Eu, Tu, Nós: Civilização
Por Amanda Rabusky, para o Duplo Expresso
“Quando você molha a cama, primeiro é morno, depois fica frio.” (James Joyce)DE1
Não raramente, escutamos as pessoas dizendo que querem ser felizes. O que é ser feliz? É de conhecimento que muitos filósofos, religiosos e estudiosos se deparavam e se deparam com esta pergunta. Ser feliz faz parte da vida, é o que todos querem, permanentemente. Seguindo a psicanálise, ser feliz é a ausência de dor e desprazer e a vivência de prazer, quanto mais prazer, melhor. Não sei se conseguem perceber o que está em jogo aí. Mas quando falamos em felicidade, queremos é cada vez mais prazer e cada vez menos desprazer. Isto parece simples, não é? Então por que é tão difícil alcançar a felicidade?
Sigo FreudDE2 para falar do desprazer, aqui um em especial, que é o desprazer de muitos em acordar diariamente e saber que Lula continua preso por um crime que não existe e que por não existir, Lula não o pôde ter cometido. Penso que esta infelicidade se faz presente em muitas pessoas que acreditam na democracia e na força da lei, ou seja, querem Lula livre, pois ele é o único capaz de fazer o referendo revogatório, chamando e unindo o povo para a manutenção da democracia e também querem que a Constituição seja honrada por todos. Além de querem viver com melhores condições na saúde, educação, segurança e economia, ou seja, querem ser mais felizes.
Há três fontes que nos impedem o alcance da tão sonhada felicidade, que são: as forças da natureza (furacões, terremotos, maremotos, etc); a fragilidade de nosso corpo (adoecemos e morremos); e, a insuficiência das normas que regem as nossas relações com os outros (família, Estado e sociedade). No que concerne às duas primeiras, nos rendemos ao inevitável, o que podemos fazer é diminuir o sofrimento e a dor, mas dificilmente se consegue abolir todo o sofrer. Quanto a terceira fonte, não aceitamos, não admitimos, lutamos e combatemos as instituições que nós (sociedade) criamos para, nos defender das ameaças e do sofrer e que, ao contrário, não estão cumprindo a função de nos proporcionar bem-estar e proteção. Estamos em luta contra o golpe, contra as finanças internacionais, contra um grupo do judiciário que por vontade e interesses próprios, que não são coletivos (povo brasileiro), resolve se apoderar e se apropriar do Brasil e para tal, criam e anulam leis. Leis, estas, fundamentais para a felicidade/prazer/satisfação.
Vamos fugir para as colinas e viver como ermitãos? Quem sabe assim seremos felizes? Isto é um engodo. Um tremendo engodo. O homem não se constitui sozinho, ele precisa do outro para viver e constituir-se. Basta pensarmos em bebês abandonados que não tem quem os cuide; o que acontece a eles? Morrem. Sabemos da lei: abandono de menores e incapazes é crime. É crime porque em seu mais alto grau, mata. Mas então por que temos vontade de nos isolarmos e muitas vezes temos sentimentos de hostilidade à civilização?
A civilização surgiu para a proteção dos homens e para a regulação dos vínculos entre os homens. Lembrem-se que os homens mais primitivos perceberam que viver em grupo permitia a sua segurança e se seus familiares, temos como exemplo, as construções de moradias, a utilização de instrumentos e o manuseio do fogo e também o benefício de poder contar com o outro, por exemplo, trocar o trigo pela carne, socorrer em momentos de queimadas ou destruição pelas forças naturais, etc. Em resumo, o que lhe é favorável.
Retornando à psicanálise, o homem se torna neurótico – sintomatiza – porque não pôde suportar a privação que a sociedade lhe impõe em prol de seus ideais culturais (as regras, normas, leis, etc) e entende que não havendo mais estas exigências, o homem poderia ser feliz, ou seja, ter prazer e cada vez mais prazer. O homem se priva de satisfazer suas pulsões para viver em sociedade. Temos um exemplo disto, quando os pais ensinam aos seus filhos o que podem/devem ou não fazer.
