A estrutura da ditadura digital brasileira: “Patriot Act” Tabajara (ou “Novo AI-5”)

Hoje as comunicações digitais permeiam cada detalhe da vida moderna. É impensável a administração de qualquer tipo de organização nos dias de hoje sem pensarmos em sistemas da informação. Celulares, tablets, computadores e, mais recentemente, até relógios são dispositivos de processamento de informações. E, mais que isso, são todos eles interconectados.

Pense no seu dia a dia e faça uma experiência: tente ficar 24h sem utilizar um mensageiro instantâneo (Whatsapp, Messenger, Telegram), sem fazer uma busca no Google, acessar seu e-mail, utilizar as redes sociais (Facebook, Twitter, Instagram). Mais: tente não acessar a internet por completo!

Quase impossível, certo? Esqueça o contato com telefones de qualquer tipo…

Vamos aprofundar essa experiência: olhe para cima nas fachadas dos prédios, casas, lojas, bancos, fábricas e até em alguns postes e perceba as câmeras de circuitos internos de TV. Preste atenção dentro dessas mesmas construções e observe que as câmeras estão também presentes nos ambientes internos.

Agora, indo um pouco mais longe, pense nos cartões utilizados em ônibus, trens e metrôs, notas e cupons fiscais, compras nos cartões de crédito e débito, nas interações com repartições públicas e até mesmo em uma simples coleta de material para exames; no salário que você recebe ou as transações feitas por sua empresa.

Por que estou falando disso?

Em nossos dias, praticamente todas as interações sociais e econômicas são permeadas por meios digitais. Os bancos de dados utilizados por governos e empresas permitem agilizar, facilitar e baratear a vida de todos. Os meios de comunicação digitais permitem um acesso inigualável a informações úteis e uma interação antes impensável com pessoas do mundo inteiro.

Sistemas de GPS permitem que você se oriente com precisão em qualquer ponto da Terra, facilitando que você chegue a qualquer lugar com mapas digitais. Os sistemas administrativos permitem que os governos tenham registros precisos que podem ser usados para traçar políticas públicas e facilitar a interação com o cidadão.

Mas, por outro lado…

O fim da privacidade e o Estado de controle total
Como escrevi em outro artigo, nossos hábitos de navegação são monitorados para determinar nossas tendências de comportamento. Imagine se alguém tivesse acesso a, além de seus padrões comportamentais, todas as informações da sua vida?

Como podemos perceber com as observações de apenas um dia hipotético — offline –, a única chance de uma pessoa não interagir com sistemas de tecnologia da informação nos dias de hoje significa, na prática, isolar-se da civilização. E viver uma vida de eremita. O cruzamento de dados pessoais já significa um ataque direto à privacidade, uma vez que de posse desses dados pode-se traçar um perfil de controle total da vida de cada cidadão. É exatamente disso que tratam os Decretos 10.046/2009 e 10.047/2019, editados recentemente por Jair Bolsonaro.

Mas, nada é tão ruim que não possa piorar…

 

A bisbilhotice liberada e legalizada
Quando foi implantado pelo governo George W. Bush, logo após os atentados de 11/set/2001, o chamado Patriot Act (ou “Lei Patriótica”), foi considerado uma legislação de exceção por juristas e especialistas em todo o mundo. Pelo texto da lei americana, o governo ficaria autorizado a monitorar as comunicações de todo e qualquer cidadão americano e estrangeiro que fosse suspeito de “terrorismo”.

Muitos estudiosos avaliavam que o Patriot Act correspondia a um ataque sem precedentes às liberdades individuais. A União Americana para Liberdades Civis afirmou que “o ato ameaça nossas liberdades civis mais básicas “.

A Eletronic Frontier Foundation afirmou que o rebaixamento nos requisitos para grampos “daria ao FBI um cheque em branco para violar incontáveis conversas de inocentes americanos”. O documentário “Fahrenheit 9/11″, de Michel Moore, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, mostrou como a sociedade americana se transformava em um cenário social de distopia devido a essa lei. Mais grave ainda, parlamentares admitiram que sequer leram o projeto de lei antes de aprová-lo (!):

 

Novamente, nada é tão ruim que não possa piorar: no Brasil, os Generais por trás de Bolsonaro — Heleno, Mourão e Villas Boas — querem ir muito além do original americano!

 

O “Patriot Act” Tabajara, ou “Novo AI-5”

Fiquei surpreso quando um “Expressonauta” revelou a existência do Projeto de lei 2418/2019. E como ele passava despercebido da sociedade e do Legislativo nacional. E que, pelo seu regime de tramitação, nem mesmo seria votado no Plenário, mas apenas nas Comissões (tramitação em “caráter conclusivo”).

O PL2418/2019 (texto aqui) legaliza o monitoramento de aplicativos de troca instantânea de mensagens (como o Whatsapp). Tal projeto também prevê que tal controle será dado aos militares!

