Militarismo em países dependentes e subdesenvolvidos
Por Luiz Ferreira Jr.
Antes de mais nada há que se entender que paz para um militar é o período intermediário entre guerras e neste período desenvolvem-se armas e novas estratégias.
A visão clássica que trata do conceito de militarismo vê uma irreconciabilidade entre forças armadas e democracia moderna. Nesta visão o conceito de militarismo é entendido como predomínio do militar sobre o político e gera como consequência marcos de crítica e de posturas políticas antimilitaristas. Esta é uma visão dominante na moral e na gestão política da esquerda latino-americana das últimas décadas por razões históricas.
Daí conciliar dois pontos supostamente antagônicos, forças armadas e democracia moderna, faz-se necessário. Por um lado historicamente viu-se no exercício do poder de ditaduras cívico-militares, agressões militares e a constituição de discursos de cultura da guerra entre muitos que buscavam construir uma crítica, plataforma e organizações populares em nossa região. Esta matriz de cultura de controle social totalitário parecia dispersa mas foi reativada recentemente e agora por meio de expedientes de guerra não convencional instaladas em nossa região.
Na realidade política, estratégia militar, tecnologia de armamento e a economia estão em permanente fusão, à medida em que estas se desenvolvem em territórios com maior nível de soberania e capacidade econômica. Em cenários positivos para tal desenvolvimento, à medida que se viu mudar a indústria, também viu-se a mudança do militarismo.
Esse desenvolvimento combinado presente em países de primeiro mundo gerou a superação de concorrência armamentista horizontal e simétrica (observa-se o avanço do inimigo de frente e reage-se a ele buscando equipará-lo ou superá-lo) para um enfoque de concorrência qualitativa entre adversários militares de países concorrentes.
Mas para países dependentes a visão sobre o militarismo assume ainda formas particulares decorrentes das características de estados falidos ou incompletos, caso dos países de terceiro mundo. No campo militar, para tais países, a visão de antimilitarismo (ou seja característica decorrente de uma visão tradicional) está vinculada a noção de desenvolvimento decorrente do comportamento de agentes militares que no passado geraram ditaduras militares subordinadas a estruturas imperialistas intervencionistas, exemplo das ditaduras dos anos 70 e 80 em nossa região continental.
Essa visão claramente antimilitarista decorrente de um trauma histórico faz com que setores da sociedade civil busque limitar a ação dos militares, e faça exigência (ao menos no discurso) de transparência das atividades militares como forma de preservação da democracia regional. Por isso que militares ascendendo o poder em nossa região, a medida que hajam sem transparência e pareçam estimular fatores do passado, aumentarão também este fator de desconfiança que seguramente não é positivo para as forças armadas locais.
Mas ao mesmo tempo esse impasse gera um potencial antagonismo que pode ser observado na polarização entre o risco da perda da primazia da política (dos civis) face aos planos e operações militares e por outro lado da penetração na sociedade civil por imperativos militares, interesses, cuidados de autoimagem e aspectos de cultura próprios da caserna.
No caso atual este dinamismo pouco compreendido gera um problema crônico dada a polaridade produzida em nossa sociedade. Qual problema? Não se consegue conceber e gerar pontos de encontro para um projeto nacional de desenvolvimento industrial que encontre de forma favorável e combinada esforços de setores civis e militares.
Por isso, a natureza dos últimos dois governos federais brasileiros, com forte atividade e influência de setores militares viu a atuação de burocratas advindos da caserna em favor contrário aos interesses de independência e soberania nacional, vez que com eles o estado nacional se fragmentou, a sociedade se dividiu e combinado a isso, avança em nossos dias a articulação entre setores do crime organizado em toda a região continental tendo como ponto de partida o Brasil.
Esse aspecto é diferente em países desenvolvidos, nestes países a esfera política, o exército, a ciência, a tecnologia e a economia fusionam-se em processos colaborativos e de influência mútua com projetos produtivos comuns. Por isso a visão sobre o militarismo é mais ampla. E mais ampla inclusive que a de complexo militar industrial, ainda que alguns destes países tenham desenvolvido também tal complexo, caso típico dos Estados Unidos. A pesar disso, nos últimos anos, em setores de classe média empobrecidos aumentou o sintoma de rechaço às intervenções militares estadunidenses, parte deste eleitoral votou em Donald Trump.
Mas é evidente que no decorrer das últimas décadas ocorreu um avanço qualitativo no entendimento do que é o militarismo em muitos países do mundo. Um avanço qualitativo que implica na sociedade civil incorporando premissas militares que geram sistemas sociais conhecidos: sistemas de vigilância, controle, registros, cada vez mais observados como tendência. Este desenvolvimento agora é incorporado como ferramenta para submeter países em que a visão de militarismo é tradicional, e a forma de manifestação dessa cultura de controle de dados e vigilância é naturalmente é coincidente com sua tradicional polarização entre militares e civis.
