A última razão do crime

Por Felipe Quintas, Gustavo Galvão e Pedro Augusto Pinho.

 

O neoliberalismo entrou no Brasil durante os governos militares. De modo geral, esta ideologia fermentou na Europa, a partir da II Grande Guerra, como um contraponto à vitória do industrialismo, quer no mundo ocidental, com o capitalismo estadunidense, quer no oriental, com o comunismo soviético.

Mas estes princípios, autodenominados libertários e às vezes protetores do ambiente, foram acolhidos pelo capital financeiro como a nova força para seu empoderamento. Nosso erudito leitor está recordando que, por todo século XIX e início do XX, foi o Império Britânico, com a força do capital financeiro e das suas canhoneiras, que levaram a dominação do mundo aonde “o sol nunca se punha”.

As duas grandes guerras da primeira metade do século XX recolocaram este poder no outro lado do Atlântico e na proximidade dos Montes Urais. As finanças deixaram de dar as cartas e se subordinaram, por breves décadas, ao capital industrial, então indissociável do Estado-nação, à época comprometido com a compatibilização entre acumulação privada e cidadania.

É o ápice do neoliberalismo: cada um por si e todos contra todos

Devemos refletir um pouco mais sobre esta mudança. O valor do trabalho, reconhecido pela burguesia do século XVIII, não se entranhou na sociedade europeia, mas na que se constituía nos Estados Unidos da América (EUA).

A nobreza jamais foi laboriosa. Sua forma de vida é o tráfico de relações, entrecruzar de famílias, a herança e o uso do nome. Criou-se a distinção da direção para execução, atribuindo à primeira complexidades e saberes não disponíveis no trabalho (mesmo quando não mais escravo).

O industrialismo vai prestigiar o trabalho. Tentará transformá-lo em riqueza, ao menos moral. Busca uma tradição na realização emocional dos artesãos para dar um fio condutor moderno à mais antiga atividade do coletor caçador: o trabalho cotidiano.

Veja leitor que em nossa história, desde Tomé de Sousa até 1930, ou seja, por mais de quatro séculos, a estrutura de poder se assentava apenas em dois pilares: as finanças e a repressão. As finanças acolheram a filha dileta: a agricultura para exportação; já a repressão se transvestia de direito com a burocracia judiciária, sem descuidar da força da polícia. Educação, saúde, transporte, construções, fabricações nada disso constava das estruturas de poder na colônia, no império e na primeira república.

Fomos um país pobre, ignorante, mesquinho, escravista, conduzido colonizadamente pelas finanças. E, após o interregno 1930–1980, voltamos a o ser com a Nova República, o País das Finanças, e em intensidade crescente, apesar da continuidade mais lenta de avanços sociais em parte desse período. Cinquenta anos contra cinco séculos, é a tragédia nacional.

Com os governos Temer–Bolsonaro, desmorona-se o modelo de organização social que foi construído no desenvolvimentismo brasileiro. O que significa isso? Que o trabalho, que dava significado à vida, enobrecia as pessoas, desfez-se. E não foi a desconstrução apenas nas relações sociais, mas da própria proteção legal.

O neoliberalismo, hoje, jogou o trabalho no lixo e desfez, sem cerimônia, todo esforço institucional e ideológico para torná-lo sinônimo de dignidade humana. Agora é risível a expressão: o trabalho dignifica o homem, diante dos uberismos, empreendedorismos, pejotizações e da financeirização da vida.

Uma vertente da violência tem neste desmoronamento sua fonte. O que nos leva à questão da segurança. E, abrindo este espaço, a suspeição, a desconfiança das notícias, dos comandos que nos chegam por todas as fontes, institucionais, estamentais, profissionais e, mesmo, de pessoas próximas, pois “repercutem o que desconhecem”.

E como a outra face da moeda, a insegurança retrai a solidariedade. É o ápice do neoliberalismo: cada um por si e todos contra todos. Os laços mais consistentes tendem a romper facilmente, tornando as pessoas suscetíveis a mil manipulações em nome da “segurança”.

Juízes, políticos e empresários são no Brasil, ao fim da segunda década do século XXI, quase um sinônimo de bandidos, de agentes marginais. Assumem o papel de sócios dos governos e dos capitais estrangeiros, fazendo do seu próprio país um ferro-velho de outrem. Em um país reduzido a tão ignóbil condição, a economia ilícita, oficializada ou não, sustentada por uma política mafiosa, assume direção, agravando as “perdas internacionais” já denunciadas por Leonel Brizola.

Guerras e pestes para os que escaparem das drogas e das repressões

E nesta tragédia da nossa sociedade, aqueles que mais facilmente atingem fortunas financeiras, os traficantes de drogas e armas, ocupam o poder com seus lavadores de dinheiro: as igrejas, principalmente neopentecostais, pois fora dos controles fiscais, tributários e patrimoniais. E, sob a proteção do crime, a segurança pública, e mesmo a nacional, tem nova concepção.

Havia nas escolas militares, nos anos 1970, o temor de ser atribuído aos militares a segurança pública. Mais de um oficial general, em todas as armas, afirmavam que o contato com a droga, a marginalidade, seria fatal para a instituição.

Hoje já não constitui segredo que o pacto celebrado entre o Primeiro Comando da Capital (PCC) paulista e os governos do PSDB foi fundamental para a redução estatística de homicídios e o aumento vertiginoso na difusão das drogas. E, com uma desfaçatez incrível, ainda atribuem aos estudantes, às “esquerdas”, as orgias filmadas, fotografadas em estúdios, como se fossem colhidas em campi universitários.

