De retorno à antiga Idade Moderna e o contemporâneo retorno aos tempos antigos

Por João de Athayde, para o Duplo Expresso

Sebastianismo é crer na volta redentora de um líder que foi dado por desaparecido.
Defender um Lula livre e concorrendo à presidência em eleições transparentes, é consciência política e resistência, não sebastianismo, posto que Lula é vivo, provou que fez e que poderá fazer ainda mais. “Sebastianizar” a figura de Lula é o que a Globo tenta perpetrar, tentando transformar em mero mito folclórico, a força e o carisma de um líder popular que é uma real possibilidade de mudança.
Pensávamos que éramos país navegando de vento em popa na Era Contemporânea, numa pós-contemporaneidade ou ao menos seguindo nesse rumo, com os índices sociais do Brasil melhorando à olhos vistos para o mundo. No entanto, o que vem retornando é a tecnologia rudimentar do tacape. Forças de uma elite, de aparência muy asséptica e tecnocrática –e falsamente bonitinha em seus ternos e gravatas de marca– se mostram mercenários tentando nos fazer retroceder à uma antiga Idade Moderna (1453-1789), para tempos de antes de uma Revolução Francesa, quando o pão, o brioche e os privilégios eram todos para os amigos da realeza.

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Imagem esq: “Vue panoramique”, cartão postal de El-Ksar (ou Alcácer-Quibir), MAR (1900) | Imagem dir: “Batalha de Alcácer-Quibir_1578” no © Museu do Forte da Ponta da Bandeira, em Lagos, POR (1952)

Em 1578, deu-se a batalha de Alcácer-Quibir (grande castelo ou fortaleza em árabe), no norte do Marrocos. Portugueses, liderados pelo rei Dom Sebastião, mercenários Europeus e seus aliados Mouros (o Sultão deposto Moulay al-Mutawakkil) foram aniquilados pelas forças numericamente superiores comandadas pelo Sultão Moulay Abd Al-Malik.

Desaparecido em pleno campo de Batalha, o corpo de Dom Sebastião nunca foi encontrado. O rei certamente foi morto no calor do combate, porque se tivesse sobrevivido provavelmente seria feito prisioneiro, e teria a liberdade barganhada em troca de um alto resgate, como na época era de praxe. A partir desta derrota, Portugal passaria por uma série de crises políticas, econômicas e sucessórias vindo a culminar na sua submissão ao Reino de Espanha, algo que duraria sessenta longos anos. Porém, sem corpo, sem morto; no misticismo popular português, toma forma a idéia de que o rei Dom Sebastião não morrera, e um dia viria, dos céus, dos desertos ou de algum lugar, para redimir o reino e trazer um tempo de justiça e abundância. A crença alastrou-se por Portugal e por suas possessões ultramarinas, fincou também âncora no Brasil, em especial nos sertões nordestinos, e perdurou, adaptando-se, tomando diferentes formas e inspirando até revoltas.

O leitor perspicaz já deverá ter percebido muitas semelhanças entre os eventos trágicos de Alcácer-Quibir, sua subsequente crise política e o domínio estrangeiro do Reino de Portugal com o que vivemos no Brasil atual. Porém, ao contrário do que alguns sustentam, eu digo que as semelhanças param aí: o sebastianismo é a crença de cunho mítico em um líder desaparecido que retornará e redimirá um reino ou uma população, sendo considerado hoje coisa ilusória e ingênua. As diferenças da atualidade brasileira com o sebastianismo então se fazem ver: Lula está no cárcere, no Alcácer da grande fortaleza jurídico-midiática, mas vivo, ainda vivo e muito vivo. (E deve manter sobretudo o olho vivo para escapar aos maus conselhos…). Querer levá-lo de volta ao governo – o qual segundo as sondagens, lhe pertencerá por direito – não é mitologia, é possibilidade real de retorno ao poder através do voto popular. Não há sebastinismo em relação a um líder que há pouco reunia multidões através do país e está na frente das pesquisas. O que existem, por outra parte, são certos candidatos que tentam se reinventar em mitos, gestores ou santos perante eleitores perdidos e mercados muito sabidos. O que há, é um Lula Coração-de-Leão: generoso de coração, e se soltar, ele abocanha a eleição. 

Alguns buscam transformar Lula subliminarmente num personagem mitológico, tentando tolher-lhe a força vital com a qual ele se comunica com as camadas populares. Lula, no entanto, é o próprio anti-Dom Sebastião. O rei português era elitista. Não foi especialmente bom administrador, e buscava insanas e vãs glórias militares. Já Lula e seu legado proporcionaram o melhor período da economia brasileira e um projeto de inclusão social, além de ser hábil em alianças pacíficas internacionais, coisa que definitivamente, Dom Sebastião não foi. Nos Sertões-Brasils, o governo Lula foi sim, o começo do fim do sebastinismo de coronel, porque não se limitou às promessas e migalhas, mas trouxe uma mudança potável: água, peixe e vara de pescar (respectivamente: cisternas e transposição do rio S. Francisco/Bolsa-Família/melhor acesso à educação). Um agricultor – não de trator, mas de enxada – de Glória do Goitá, lá pelos agrestes pernambucanos, debaixo de seu chapéu e do sol-à-sol de suas rugas, me disse:  “o sr. chegou aqui… eu fiquei só cá olhando pra ver de que lado o sr. era, mas agora eu posso dizer: eu sou Lula, só com o Lula é que o pobre teve um pouco de comida na mesa”.

