Tutorial (do caminhoneiro): como fazer um ataque híbrido (contra… zumbis?!)

Por Piero Leirner,[1] para o Duplo Expresso

  • Nos postos, muita fila para abastecer. Em mais há gente enfiando galões de gasolina no porta-malas. O sujeito tá correndo para abastecer mesmo sabendo que está caro, mesmo tendo ouvido que vai baixar R$ 0,70. Bateu o efeito manada. Guerra híbrida é isso aí: alguma informação acaba produzindo o real, e o agenciamento que ela produziu começa a criar um monte de dissonâncias. NESSE EXATO MOMENTO, O JORNAL LOCAL DA GLOBO INFORMA QUE SÓ HÁ MAIS 2 OU 3 DIAS DE CARNE NA CIDADE. Percebem onde vai dar? Apocalipse zumbi? O pico disso é que não temos a mínima ideia de como essa coisa começou; se a greve dos caminhoneiros é um plano do Temer, da direita do Temer, anti-Temer, fora-Temer, se vai virar os “20 centavos” e a Globo vai se apropriar, se vai virar os “20 centavos” e dessa vez é a esquerda que vai se apropriar.

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Guerra Híbrida, Efeito Manada, Boulos
Como é fácil fabricar um ataque híbrido! Fui abastecer meu carro na 2a. Achei estranho que havia gente enchendo galões de álcool e enfiando nos porta-malas. Segundo a frentista, havia um boato de que o álcool, que estava barato aqui em São Carlos (e não tenho ideia, pois meu carro só anda com gasolina, então nunca prestei atenção), ia aumentar. Achei estranho, pois já estamos acostumados com sucessivos aumentos, desde que a quadrilha que tomou de assalto o governo em 2016 decidiu que o preço do combustível ia financiar um “lucro recorde” da Petrobras, lucro este que enche as pessoas de orgulho, sabe-se lá por que, já que seu principal destino tem sido remunerar meia dúzia de acionistas lá em NY. Mas enfim, a gente espera qualquer coisa desse povo que acreditou nessa balela de lava-jato recuperando a Petrobrás. Afinal, se até um ‘gênio’ como o Karnal fala isso na TV, porque um simples mortal não pensaria igual?

Na hora pensei: esse negócio de galão em posto…. Tem balão de ensaio aí. Hoje tive que atravessar a cidade pra fazer umas coisas, e passei por uns 10 postos. Todos tinham MUITA fila para abastecer. Em mais de um vi gente enfiando galões de gasolina no porta-malas. Ontem de noite, os postos estavam vazios, e notei que pelo menos dois desses aumentaram mais ou menos R$ 0,30 o litro da gasolina. Sujeito tá correndo para abastecer mesmo sabendo que está caro, mesmo tendo ouvido que vai baixar R$ 0,70. Bateu o efeito manada em São Carlos-SP. Imagino que no resto do Brasil esteja igual. Guerra híbrida é isso aí: alguma informação acaba produzindo o real, e o agenciamento que ela produziu começa a criar um monte de dissonâncias. Agora, NESSE EXATO MOMENTO, O JORNAL LOCAL DA GLOBO TÁ COMEÇANDO A INFORMAR QUE SÓ HÁ MAIS 2 OU 3 DIAS DE CARNE NA CIDADE. Percebem onde vai dar? Apocalipse zumbi?

 

O pico disso é que não temos a mínima ideia de como essa coisa começou; se a greve dos caminhoneiros é um plano do Temer, da direita do Temer, anti-Temer, fora-Temer, se vai virar os 20 centavos e a Globo vai se apropriar, se vai virar os 20 centavos e dessa vez é a esquerda que vai se apropriar. Meu palpite é que cada vez que esse tipo de coisa é acionada, nunca a esquerda democrática ganha. Daí onde encaixo o Boulos nessa conversa.

Tem um pessoal falando por aqui que o Boulos destruiu o Marco Antonio Villa na Jovem Pan, etc. Nononono. Villa está exatamente no mesmo lugar onde sempre esteve, a entrevista nem ciscou nele. Boulos é que está num lugar desconfortável. Porque tem essa coitada lá na Jovem Pan, cujo nome nem sei, que acionou o “de sempre”, que é o mesmo de 1989, aliás o mesmo de 1963: “a baderna”.

“Se você for Presidente, será o promotor da baderna”. Sequer existe o cálculo de que se ele é o promotor da baderna agora, alguma coisa tem que mudar quando ele for Presidente. Nem o próprio Boulos acionou esse cálculo: “como posso ser um Presidente que incita a baderna, se a baderna desestabiliza a presidência?”. Mas o ponto é que ela, Villa e mais meia dúzia de “cidadãos de bem”, incluindo um produtor rural, ali ficaram durante quase todo tempo batendo na mesma tecla: “Boulos incita o caos”, e o “caos gera pânico”. Villa, que sabemos ser o sujeito mais desonesto de toda mídia, porque sabe muito bem que não é isso, chamou Boulos de “terrorista”. Boulos ficou na defensiva, “porque não é bem assim”. Essa é a posição de alguém que, enfim, está preocupado com as eleições, e com ESTA eleição, que, enfim, está sendo acusada de ser uma fraude. Então Boulos está numa posição bem desconfortável de ao mesmo tempo saber que a eleição é fraudulenta e ter que participar dela: daí sua posição, pelo que entendo, de recuo.

