Populismo (“sujo e pardo”) vs. social-democracia (“cheirosa e europeia”): o vira-latismo na análise política

Segue, abaixo, o resumo escrito do comentário desta semana do cientista político Felipe Quintas no Programa Duplo Expresso, com o tema “Populismo e social-democracia: o que esses rótulos escondem?”. O início da fala de Quintas já está marcado na janela de vídeo abaixo, bastando clicar play para inicia-la.

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“Populistas” e social-democratas: para além dos rótulos

Por Felipe Maruf Quintas, para o Duplo Expresso

Para o senso-comum, alimentado por décadas pela grande mídia e por intelectuais e ideólogos tanto da direita quanto da esquerda, há uma contraposição essencial, não apenas de contexto, entre, de um lado, os governos nacional-populares latino-americanos (alcunhados pejorativamente de “populistas”) e, de outro, as social-democracias europeias, considerando sobretudo sua hegemonia nos trinta anos seguintes ao fim da 2º Guerra Mundial, mas não só, pois a Era Vargas no Brasil e a Era Social-Democrata na Escandinávia começam nos anos 1930. A começar pelo rótulo: enquanto se qualifica a experiência europeia em seus próprios termos, adotando o nome de “social-democrata” que era o de grande parte dos partidos de esquerda que governaram lá, na América Latina se qualifica segundo um termo genérico que não corresponde à identificação política e partidária de então, seja ela trabalhista, peronista, aprista etc, todos eles ligados a um ideário nacionalista e popular. Reproduz-se, assim, as assimetria geral desses países no marco da relação centro e periferia, com os governos nacional-populares do centro sendo mais prestigiados que os da periferia, em razão de, nesses últimos, a adoção de políticas com o fito de promover a soberania e a solidariedade social perturbarem mais as relações mundiais de poder capitalista. Assim, o “populismo”, segundo esse senso comum, seria autoritário, estatizante, nacionalista, manipulador, hierárquico, arbitrário, demagogo, personalista e inconsequente, praticamente uma patologia derivada da rápida e desordenada transição do rural para o urbano e de um “caldo de cultura” propício à exaltação de líderes carismáticos. A seu turno, a social-democracia seria democrática, societária, pluralista, não-manipuladora, horizontal, internacionalista, moderada, responsável, herdeira zelosa das conquistas institucionais do liberalismo, como os direitos civis, a economia de mercado e a regularidade do sufrágio.

No entanto, essa caracterização dicotômica está longe de corresponder à realidade. Nem os social-democratas europeus foram adeptos do “livre-mercado”, cosmopolitas e plenamente democráticos, e nem os “populistas” de fato fazem jus a esse rótulo, pois se preocupavam com mudanças estruturais em seus países, dotando-os de maior soberania e desenvolvimento dentro de um quadro político preferencialmente democrático, assim como os social-democratas em seus países. Ambos compartilharam muitas semelhanças, devidamente contextualizadas em circunstâncias históricas, políticas e geopolíticas tão diversas e mesmo contraditórias. Tanto os social-democratas quanto os “populistas” participaram de uma mesma tendência no capitalismo mundial, nas três décadas subsequentes à 2ª Guerra Mundial, de fortalecimento do papel do Estado nacional na busca do desenvolvimento produtivo e social. Isso era respaldado pelo Sistema de Bretton Woods, que favorecia o relativo insulamento e tibieza das finanças nacionais e seu alinhamento às políticas governamentais de caráter desenvolvimentista e socializante, com a produção e o bem-estar acima da especulação. Todos incorporaram, pela primeira vez de maneira sistemática, as massas populares como agentes legítimos da participação na esfera pública e como beneficiários das políticas estatais e da produção de riquezas. Ambos priorizaram a participação eleitoral através da formação de partidos organizados e competitivos, aceitando mecanismos reformistas e conciliatórios, de maneira a promover reformas sociais sem necessidade de ruptura violenta. Mesmo o Estado Novo brasileiro, regime autoritário instituído por um golpe liderado por Getúlio Vargas, plantou as sementes para a formação de um regime democrático que o sucederia, como, por exemplo, o sindicalismo corporativista que viria a ser consagrado na Constituição democrática de 1946.