A antiga Idade Moderna, que pode parecer coisa distante ao vento,
está é muito viva em nossa carne e em nosso tempo.

No início da Idade moderna parece que dois tempos conjugavam-se: castelos, espadas e muralhas de um lado – tal qual na Idade Média –, afrontando tecnológicas bombas de canhão e balas de outro. Hoje, modernas são as armas da Idade Mídia, à base de bombas semióticas, rajadas de tuítes, muralhas de algoritmos zuckerberianos e armas de propaganda tóxica de massa – no Brasil, essas são as perigosas armas químicas – as bombas de efeito amoral.

Alguns parecem até que já regrediram para eras no tempo ainda mais longínquas: aí a arma utilizada é a tecnologia pré-histórica do tacape – do polícia, do milícia, do bolsominion, do ruralista.

Lula foi surpreendente na sábia estratégia de defesa, retornando à fonte e reduto de  sua origem, o Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo. Ergueu-se rápido o bastião, a muralha ali foi espontânea, foi povo e foi humana: massa que aumentava, aliados presentes, corações e câmeras ligados nas mentes. A guerra de cerco ali se prometia longa, e  muito desgastante para o algoz gorila. O impasse fez-se palpável e pôs enfim, em xeque, a oligarquia. Ataques ao bastião do Sindicato de Luta foram operados por uma emissora que envia mísseis midiáticos a partir de seus próprios bunkers; basta observar a arquitetura de seus prédios. Seria ela um think tank? Não; trata-se de um fake tank: um satélite blindado que dispara mentiras.

As imagens que correram Brasil e mundo afora foram de um Lula nos braços do povo. Um povo-escudo que pode virar lança quando o ânimo é guerreiro. Em conflito, resiste-se para negociar em posição de força. A derrota porém, não veio do lado do fake tank, do sultão da xária da toga, nem do tacape da tropa de choque: veio de uma rendição demasiado rápida, mal-aconselhada por certos elementos – e sabe-se lá com que intentos. O povo braço-de-defesa não concordou, e mostrou que resistiria, e que o faria não só por Lula, mas por toda uma democracia.

Mas foi-se Lula lá para uma moderna masmorra, a Guantânamo de Curitiba. Aí mesmo é que o Brasil então parece coisa mítica, porque quem está mantida aí prisioneira, vejam só… é a Dona Justiça. Aquela que diziam que trabalhava de vista vendada mostrou-se, de todas, a que foi mais enganada. O então governador de Pernambuco Miguel Arraes, por ousar falar em reforma agrária e resistir ao golpe em 1964, foi rapidamente levado para Fernando de Noronha – a ilha. Se fosse hoje em nossa Idade Mídia, provavelmente apareceria, como que por encanto, um jornalista cara-simpática para dizer que “…Arraes estava melhor ali do que no palácio do governo”, que “…estava é tirando férias numa praia paradisíaca”. Como o acampamento e a consciência da esquerda e dos legalistas tendem a aumentar lá nas Curitibas, risco há de que removam Lula para o interior do Brasil-Continente, para uma longínqua ilha de terra cercada de canalhas de toda gente.

Imagem esq: “Taking of the Bastille” por © Period Paper (1921) | Imagem dir: “Prise de la Bastille” por Charles Thévenin © Museum of Fine Arts of Boston (1793)

Se o tempo eleitoral agora corre contra, cabe mobilizarmo-nos e articularmo-nos nacionalmente e internacionalmente. A Idade moderna, que começou em 1453 com a queda de Constantinopla e de suas muralhas (que – dizem – caíram enquanto alguns dos encastelados discutiam quantos anjos cabem numa cabeça de alfinete), acabou com o povo invadindo e derrubando outra muralha, a prisão-símbolo da realeza francesa, a Bastilha. Vivemos ainda sob as reverberações do legado desse momento histórico. Na sequencia dos fatos da revolução Francesa é que proclama-se a declaração Universal dos Direitos do Homem (leia-se hoje, Direitos Humanos), e que difundem-se as noções de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, e se enganam os que pensam que as temos por direitos adquiridos. Fraternidade traduz-se por estado social; Igualdade, é lei justa e sem privilégios, casta jurídica inclusa (e acusação só com prova); quanto à Liberdade, esta nem é preciso explicar.

É Lula livre, uma nação livre, hoje e agora.   

 

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João de Athayde é antropólogo, carioca residente na França (Aix en Provence). Ligado ao IMAF – Institut des Mondes Africains (Instituto dos Mundos Africanos), Universidade de Aix-Marselha, França. Realiza doutorado sobre as heranças culturais ligadas ao tráfico de escravos no contexto do Atlântico Negro, em especial sobre identidade, religião e festa popular entre os Agudàs, descendentes dos escravos retornados do Brasil ao Benim e Togo, numa perspectiva comparativa entre a África e o Nordeste Brasileiro.

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