Demonologia – A ciência que o Brasil explica e exemplifica
Por João de Athayde, para o Duplo Expresso
Ciência das nanopartículas; dinâmica de vórtices dos supercondutores; exopaleontologia; mecatrônica e ciberiologia; solvência e coagulação rizomática; eletrofisiologia; micro computação quântica; aerodinâmicas de turbinas eólicas. Nada disso tem futuro no país do passado! Além de não existir mais verbas disponíveis para essas inutilidades de pesquisas do mundo científico, são disciplinas já ultrapassadas. Meus jovens e menos jovens a disciplina da hora e do futuro para entender o Brasil é a Demonologia. Sim, a área do conhecimento que se interessa à criaturas bestiais, demônios, espíritos maléficos, à descrição do inferno e de coisas-ruins de todo o tipo da qual o Brasil é um orgulhoso expoente de sua anti-biodiversidade.
A demonologia, esta sim verdadeira ciência sem fronteiras, se interessa, lógico, a análise do fenômeno demonológico e eventualmente à sua profilaxia, ou seja métodos de prevenção e cura. A disciplina tem uma ciência-irmã, a angelologia, o estudo dos anjos e suas ações de bondade e justiça divina. A Porém, angelologia é ciência em declínio no Brasil dos últimos anos, uma disciplina em vias de extinção por falta de objeto de estudo. Na ausência do Arcanjo Gabriel guerreiro do povo brasileiro e de sua lança, os capetas ressurgem, pululam e dançam a dança do pato assado antes de ir pro caldeirão da classe média decaída, onde o cramulhão estrelado é o chefe da cozinha.
Com o Escola Sem Partido, em breve Universidade Sem Partido, e quem sabe uma democracia sem partidos, prá que estudo de gênero, de cultura afro-indígena brasileira, de antropologia, de sociologia, filosofia, e de análise de fatos históricos e das lutas sociais? Vade retro Satanás! Esse emaranhado de conhecimentos inúteis pode ir pro quinto dos infernos coloridos e vermelhos! Tentarei desta vez – não sei se conseguirei –finalmente fazer um texto em sintonia com os tecnocratas neutros de Brasília, com pessoal da Bolsa e da FIESP, enfim, um « texto-sem partido ».
Meu amigo estudante : a ciência do momento é definitivamente a Demonologia. Demônio não tem partido, estando consequentemente seu estudo previamente liberado pelo crivo de um conselho de ética das coisas ruins, formado pelo ministro da deseducação, o Kim censurado Kataguiri e o Alexandre Frota acompanhado do bispo Macedo. Demônio só toma partido a favor do Grande Satã, que, este sim, age em interesse próprio, privado e de seus dos clientes acionistas ultra-liberais; e quem pode com seu fogo é que faça mais.
A sabedoria demonológica persa
Demonologia é disciplina velha, anterior a física newtoniana e o racionalismo cartesiano: persas já tratavam do assunto nas priscas eras da Antiguidade. A sabedoria milenar do Zoroastrismo ensina que a ociosidade, a « mãe da vergonha », invoca os demônios da fome, os demônios da sede, os demônios da sujeição, os demônios da doença e demônio da miséria. Contra eles, principal a arma é o trabalho agrícola. Mas a ociosidade no século XXI é… o diabo ressurgente do desemprego!
Um dos principais textos do Zoroastrismo, o Vendidad, tradição fixada no séc. III AC., e cujo o título pode ser traduzido por “o que foi dado contra os demônios”, ensina: “Quando o trigo cresce, os demônios são atingidos pelo terror; quando os germes brotam, os demônios tossem; quando se vê os caules, os demônios choram; quando se vê as espigas, os demônios torcem os calcanhares; quando moemos o grão, os demônios caem por terra. Parece que eles têm ferro em brasa girando em suas mandíbulas quando o trigo está em abundância.” Tentando decifrar: então, quando a colheita pro povo é boa, a voz dos demônios contra o trabalhador ecoa…quer dizer que segundo a sabedoria Zoroastriana distribuir terras para o camponês plantar seria…contra os demônios lutar ? Sabedoria da antiga Pérsia milenar.
Dante, o infernal
O texto de referência que funda a língua italiana é o Inferno de Dante. Na verdade a obra se chama A Divina Comédia, trata-se de uma espécie de tríptico – uma pintura em três partes – onde o autor descreve, nessa ordem, o inferno, o purgatório e o paraíso, este último de passagem quase tão difícil para o comum mortal que habeas corpus de Lula transitando no Supremo Tribunal Federal. Mas como o diabo, além de campeão de audiência faz morada vizinha aos homens, tomamos a parte pelo todo e nos referimos a esta obra como “O Inferno de Dante”. Além de poeta, Dante esteve envolvido na política local e talvez por isso seja capaz de identificar tão bem quem ele encontra na sua incursão infernal guiado pelo poeta latino Virgílio, pois poesia é a barca das palavras que das penas do mundo salva.