O nível de absurdo, considerando os marcos constitucionais e de direitos fundamentais mais básicos do mundo contemporâneo, só piora devido à forma de tramitação. Tal Projeto de Lei não será votado no Plenário da Casa! E, a esse respeito, nenhum parlamentar da oposição se propôs a coletar as meras 51 assinaturas necessárias para, pelo menos, obrigar a isso. Notemos: só o PT tem, sozinho, 55 Deputados. Como explicar tal omissão?

Caso um projeto desse tipo fosse votado em Plenário, a movimentação social em torno do mesmo certamente tornaria o mesmo inviável, posto que traria luz para atividades de ordem suspeita dentro do Legislativo e poderia mobilizar a sociedade brasileira. Ora, até mesmo os militares de baixa patente e demais forças de segurança (e.g., PMs, Polícias Civis, bombeiros) utilizam aplicativos de troca de mensagens (como o Whatsapp) para discutir seus anseios e problemas. Inclusive os de natureza trabalhista e previdenciária. Muitas vezes, contra os desígnios dos Generais (como na Reforma da Previdência e no Plano de Reestruturação da Carreira Militar).

Indo além, o PL 3389/2019 (texto aqui) visa a acabar com o anonimato na internet, obrigando cada perfil de rede social a estar associado a um CPF. Trata-se de algo extremamente preocupante em um momento em que a internet passará — assumidamente (ver aqui) — a ser controlada pelos mesmos Generais do GSI — e não mais pelo Comitê Gestor da Internet, órgão civil de caráter misto.

Consideremos também o PL1595/2019 (texto aqui), que estabelece forças “antiterroristas”, com doutrina de ataque preventivo: atirar primeiro, checar se era ou não “terrorista” depois. Resguardadas, ademais, pelo uso de identidades falsas. Isso mesmo: forças clandestinas, exatamente como na Ditadura Militar. Para completar, a militância de esquerda é citada expressamente nesse projeto de lei como alvo prioritário (!)

Esse Projeto de Lei, de autoria do deputado Major Vitor Hugo (PSL-GO), filho espiritual do General Heleno (GSI), seria votado na Comissão de Relações internacionais no dia 16/out/2019. Felizmente, o deputado Glauber Braga (PSOL-RJ), depois alertado pelo Duplo Expresso, solicitou ao Presidente da Comissão de Relações Exteriores — o “Bolso-filho” 03 — a retirada do mesmo da pauta da Comissão, requisitando ademais uma reunião com Rodrigo Maia para que seja criada uma Comissão Especial para analisar esse projeto específico.

Tal Projeto de Lei busca regulamentar ações de governo para “prevenir e reprimir (supostos) atos terroristas no Brasil”. O texto abre brechas interpretativas para agir sobre atos que, mesmo não classificados como terrorismo, sejam considerados pelo agente público como “perigosos para a vida humana” ou para “alguma infraestrutura pública”. Ou mesmo que apenas “aparentem” sê-lo! Cabe tudo aí dentro…

Com o exemplo de Glauber Braga, outros parlamentares da oposição ousaram se expressar a respeito: “É excessiva a amplitude de previsões e não teve debate público sobre essa questão. Inclusive, ele é lesivo aos direitos fundamentais e é inconstitucional”, afirmou o deputado Ivan Valente (PSOL-SP). “O Brasil não tem sido vítima de atos terroristas. (…) Estamos em crise. Nós vamos criar mais custos, mais demandas para algo que não está atingindo o País? Isso vai ser utilizado é contra movimentos sociais, porque não temos nenhuma ameaça externa”.

Ficamos satisfeitos que parte da oposição tenha deixado, nesse caso específico, o sono letárgico em que se encontrava em relação ao PL 1595/2019. Isso porque, na Comissão de Segurança Pública e Crime Organizado, tal projeto tinha passado sem mesmo contar com a presença de integrantes da oposição (!). Faltaram à votação, por exemplo, estrelas como: Marcelo Freixo (PSOL), Rui Falcão (PT) e Paulo Teixeira (PT), todos eles membros titulares dessa Comissão. Assim, o PL acabou aprovado. E por unanimidade! Pasme: seus proponentes chegaram ao cúmulo de agradecer à oposição por não ter comparecido, facilitando a sua aprovação (!)

Vejamos finalmente os PLs 443/2019 (substitutivo do relator)5327/2019, que transformam crimes comuns, militância política e coisas como ato público/ ocupação em “terrorismo”, alterando a denominada “Lei Antiterrorismo”, aprovada às pressas sob direção do Governo Dilma Rousseff em 2016. Tal lei já podia ser considerada um instrumento bastante perigoso (criminalizando p.e. “atos preparatórios”); mas piora, muito, com esses PLs. A necessidade de uma legislação específica sobre terrorismo é bastante questionável. Ora, os próprios Estados Unidos, um dos alvos prioritários deste tipo de ação (ataques terroristas), não possuem uma legislação específica dessa natureza. Ou tampouco países como a Alemanha e outros tantos da Europa.

