusa.

Outras fontes utilizadas :

Desine Rocha (2011) – Imagens da diplomacia de Nzinga Mbandi Ngola, em Luanda, no ano de 1621 : histórias gravuras e narrativa (Pepetela)
http://www.uel.br/eventos/eneimagem/anais2011/trabalhos/pdf/Denise%20Rocha-%20UNITINS,%20Palmas..pdf

Carlos Serrano, entrevista com, « Mulheres de Angola lideravam tráfico de escravos para o Brasil », RFI 22/05/16, « As vozes do Mundo »
http://br.rfi.fr/africa/20160522-mulheres-de-angola-lideravam-trafico-de-escravos-para-o-brasil

 

João de Athayde é antropólogo, carioca residente na França (Aix en Provence). Ligado ao IMAF (Institut des Mondes Africains/ Instituto dos Mundos Africanos). Universidade de Aix-Marselha, França. Realiza doutorado sobre as heranças culturais ligadas ao tráfico de escravos no contexto do Atlântico Negro, em especial sobre identidade, religião e festa popular entre os Agudàs, descendentes dos escravos retornados do Brasil ao Benim e Togo, numa perspectiva comparativa entre a África e o Nordeste Brasileiro.

 

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