Dante encontra ali nobres, avaros ricos e os insaciáveis glutões da sociedade e descreve detalhadamente quais castigos essas almas-sem-almas devem sofrer pelos pecados cometidos. O laureado poeta teve no entanto que deixar sua querida Florença, expulso que foi da cidade em processos jurídicos manipulados pelo político. Chegou mesmo a ser condenado a queimar na fogueira por um tribunal (acho até que eu conheço um caso no Brasil meio igual). Em seguida ele acabou tendo seus bens materiais tomados e foi lançado ao exílio, mas quem viria a se lembra do nome dos rasteiros juízes, em vez da grandeza do julgado?
Talvez fossem Torquemadas ou qualquer outro salafrário. Viraram pó no limbo do esquecimento, onde ninguém evoca seus nomes; dizem que nem o diabo os quis por causa da fedentina, pois estes juraram sobre a constituição e a bíblia que praticariam uma justiça republicana, cega e quase divina. Pois é, a história se repete como uma farsa Pantesca – se não fabricamos vacina. Então Dante, o poeta-político, perambulou por França e Itália e terminou seus dias banido do outro lado dos Apeninos, na cidade de Ravena, onde visita-se hoje seu imponente túmulo. O Inferno de Dante tem geografia e demonologia tão rica, que mereceria um artigo inteiro à parte e ao todo. Mas não me aprofundarei aqui em sua obra, cometendo assim grande pecado, esperando ter ainda chance de redenção no futuro dos meus passos, lá no purgatório da página dos escritores relapsos.
Números e hierarquias de uma pseudo-monarquia
Em 1467, um certo bispo espanhol fez cálculos minuciosos baseado no Livro das Revelações, segundo o qual um terço dos anjos caem e viram demônios, e chegou a conclusão que o número total dessas criaturas infernais era exatamente de 133.316.666 demônios. Meus caros, isso não é mera estimativa de pesquisa eleitoral do Datafolha ou do IBOPE, são números precisos e confiáveis inscritos pelo grande demonólogo Alfonso de Spina no livro A Fortaleza da Fé. Convenhamos, é muita criatura para atormentar a nossa pobre e danada humanidade.
Em 1577 Johannes Weyer escreve a Pseudomonarchia Daemonum. Weyer chama de Pseudo Monarquia dos Demônios a organização hierárquica dos reis, duques, príncipes, ministros e as 666 legiões da Polícia Federal da hoste infernal. Isso por que esses seres tão vis e repugnantes, só poderiam se agrupar em um pseudo reinado, e jamais conseguiriam formar um verdadeiro governo legítimo, permanecendo sempre um pastiche, algo assim como a Pseudorepública Daemonum Brasilis recentemente estabelecida e já tão combalida. Uma pergunta estrutural e metafísica então prende forma: será a organização hierárquica do inferno – rígida e despótica – que copia os reinos e desgovernos humanos ou será a sociedade humana que não faz mais que reproduzir a opressora hierarquia infernal? Ser ou não ser o lobo-demônio de outro homem, eis a questão que nos consome.
A propósito da Pseudorepública Daemonum Brasilis, lembro aqui que vampiros são em geral indivíduos ricos, vestidos elegantemente, de nobre estirpe e sendo eleitoralmente mortos-vivos, transformados em morcegos e ardilosos demônios como castigo por suas desmesuradas ambições. São, sim demônios do chic e do status quo, viciados em sugar o sangue popular para continuar numa falsa vida de burguesidades. Vampiros porém, só podem agir na escuridão, por que se expostos à luz do jornalismo livre se fecham num caixão ou se desfazem em poeira. Vampirões e príncipes dos vampiros e da privataria foram vistos se movendo entre Brasília, São Paulo e Avenue Foch em Paris, sempre na calada da noite, sob a lua cheia dos lobisomens em pele de cordeiro ou sob os raios ofuscantes de um planeta, a platinada Vênus. Admito, no entanto, que devo ser mais preciso, justiça seja feita ao menos aqui, já que em Curitiba e Brasília, não se faz: FHC não é um vampiro qualquer. Ele é a própria encarnação do que há de perverso no Homem Faustiano. Sim, por que quem é o Fausto, dos textos de Marlowe e de Goethe?