É bastante comum diferenciar as experiências nacional-populares das social-democratas pela questão da democracia: enquanto os primeiros seriam autoritários e corporativistas, os segundos seriam democráticos e pluralistas. No entanto, essa distinção rígida precisa ser relativizada e colocada em cada contexto. Enquanto a social-democracia na Suécia e na Noruega foi possível dada uma democratização prévia da política e da sociedade nesses países, o “populismo” no Brasil e na Argentina foi uma força democratizante, incorporando às instituições políticas um grande contingente popular outrora excluído. O voto feminino, por exemplo, foi conseguido no Brasil em 1934 com Vargas e na Argentina em 1947 com Perón, em governos ditos populistas, enquanto na Noruega o voto feminino veio em 1913 e na Suécia em 1918, antes da social-democracia chegar ao governo. Foi Jango quem propôs no Brasil a extensão do direito de voto aos analfabetos e foi derrubado por um golpe apoiado pelos setores contrários ao populismo. Foi Perón quem aprovou a eleição direta para presidente e senador com a reforma eleitoral de 1949, acabando com o Colégio Eleitoral e com a eleição de senadores pelos parlamentos provinciais. Além disso, as social-democracias europeias não foram abaladas por oposições golpistas, o que lhes permitiu permanecer por bastante tempo no governo (44 anos seguidos na Suécia – 1932 a 1976; e 30 anos seguidos na Noruega – 1935 a 1965 – com mais 12 anos entre 1969 e 1981), enquanto os “populistas” latino-americanos foram praticamente todos, com relativamente pouco tempo de governo democraticamente eleito, derrubados por meios de golpe e fraude por parte dos setores anti-populistas e anti-populares. Havia de fato autoritarismo, mas não, sobretudo, por parte dos “populistas” e sim de seus opositores oligarcas, atrelados à hegemonia estadunidense debaixo da qual, de uma maneira ou de outra, abrigavam-se e protegiam-se as social-democracias europeias.

Além disso, tanto a Suécia quanto a Noruega estiveram longe de serem paraísos democráticos. Ambos os países praticaram oficialmente, da década de 1930 até a de 1970, esterilizações forçadas contra deficientes e ciganos, visando ao “melhoramento” da sociedade. Soube-se, em 1973, da agência secreta de espionagem sueca IB, diretamente ligada ao governo social-democrata e escondida do Parlamento. O caráter não-oficial do órgão, suas relações com a CIA, suas espionagens ilegais sobretudo contra esquerdistas, e práticas criminosas cometidas por seus espiões, como a invasão das embaixadas do Egito e da Argélia e a tentativa de induzir pessoas investigadas a cometer atos criminosos, relativizam a propaganda social-democrata de absoluta perfeição democrática e humanista. Se isso ocorresse no Brasil de Vargas ou na Argentina de Perón, certamente haveria uma grande divulgação desses fatos com o intuito de depreciar toda a política “populista” por eles executada.

O corporativismo (de caráter democrático em todos os países aqui citados), enquanto arranjo institucional para a criação de consenso em torno de políticas públicas através da articulação e negociação entre as forças sociais organizadas no âmago do Estado, foi muito mais forte, nacionalmente centralizado e com centrais sindicais muito mais abrangentes no conjunto da população e ligadas aos partidos de esquerda nas social-democracias escandinavas que no “populismo” latino-americano, embora tenha sido esse último quem tenha levado a fama injustamente ruim. As “negociações centralizadas de salário na Suécia”, parte fundamental da estratégia nacional de desenvolvimento do plano Rehn-Meidner[1], e os “comitês de contrato” na Noruega, foram grandes mecanismos de concertação política nesse sentido, muito mais efetivos, abrangentes e eficazes que os existentes em qualquer país latino-americano no período. O corporativismo foi complementado com leis trabalhistas em todos esses países, sempre expandidas durante os governos nacional-populares. Intimamente ligados ao corporativismo estiveram o nacionalismo e a capacidade de planejamento estatal para promover o crescimento industrial e do bem-estar, aspectos centrais das social-democracias escandinavas, que estiveram longe do “internacionalismo” e da “economia de mercado” apregoados por seus supostos defensores que usavam esses pretensos fatos como argumento contra o “populismo” latino-americano.