A Batalha do Complexo militar-industrial (onde ele existe) amplia-se e converte-se em batalha pelo sistema todo. Isso porque há manutenção dos processos de transferência de riquezas dos países subalternizados geopoliticamente através da imposição de aparatos de ameaça e vigilância estratégica de seus complexos militares e de inteligência. Lembrando-se que em países como os Estados Unidos parte importante da economia é gerada por “necessidades militares”, muitas vezes guerras (convencionais e não convencionais) em território alheio.
Vejamos que países europeus possuem muitas características desse militarismo sistêmico sem ter um complexo industrial como os Estados Unidos. Essa situação permite que tenham uma relação menos subordinada face a países de maior acumulação de arsenal armamentístico que países da América Latina e Ásia, em que os Estados Unidos figura como “representante” político-militar. Evidentemente com a criação dos BRICS surgiu a visão de desenvolvimento autônomo, inclusive neste setor, com a apresentação de iniciativas de colaboração de tecnologia militar entre China e Rússia e de possibilidades de aproximação com Índia. Mas com Brasil e África do Sul, marcadas pelo antagonismo de forças militares e civis (ditadura militar e apartheid), essa visão estratégica não se deu combinada ao campo militar.
Caráter comparativo de subdesenvolvimento no processo industrial moderno
Enquanto em nossa região a obsolescência programada é de automóveis, em países como os Estados Unidos, isso se dá com a produção de armamentos.
Se há multiplicação de produtos similares por marcas distintas para produtos do cotidiano doméstico em nossa região, no caso dos países centrais isso ocorre com tecnologia militar, como de foguetes intercontinentais, o que explica, entre outros fatores, a política de intervenção em nosso discreto desenvolvimento setorial com a internacionalização da Embraer e sua transferência para a Boeing americana. Como explica também a tomada da base de lançamento de foguetes de Alcântara no Estado do Maranhão, que mesmo a esquerda nacional insiste em classificar como irrelevante, ou até mesmo positivo (a visão de subordinação e dependência neste caso deixa de ser conduzida por ações de inteligência e desenvolvimento tecnológico interno e passa a ser instrumento de dependência justificada por publicidade de tipo eleitoral).
Em países como o nosso o desperdício econômico ocorre na propaganda comercial e eleitoral, enquanto que no caso de países de militarismo sistêmico o desperdício ocorre nos investimentos extras na produção de armamentos. Isso gera concentração de meios de produção de elites subalternizadas em nosso caso, enquanto no caso destes outros ainda que a concentração também ocorra, o enfoque maior é no avanço competitivo e desigual em suas capacidades de produção e na destruição da competitividade industrial ou de ameaça militar adversária, o que favorece a capacidade destes imporem produtos mais caros a nossos mercados.
Em algum momento este mesmo processo de adiantamento de tecnologias existiu na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e que de algum modo este embrião se manteve mesmo com sua queda o que agora, em um cenário de retomada econômica, faz com que Rússia desenvolva um complexo militar combinado a processos de desenvolvimento tecnológico.
Mas o certo é que entre potências e países desenvolvidos há uma busca constante de superação que gera uma suposta simetria no desenvolvimento das tecnologias e aplicações práticas em cenários de conflito em países de terceiro mundo.
Em um país dependente na ordem econômica global desenvolve-se o subdesenvolvimento. Por isso que no campo geopolítico de disputas de modelos militaristas e econômicas a estes países impõem-se o conceito de Guerras Assimétricas.
No cenário atual, nas guerras assimétricas vários e alguns novos instrumentos são utilizados como mecanismos de contra-insurgência (primaveras), ações de inteligência e espionagem, convert actions program, ou seja, operações encobertas que visam cumprir secretamente objetivos de missão militarista sem que ninguém saiba quem patrocinou ou executou a operação, ou mesmo em alguns casos, sem que ninguém saiba que a operação ocorreu.
Também em um cenário de dependência, países de terceiro mundo convertem-se em mercado para armas velhas, por isso ocorreu o fim de nosso setor aeroespacial e a doação de equipamentos militares velhos a Brasil e Argentina recentemente (governos Temer/Bolsonaro e Macri). Estes mesmos equipamentos podem ser objeto de práticas de hostilidade a sociedade civil, quando a radicalização entre militarismo e democracia é fortalecida, inclusive de forma coordenada por meio da estimulação de cenários de divisão social e criação de inimigos nacionais internos. E claro, quando os atuais governos ampliem sua política de turbo capitalismo dependente, sem direitos trabalhistas e previdenciários e reduzindo nossa economia a de exportação de produtos primários ou de escala produtivo inferior no comércio global.