A ampliação total do tipo penal “terrorismo”, proposta pelos PL 443/2019 e 5327/2019, torna uma lei absurda ainda pior. Totalmente fora de um cenário de preservação de nossas condições democráticas, uma vez que as “salvaguardas” contra a criminalização de movimentos sociais, sindicais e políticos tornam-se virtualmente nulas em tais projetos.

A procuradora federal dos direitos do cidadão, do Ministério Público Federal, Débora Duprat defendeu que o crime de terrorismo seja reservado a situações excepcionais:

“A Constituição Federal trata economicamente do direito penal para que se usem outros mecanismos, como inteligência, por exemplo, para solucionar antecipadamente as possibilidades que o crime venha a ocorrer”.

Ela avalia que o texto, se aprovado, viola os direitos humanos. A entidade prepara nota técnica alertando o Legislativo sobre a inconstitucionalidade da matéria do projeto. Haverá tempo?

 

O que isso significa para o Brasil
Com o aprofundamento da crise econômica brasileira, os sinais cada vez mais fortes do estouro da chamada Bolha de tudo nos EUA e, consequentemente, a eclosão de uma crise econômica global, os EUA voltam a olhar para a América Latina com vistas à retirada das riquezas naturais e de direitos, visando ao aumento da exploração do trabalho. Tais ataques aos direitos e ao patrimônio do povo brasileiro, determinados sob os governos Dilma 2, Temer e Bolsonaro, fazem parte de uma tendência continental que, incorporada a um cenário de crise global já bastante claro, visa a cobrir o rombo de empresas e capitais oriundos do centro do capitalismo.

Os levantes populares, como vimos ocorrer recentemente no Equador, Haiti, Chile, etc. tendem a se tornar mais e mais frequentes. E a espalharem-se por todo continente. Nesse cenário, nada melhor para os governos entreguistas do que classificar todo e qualquer ato de enfrentamento ao regime como “terrorismo”!

Mais: nada melhor que mecanismos de controle total, em que uma pessoa não possa ter certeza que sua comunicação é confidencial; que cada passo, ação e atividade praticada dentro do território nacional seja minuciosamente monitorado; que cada discussão feita via internet seja monitorada e “legalmente” utilizada contra militantes políticos que tentem se levantar contra direções que se recusam a lutar; ou ainda contra os que tentam se organizar para impedir os ataques profundos que nosso povo vem sofrendo. Tais medidas de controle visam, juntamente, a manter a população submissa e indefesa, sem que para isso seja necessária a intervenção direta dos militares. Nada de “tanques na rua” ou “polícia do exército”. Ora, para quê?

A nova cara da ditadura se manifesta na face de leis, normas, portarias e decretos que paralisam a ação do que antes era a base das democracias, duramente conquistadas por luta. Seja pelo impedimento da prática, seja pelo medo de qualquer um que ouse discordar.

O aumento do controle e de aplicação da tecnologia para dominação ideológica, com o uso de sofisticadas tecnologias de modificação comportamental, através da imposição de controles e mapeamentos da população, autorizados por legislações que cada vez mais restringem os direitos civis, é uma tendência mundial. A nova ditadura do capital financeiro transnacional, por meio da ação de países e empresas de tecnologia associados a si, tenta se impor com mão de ferro e vestes de “democracia liberal”.

Se não nos mobilizarmos para combater essa tendência, teremos que assistir calados ao capital financeiro transnacional saquear nosso país com a conivência e apoio de nossa elite, cada vez mais desligada dos interesses nacionais e cada vez mais associada, ainda que de forma subordinada, à predação e à rapina vindas de fora.

Felizmente, dado o nível de pressão articulada em redes de comunicação e pela coragem de muitos brasileiros que os denunciam diariamente, o combate aos PLs que constituem o “Patriot Act” Tabajara, ou “Novo AI-5”, obteve amparo na atitude do Deputado Glauber Braga. É um início. Mas é preciso mais.

Nós, do Duplo Expresso, este novo movimento, nacional, popular e digital, chamamos as organizações e militantes que gritam contra o “fascismo”, genérico, que se juntem a nós no combate a esses projetos de lei: o fascismo na prática. Pois, se demorarmos demais, estaremos condenados a ficar gritando “No Pasarán”, enquanto que efetivamente eles já terão passado por cima de nossas cabeças e vidas. 

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Confira a ficha de tramitação no Legislativo dos Projetos de Lei do “Patriot Act” Tabajara/ Novo AI-5 nos links indicados abaixo:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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