Os vínculos corporativistas de parceria entre as classes e os demais grupos nacionais propiciaram que a social-democracia na Suécia e na Noruega tenha sido, ao longo do século XX, fortemente nacionalista e com intenso controle estatal em seus aspectos econômicos e sociais. Até a década de 1990, Suécia e Noruega eram avessos à cooperação política regional e à integração em acordos internacionais que ameaçassem a autonomia nacional nos assuntos domésticos, tendo recusado participar, por exemplo, da Comunidade Europeia, ainda que Noruega e Dinamarca tenham aceitado fazer parte da OTAN. O “populismo” latino-americano, por sua vez, adotou uma política externa baseada na cooperação regional (que seria institucionalizada no Pacto ABC entre Argentina, Brasil e Chile) e na solidariedade terceiro-mundista, sendo, em grande medida, internacionalista porém contrário ao imperialismo estadunidense. Não houve, ainda, nenhuma xenofobia por parte dos “populistas”. Muitas das empresas nacionalizadas por Perón e organizadas na DINIE (Dirección Nacional de Industrias del Estado) eram alemãs e sua nacionalização foi apoiada pelos EUA, tendo seguido a ata final da Conferência de Chapultepec de 1942. Seu governo permitiu também a participação de petroleiras estadunidenses como a Drilex, em 1947, e a Standard Oil, em 1955, na exploração do petróleo argentino. No Brasil, Vargas mostrou-se aberto à participação do capital estrangeiro no desenvolvimento do país, desde que o conjunto das atividades fosse coordenada pelo Estado e limitando a remessa de lucros para o exterior, garantindo seu reinvestimento dentro do Brasil. No entanto, as condições externas pouco favoráveis no período restringiram a entrada de investimentos forâneos, mais direcionados para a reconstrução europeia até meados da década de 1950. Por outro lado, a Suécia a social-democracia manteve até os anos 1980 e 1990 diversas medidas nacionalistas, como o veto à entrada de bancos estrangeiros, o monopólio do Banco Central sobre transações em moeda estrangeira, a proibição de estrangeiros adquirirem minas e imóveis e o limite a eles de possuírem, no máximo, 20% das ações com direito de voto das principais empresas suecas. Em 1957, no mesmo espírito nacionalista da criação da Vale do Rio Doce por Vargas, 96% da companhia de mineração LKAB torna-se estatal, passando a 100% em 1976, assim permanecendo até hoje (e o Brasil, por sua vez, privatizou a sua mineração e rifou muito da sua soberania no afã de se desfazer de um “populismo” que não era diferente da tão aclamada social-democracia sueca). O Estado sueco, com recursos provenientes da previdência pública, investiu massivamente em energia, comunicações, mineração, habitação, rodovias e ferrovias (setores que eram e ainda são controlados, em grande parte, pelo Estado, nada diferente, em essência, do que o “populismo” pretendia na América Latina), incluindo participação das Forças Armadas em muitos projetos. Também subsidiou diretamente as grandes empresas nacionais e suas exportações. Na Noruega, além de fortes restrições à atuação de bancos estrangeiros, foram criados vários bancos públicos que assumiram proeminência nas políticas de desenvolvimento industrial, agrícola e social. Foi constituído, assim, o chamado “socialismo de crédito”, cujos objetivos eram semelhantes aos do “populismo” varguista com a criação do BNDE, do Banco do Nordeste e a expansão do Banco do Brasil e a Caixa Econômica. Naquele país, era vetado o controle estrangeiro do setor elétrico, fortemente controlado pelo Estado devido a seu caráter estratégico, razão pela qual também foi bastante ampliado no pós-guerra, com propósitos semelhantes aos dos governos “populistas” de Vargas e Jango ao criarem a Eletrobras e o Fundo Nacional de Eletrificação, ou seja, de ampliar a oferta de energia elétrica e reduzir seus custos para a indústria e a sociedade em geral, incrementando a produtividade e o bem-estar. A propriedade estrangeira também foi desencorajada nos segmentos de hotelaria e de varejo. No caso do setor de alumínio, também com forte participação estatal, firmas estrangeiras só eram permitidas se fizessem parcerias com empresas norueguesas, não sendo autorizada a propriedade completa de empresas no setor por estrangeiros. Tal como a social-democracia sueca ao estatizar a LKAB, a norueguesa esteve, com isso, imbuída do mesmo nacionalismo de Vargas ao criar a Vale do Rio Doce. A partir de 1967, adotou-se na Noruega uma política de nacionalização do petróleo. Em 1972, foi criada a empresa estatal de petróleo Statoil (hoje Equinor), e foi garantida por lei a ela uma taxa mínima de 50% de participação em todas as licenças. O Estado também obrigou todas as empresas envolvidas a investirem no desenvolvimento industrial e tecnológico norueguês, e as empresas estrangeiras foram encorajadas a participarem de projetos em parceria com as nacionais. Ou seja, na Noruega, o governo também disse “O Petróleo é Nosso” e buscou utilizar esse recurso natural para promover o desenvolvimento das cadeias produtivas nacionais em todos os setores, da exploração ao refino e à petroquímica, tal como o “populismo” varguista fez no Brasil com a criação da Petrobras, expandida nos governos militares. Se alguma coisa não havia nas social-democracias escandinavas, era a predominância do dito “mercado” com a qual era tradicionalmente representada. Havia, sim, um ativismo estatal ainda mais profundo que o existente nos governos “populistas” da América Latina, supostamente estatizantes em perspectiva mundial e muito criticados, equivocadamente, por isso.

Conclui-se, assim, que tanto as social-democracias europeias quanto os “populismos” latino-americanos, longe de serem contraditórios, representaram, no contexto internacional dos “trinta anos gloriosos” e dadas as circunstâncias específicas os países em que ocorreram, modos de reconstrução da totalidade desses países em um sentido mais soberano e igualitário. A desvalorização dos governos nacional-populares latino-americanos e a exaltação de uma social-democracia europeia erroneamente concebida fazem parte do mecanismo ideológico com o qual se pretende, sobretudo nos países subdesenvolvidos e periféricos, falsear a interpretação da realidade para melhor escondê-la. Com isso, pretende-se manter despercebida a dominação das oligarquias mundiais e seus lacaios locais e antinacionais sobre esses países, oligarquias essas contra cuja dominação se mobilizaram os “populistas” na América Latina em seus propósitos nacionalistas, desenvolvimentistas e socializantes. Mais ainda, independente de comparações internacionais, cabe sempre destacar a dignidade intrínseca de governos nacionalistas e populares sobretudo em países subdesenvolvidos, que mais precisam deles para superarem seus problemas estruturais.

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  1. Para uma breve análise do modelo sueco e seu caráter nacionalista e “dirigista”, cf. https://bit.ly/2TUWsAr e https://bit.ly/2Aw3diZ

 

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