Fausto engendra seu demônio
Fausto é um homem de erudição, considerado douto pela sociedade e que já adquiriu grande prestígio, o conforto e a estabilidade financeira. Numa segunda fase de sua vida, porém, sua presunção, seu egocentrismo e sua indiferença para com os problemas de seus concidadãos geram um vazio em seu espírito – causado talvez pelo pretenso fim das utopias – e uma desilusão generalizada se degenera em uma ambição desmesurada de poder que invade e toma conta de seu ser. Nessa altura surge o demônio Mefistófoles oferecendo o que falta a Fausto e que lhe tenta profundamente: o sumo poder. A sedução do diabo porém, como sabemos, só pode se manifestar quando o indivíduo assim o deseja, se deixando tentar por suas invejas e fraquezas de caráter.
Brechas psicológicas levam a brechas deontológicas que alimentam brechas sociológicas. Ironicamente, quem pode nos elucidar sobre o Fausto é Riobaldo, o simples e errante cangaceiro das Veredas de Guimarães, capaz de brotar rosa nas palavras à partir de um mundo de espinhos. Riobaldo é homem direto, sobrelutando entre os infernos dos Brasils-sem-lei e do amor que sente e descompreende por Diadorim, lhe queimando ardente no grande sertão do ser e da imensidão, este que cruzamos no cavalo indomado da consciência. O experimentado Riobaldo assim ensina a um outro doutor – este sim, um sábio, por que a palavra popular ouve: “O diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo. » É o homem que dá forma e expressão social aos demônios que ele engendra.
Fausto e Mefistófoles firmam então um pacto de sangue, um pacto de ambições, onde o primeiro ambiciona o poder na vida e na sociedade, e o segundo ambiciona a alma do ambicioso na eternidade. O pacto com o demônio é a traição do Homem à sua essência humana e humanística; o Homem que não quer se colocar, em seu íntimo e perante a sociedade, como um igual homem frente à outros iguais nos supremos tribunais da existência. Porém, mesmo com os poderes que lhe são outorgados pelo falso amigo interesseiro, Fausto continuará blasé e indiferente perante a sociedade e a vida alheia. Isto até se deparar com a simplicidade e inocência da singela Margaret, que representa belezas que Fausto não pode ter: pureza genuína e paz de espírito. Como um troféu, Mefistófoles diz então que poderá oferecer Margaret à Fausto. Mas reparem bem que Mefistófoles não oferece, e nem poderia oferecer, seu o amor – o encontro despojado com a essência do outro – mas apenas a possessão do objeto de desejo, que nada mais é que outra forma de poder.
O Fausto mefistótélico é assim a personificação do poder utilizado para fins individuais, ou do ego individualista de certas classes sociais. Podem Fernando Fausto Henrique Cardoso e seus capangas de ternos caros, diplomados em nobreza vil, olharem com sinceridade nos olhos enrugados do sertanejo que luta com o sol, o céu a enxada para manter sua roça em verde-vida como os olhos de Diadorim? Podem estes dar a mão a uma mãe sem-teto no frio sertão da noite de inverno paulistana e dizer que agem em seu nome? Não, jamais; por que só pode fazer isso quem vive uma vida genuína em suas convicções, seus atos e seus ideais. Tudo o que podem é vender ilusões de falsas mídias, promessas falsas e magia de números, todos maquiados com sangue no enxofre.
A seguir, assista ao trecho da participação de João de Athayde no Duplo Expresso de 27 de julho de 2018
Notas :
1 Luca Signorelli, os condenados (detalhe), capela de San Brizio, catedral de Orvietto, Itália (1499-1503) in Holtz & Rolley, (dir). 2008, Voyager avec le diable – Voyages réels, voyages imaginaires et discours démonologiques (XVe – XVIIe siècles), PUPS, Paris.
2 Bernard Buffet, O Inferno de Dante, o Homem de Cabeça Cortada (1976).
3 Anton Kaulbach (circa 1900), Fausto e Mefistófoles.
João de Athayde é antropólogo carioca residente na França (Aix en Provence). É ligado ao IMAF (Institut des Mondes Africains/ Instituto dos Mundos Africanos), na Universidade de Aix-Marselha, França. Realiza doutorado sobre as heranças culturais ligadas ao tráfico de escravos no contexto do Atlântico Negro, em especial sobre identidade, religião e festa popular entre os Agudàs, descendentes dos escravos retornados do Brasil ao Benim e Togo, numa perspectiva comparativa entre a África e o Nordeste Brasileiro.
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