Pois bem, ou se leva a sério que estamos sob ataque, e que esses discursos de caos e baderna vão ser capturados e lanados nas costas da esquerda, ou continuamos a achar que existe um pote de ouro no fim do arco-íris e que é só seguir a placa “conversão à esquerda com cautela” que chegaremos lá. Nada disso. Toda chance que temos, que é pequena, só pode ocorrer se a gente dobrar a aposta do ataque da guerra híbrida. Por isso acho que Boulos, e Lula, seja através dele ou não, poderiam começar um certo experimento cognitivo.

Trata-se da captura da bandeira de um campo no qual a extrema-direita, especialmente a ruralista – através de Bolsonaro -, está nadando de braçada, sozinha: a do armamentismo. Não é preciso se aprofundar muito em grandes estudos para perceber que um dos QGs mais atuantes da guerra híbrida hoje sai do campo, especialmente através de seu pólo gaúcho (que, vejam, se estende Brasil adentro, da soja do centro-oeste aos arrozeiros de Roraima). Há vários elementos que mostram como esse pólo foi sendo galvanizado como uma reação ao MST, que, se não me engano, começa sua existência justamente lá no RS. Não é preciso repassar a história de ações e reações desses movimentos, mas o fato é que hoje, mais do que nunca, a campanha armamentista da extrema-direita capturou o polo ruralista, justamente por conta do fato de que os caras acionam aquela velha noção de “defesa da propriedade privada”, meio que torcendo o argumento dos red-necks dos EUA, mas vá lá.

Nesse sentido, a ligação de Boulos com o “padrão MST” já foi feita. A de Lula também sempre assombrou as classes médias paneleiras (quantos de nós temos parentes que falam que Lula incentivou a luta de classes através do MST?). Pois é aí mesmo que temos o ponto que pode dobrar o golpe: a aposta que a captura do discurso armamentista por parte de Boulos pode acionar o famoso “pera lá” na direita que quer nos empurrar goela abaixo essa balela de “as instituições estão funcionando”.

A ideia é: Boulos assume o direito às armas, colocando: “minha plataforma de governo inclusive incentivará com uma linha de crédito especial a aquisição de armamento por parte dos trabalhadores rurais”. São quantos fazendeiros e quantos sem-terra mesmo? Eles têm certeza que topam uma guerra fria no campo? Imaginem os Guarani -Kaiowa finalmente com acesso às AK-47? Vocês acham mesmo que vai ter um bunda-mole açoitando gente em caravana? E que tal um novo grupo, “os laranjas do asfalto”, colecionando rifles pros traficantes, que hoje pagam 60, 70 mil por um fuzil, e depois poderiam comprar por 10% do valor? Já pensaram “aulas de tiro de longa distância” nas escolinhas indígenas, quilombolas e sem-terra? Será mesmo que a galera das “instituições estão funcionando” topam correr esse risco? E qual risco? O do “poste de Lula” ser Boulos com essa pauta, e não mais aquela do “a ocupação é um direito”.

A “ocupação é um direito” só na nossa cabeça, para 95% das pessoas que moram nas cidades ocupar um banco de praça merece cana. Claro que não tô defendendo guerra civil, longe disso. Trata-se de guerra híbrida, então nossas manobras têm que apostar nos efeitos disso na cognição dessa gente. Senão, Ciro vai desidratar Lula, e, pior, morrer na praia no 1o turno, dando de bandeja a eleição para o aparelho golpista. Não adianta agora a CUT se enfiar na cena dos caminhoneiros, se for fazer isso é porque não entendeu nada de Brasil: todo setor de transporte é reacionário. Não é à toa que as revoltas populares sempre começam incendiando ônibus. Não é à toa que sempre taxista diz que o cara mais à direita vai ganhar. Esqueçam esse caminho, o que vai tirar Lula da cadeia e fazer as eleições serem como devem ser é botar os centros irradiadores do golpe na dúvida se, enfim, eles não foram longe demais. E no pânico de ver a coisa ferver. Boulos tem a possibilidade histórica de se colocar num papel histórico de general que vai pro front pro tudo ou nada, ou permanecer numa posição minoritária, fazendo discurso inócuo no “speaker’s corner” brasileiro. Claro que, para isso, antes ele tem que combinar com os russos, e convencer o PSOL a sair do arco-íris, o que acho quase impossível, mas, enfim, não custa falar.

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  1. Doutor em Antropologia pela USP (2001), Professor na UFSCar.

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Discutimos o tema dos caminhoneiros em uma live especial há pouco:

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