Percebem que o prazer (satisfação) e o desprazer estão diretamente relacionados ao que fazemos em e de nossas vidas? O homem está em constante busca desta felicidade. Mesmo com a mais forte vivência de prazer que é o amor sexual, o homem não se sente feliz. Nem com o amor que era sexual e agora é inconsciente – o amor de ternura (amizades, família, etc) – não lhe proporciona a sensação de felicidade. Este assunto de amor e sexualidade pode ser aprofundado em outro momento.
Avanços tecnológicos e científicos são desenvolvidos e criados para quê? Para trazer a felicidade. Seja diminuindo o tempo de trabalho, seja trazendo mais conforto, seja aumentando o tempo de lazer, curando doenças, diminuindo as distâncias entre as pessoas com aviões e celulares, enfim, inúmeras são as tentativas de obter prazer e diminuir o desprazer. Ainda assim, o homem continua não se sentindo mais feliz. Desta forma, parece que ser hostil à civilização, mesmo não nos sentindo bem nela, não é a solução para as nossas dores. Um estudo antropológico diria que o homem de cada época também apresentaria o mesmo sentimento de infelicidade e hostilidade à civilização. A hostilidade pode estar relacionada a pulsão (do alemão trieb) reprimida, que não foi satisfeita.
A pulsão de morte seria aquela “sensação/impressão” de que repetimos os mesmos erros e não conseguimos mudar tão facilmente. A pulsão visa a preservação da vida. Enquanto a pulsão de vida (sexuais – Eros) tende a auto conservação, a pulsão de morte tende ao estado anorgânico (inércia – Thanatos).
Observemos uma criança e veremos que o que ela busca é a sua satisfação, mesmo que para isto ela morda o amiguinho. Assim, prazer e desprazer fazem parte da vida, há uma tensão que precisa ser descarregada – o gozo. Mas mesmo com a descarga, com o gozo, não somos felizes. Podemos dizer que temos momentos de satisfação, de prazer, mas o que sabemos é que a felicidade é singular e tênue. Então a agressividade, esta que vemos no dia-a-dia, grupos se atacando, vizinhos brigando, famílias se separando, está diretamente ligada a esta pulsão de morte que faz parte do ser humano e que o indivíduo em troca de proteção e regulamentação sacrificou.
Viver em sociedade é viver sob a regulamentação de relações. Em que a força física não regulamenta mais, ou seja, a força passa a ser da maioria e não mais do indivíduo, e ela, a força, se conserva para qualquer pessoa. Temos então, algo muito falado, mas nem por isto muito atuado: o “Direito”. Sendo que o primeiro direito foi da ordem do tabu. Assim, o direito nasce para atender a uma força coletiva. Lembram do artigo 1º da Constituição – CRF de 1988DE4?
“Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Assim, o que temos é a exigência da justiça e a garantia que a legalidade não será violada em prol de um indivíduo. Mas isto não acontece sempre, algo sempre escapa. Temos então o sentimento de indignação, de revolta, de desordem – leiam o segundo parágrafo – quando esta ordem, esta legalidade não funciona mais, ou que favorece somente determinadas pessoas. Cabe a pergunta: como um indivíduo viverá feliz, se ele sacrifica suas pulsões (Trieb), seu prazer, sua satisfação e as outras pessoas não fazem o mesmo para o bem comum? Como libertar Lula das garras deste Outro que se apoderou das leis, mesmo quando a sua defesa segue as leis para soltá-lo?
Então, para finalizar, como seremos felizes, ainda que ilusoriamente, se estamos vivendo um estado de exceção? Um estado em que a ordem, as regras, as leis da sociedade perderam a sua valia? Fizemos uma escolha ao vivermos em sociedade, pagamos caro com o sacrifício de nossas pulsões e satisfação e este pagar caro, quando não retorna com o que esperamos da sociedade, pode nos levar a desordem e ao caos, já que o “acordo” entre os indivíduos e o Estado foi rompido e corrompido.
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DE1 – JOYCE, James. Um retrato de um artista quando jovem (1916). São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2016.
DE2 – FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização (1930). Obras completas. Vol. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
DE3 – BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 09 mai. 2018.
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Amanda Rabusky é Psicanalista e Mestranda em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
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