Um caso típico de aplicação destas técnicas no passado foi a guerra do Vietnã. Naquele conflito ocorreu a superposição de diversos países imperialistas na região com a atuação final de conflito protagonizada pelos Estados Unidos em enfrentamento direto com a União Soviética em um cenário mesclado de proxy war (guerra por procuração), mas com ação beligerante direta das forças armadas norte americanas no território. Estes últimos, os EUA, tiveram em sua prática atuação de instrumentos de controle de insurgência no país oriental (insurgency-control), somada a controle de distúrbios no próprio território estadunidense (riot-control).
Esse controle externo e interno pode ser um modelo em aplicação atual para o Brasil, impondo a readaptação de uma nova normalidade institucional, reforçando o caráter de subimperialismo, de subimperialismo de exclusão em atividades de guerra assimétrica. Explica também porque uma guerra de informação e desinformação como a instalada em nosso território deve vir sempre combinada com fatores de riot-control dentro das forças militares (de forças armadas e polícia) de rango intermediário inferior para garantir a estabilidade e unidade nas ações de controle de contra insurgência.
Por isso, agora que mais uma vez instrumentos de guerra não convencional se confundem com a política, as potências impõem a países de terceiro mundo conflitos por terras, standards de etiquetamento e sua visão de Direito própria – exemplo do que vimos no recente caso da “defesa da Amazônia” através da desqualificação do governo brasileiro (com colaboração de agentes do próprio governo local) e a imposição de um discurso de tutela internacional da região. Isso enquando superpotências como os Estados Unidos impõem aos aliados desenvolvidos e com maior soberania relativa, uma dependência organizada, já que a capacidade militar destes é superior em termos bélicos, tanto quanto na capacidade em operações não convencionais permanente (segurança ontológica e mecanismos contra guerra híbrida).
Em uma crise como estamos experimentando em nossa região, os governos subalternizados impõem-se sobre grupos da população, reforçando antagonismos, reforçando hierarquizações sociais e gerando processos de genocídio como técnica de transformação social. A anestesia de setores democráticos e progressistas favorece um cenário como este.
Uma das aplicações desse modelo de técnica de transformação social e reforço da hierarquização social, em países de estados falidos, ocorre por meio da estimulação de maiorias populacionais ou grupos de setores de classe média alta e ricos em impor-se frente a minorias étnicas e de setores políticos, como foi operada recentemente no caso do golpe boliviano e ou em múltiplos exemplos no Oriente Médio. Esta aliás parece ser a aposta futura do novo standart de justiçamento que comove setores conservadores, de ultra direita e mesmo da esquerda partidária e comportamental no Brasil: o terrorismo interno.
A esse respeito, muito antes Donald McDonald, no texto intitulado “Militarism in America” publicado em The Center Magazine, no ano de 1970, disse que “a problemática do militarismo no terceiro mundo não é tão pouco algo independente senão que está integrada a estrutura de reprodução dependente predominante”. Isso porque, onde há alguma autonomia política, a problemática tradicional do militarismo que antagoniza aparato militar a aparato civil, trata-se de um fator importante a ser superado para garantir o avanço e estabilização dessa autonomia a fim de garantir soberania.
Nosso desafio atual
Um dos desafios para compor um projeto de emancipação e soberania nacional em nosso caso atual é o desenvolvimento de um modelo de crescimento soberano que ajuste as relações de colaboração geo-estratégicas combinando interesses econômicos, sociais e políticos de setores militares e da sociedade civil nacional (econômicos, acadêmicos, sociais, políticos).
Outro desafio é gerar formas de resistir às técnicas de subordinação hierarquizada da sociedade que acomoda de forma conservadora setores de classe média, funcionários públicos e agentes militares. E resistir também a mecanismos de divisão social ativados por técnicas de cismogênese, como temos vivido atualmente em nossa sociedade.
Por isso talvez seja que Juan Domingo Perón, um militar que teve carreira política e desenvolveu um modelo econômico baseado em direitos sociais, dissera na apresentação de seu modelo filosófico, A comunidade organizada, que um homem só se realiza quando sua coletividade se realiza, e esta somente se realiza por meio de sua comunidade através de sua auto-organização e sendo essa auto-organização forma de realização de cada uma das potencialidades individuais em ação coletiva. Essa comunidade só pode realizar-se em nações que realizam sua autonomia, sua singularidade, e esta por sua vez, somente se pode vislumbrar por meio de uma autonomia colaboracionista entre estados soberanos em nossa sub região continental.
Luiz Ferreira Júnior é advogado, Mestre em Direitos Humanos – Universidade de San Martín (Argentina) e Mestre em Comunicação Midiática – UNESP.
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