Os autodenominados conservadores, atuais timoneiros do Estado, defendem o crime como parte de seu governo, mas, para disfarçar, jogam a culpa, maliciosamente, sobre os estudantes e professores, e de fato sobre a própria educação.

Fazem isso para se proteger dos próprios crimes, como um ladrão que, logo após o furto, grita “pega ladrão” para distrair e causar confusão nos incautos. Ademais ganham, com essa tática suja, um afago das grandes potências estrangeiras, inimigas de um Brasil soberano, pois essas temem, mais do que tudo, que nosso povo seja instruído, ganhe saber e consciência.

Mas há ainda um aspecto mais grave, que este atual governo incorporou: datar o fim das Forças Armadas (FA) brasileiras. Para que FA? Nossas fronteiras estão sobre o controle das máfias das drogas, aliadas a agentes estadunidenses da DEA e da CIA, britânicos do MI6 e israelenses do Mossad. Também patrulham, a seus serviços, as polícias de fronteiras e unidades militares.

Com a renúncia do Brasil a sua soberania, não se pode esperar investimentos nos centros tecnológicos e de pesquisa militares, como o ITA e o IME, e nem na Indústria Nacional de Defesa, que foi destruída ou desnacionalizada nos últimos anos para empresas de apenas dois países que fazem este governo de capacho. E quem não se enquadra, de algum modo desaparece por transferência ou acidente. Até que ponto os órgãos de informação estão adequadamente informados ou teleguiados de fora é uma benéfica dúvida.

Mas estará toda FA comprometida? Certamente que não. Mas os que, no mínimo, não fazem “vista grossa” terão muita dificuldade em progredir, em alcançar postos e incumbências que lhes deem satisfação profissional.

Reflitamos um pouco mais sobre o Estado das finanças, dirigido por instituições criminosas e interesses estrangeiros. O neoliberalismo jamais escondeu seu projeto de Estado Mínimo. Por que mínimo e não nenhum Estado?

A resposta está em nossa própria História mostrando um Estado que serviu só para garantir a rentabilidade das finanças e para impedir ou para massacrar a revolta dos despossuídos. Mas se é tão claro e evidente, por que não vemos reação? Duas são as causas que identificamos.

A primeira, muito grave e importante, é o controle privado das comunicações. Apenas nos governos autoritários (Getúlio Vargas e militares) houve a tentativa, logo combatida e desfeita, de efetivamente criar um sistema estatal de comunicações. Este era acusado de ser uma forma de censura, de tirar a liberdade – mas de quem? (como se a Globo e a Igreja Universal do Reino de Deus, entre outras menos votadas, abrissem seus canais para o “povo em geral”).

O controle da mensagem já nem mais é feito no país, com o uso de robôs espalhados pelos continentes, atingindo toda comunicação virtual. E quem está livre de um smartphone em nossos dias?

Sem mensagens alternativas, como esta que usamos, nenhuma reflexão seria possível. E estamos ameaçados, por interrupções intencionais ou economicamente, de não conseguir continuar analisando e divulgando interpretações fora do modelo colonizador.

A outra questão é a oposição. O que é a esquerda, fora das referências históricas? Desde a formação do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), nos governos militares, a hipotética oposição foi se afastando cada vez mais da realidade e do interesse nacional. Chegamos a ter muito mais ações nacionalistas com o Governo Geisel do que com todos os que se seguiram à Nova República.

Há um conceito na antropologia, devido a Gregory Bateson (1904–1980), denominado “cismogênese”. Ele significa a simetria entre as oposições, que a realimentam. Assim, a existência do comunismo faz surgir o anticomunismo, e cada manifestação de uma parte fortalece a oposição da outra. Elas se alimentam dos opostos.

Na política, que não discutiremos aqui, estas oposições nem precisam ser efetivas. A esse respeito, o leitor interessado encontrará um bom trabalho em O conceito de comunicação na obra de Bateson – Interacção e Regulação, da doutora Maria João Centeno, editado pela Universidade da Beira Interior, 2009, e disponível neste link.

Durante a campanha pelas “Diretas Já”, as manifestações que reuniram 1 milhão de pessoas na Candelária (Rio de Janeiro) e 2 milhões na Praça da Sé (São Paulo), mais do que ameaçarem os governantes, colocaram pânico nas lideranças oposicionistas, que trataram de evitar este “estuário de insatisfações de distinta natureza” (José Sarney, que se bandeou para a oposição).

É a velha receita das elites: tome a coroa antes que um aventureiro a tome ou façamos a revolução antes que o povo a faça.

Não há oposição nem esquerda que tenha hoje atuação política transformadora. Vamos sendo amoldados numa nova sociedade, dominada pelas drogas, pelas finanças e pela corrupção. A soberania nacional e a cidadania ficam restritas aos livros.

Mas não estamos vendo ainda o fim. O modelo concentrador de renda impede a expansão demográfica: não haverá como alimentar ou cuidar de um número crescente de seres humanos. Para estes financistas é imperioso restringir o quantitativo da espécie. O neoliberalismo é também neomalthusiano.

Mantida a situação atual, aguardamos no estágio vindouro guerras e pestes exterminadoras, para os que escaparem das drogas e das repressões. Será a última razão do crime que estas gerações cometerão, em nome da animal sobrevivência dos mais competitivos (!).

Texto Publicado originalmente no Monitor Mercantil, em dezembro de 2019, 65 anos do suicídio de Getúlio Vargas pela soberania brasileira. Que o seu exemplo ecoe no presente e no futuro.

 

Felipe Quintas, Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense.

Gustavo Galvão, Doutor em economia e autor de As 21 lições das Finanças Funcionais e da Teoria do Dinheiro Moderno (MMT).

Pedro Augusto Pinho, Administrador aposentado.

 

 

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