O voto China-Rússia

Por Pepe EscobarAsia Times (03.11.2020)

Sejam quais forem as consequências geopolíticas e geoeconômicas da espetacular distopia estadunidense, a parceria estratégica Rússia – China, em seus específicos registros levemente diferentes, já deram o seu  voto quanto ao  caminho  a ser tomado daqui para a frente.

Aqui (ing.) e aqui (port.) o modo como expus o coração do plano quinquenal da China para 2021-2025, aprovado em plenário em Pequim, na semana passada.

Aqui (ing.) temos  a interpretação publicada de um think-tank chinês padrão.

Aqui, contexto especialmente pertinente de explicação de o quanto a sinofobia desenfreada   é impotente  quando encontra pela frente um modelo de governança made in China extremamente eficiente. Esse estudo mostra como os complexos axiomas civilizacionais  da história e cultura da China simplesmente não cabem na visão de mundo hegemônica ocidental e cristã.

O ‘segredo’ nem tão secreto do plano quinquenal da China para 2021- 2025 – que Global Times descreveu como a “confiança na autossuficiência econômica” – está em basear em avanços tecnológicos, o crescente domínio geopolítico buscado pelo estado-civilização.

Crucial, para que se compreenda o processo, é que a China põe-se numa trilha “autoconduzida” – que depende pouco, ou nada, de impulso exterior. Está proposto até um claro horizonte “pragmático”: 2035, fixado como marco intermédio, entre hoje e 2049. Até 2035, a China deve estar no mesmo patamar que os EUA, ou talvez mesmo já os tenha ultrapassado, em poder geopolítico, geoeconômico e tecnológico.

Essa é a razão de fundo que explica a liderança chinesa em estudar tão ativamente a convergência de dois campos: da física quântica e das ciências da informação – convergência considerada a espinha dorsal do movimento “Made in China” rumo à Quarta  Revolução Industrial.

O plano quinquenal expõe bem claramente que os dois vetores chaves são Inteligência Artificial e Robótica – nos quais a pesquisa chinesa já está bastante avançada. Inovações nesses campos gerarão uma matriz de aplicações em praticamente todas as áreas, de transportes a medicina, sem falar a de armamentos.

Huawei é essencial nesse processo em curso, porque  não é uma  mera gigante em matéria de “dados”, mas também fornecedora de hardware, que cria plataformas e a infraestrutura física para que muitas empresas desenvolvam as respectivas versões de cidades inteligentes, cidades seguras – ou de medicamentos.

Big Capital – do Oriente e do Ocidente – está muito finamente sintonizado com o rumo no qual  tudo isso vai tomando, processo que também implica os principais entroncamentos das Novas Rotas da Seda. Sintonizado com o roteiro da “terra de oportunidades” do século 21, o Big Capital cada vez mais tomará o rumo do Leste da Ásia, China e desses entroncamentos da Novas Rotas da Seda.

Essa nova matriz geoeconômica repousará, sobretudo, no que brote da estratégia “Made in China 2025”. Uma escolha a ser oferecida com clareza à maior parte do planeta: jogo de “ganha-ganha” ou jogo de “soma zero”.

Fracassos do neoliberalismo

Tendo já podido observar o violento confronto, agravado pela pandemia do Covid-19, entre o paradigma neoliberal e  “socialismo com características chinesas”, o Sul Global está apenas começando a extrair as conclusões necessárias.

Não há tsunami de propaganda ocidental que consiga convencer a opinião pública e seus ‘especialistas de TV’ quanto às ‘vantagens’ de algo que, com efeito, não passa de um devastador e  avassalador colapso ideológico.

O abjeto fracasso do neoliberalismo na luta contra o vírus Covid-19 é  uma  clara evidência  em todo o Ocidente.

A distopia que são as eleições nos EUA apenas exibem o já consumado e  abjeto fracasso da “democracia” liberal ocidental: que espécie de “escolha” estaria dada aos eleitores entre Trump e Biden?

E tudo isso acontece no mesmo momento em que o ultra-eficiente “Partido Comunista Chinês” ,eterna  e incansavelmente demonizado, expõe, claríssimo, o mapa do caminho para os próximos cinco anos. Washington não consegue planejar nem o dia de amanhã!

O movimento inicial de Trump, conforme sugerido por Henry Kissinger antes da posse, em janeiro de 2017, seria – e que outra ideia teriam?! – Dividir para Governar. Que Trump seduzisse a Rússia, contra a China…

Era, como ainda é, anátema absoluto para o “ Deep State”e seus cachorrinhos Democratas amestrados. Daí a subsequente infindável demonização de Trump – com “Russiagate” à frente e acima de todos os crimes imagináveis. Então, Trump decidiu unilateralmente sancionar e demonizar também a China.

Se os democratas ficarem com a presidência, o cenário passa a ser de demonização ainda mais ensandecida contra a Rússia, mesmo que persista em todos os fronts a Guerra Híbrida mais histérica – uigures Tibete, Hong Kong, Mar do Sul da China.

  1. Então comparem tudo o que aí se lê ao mapa do caminho dos russos. Está claramente posto nas intervenções decisivas do Ministro Sergey Lavrov de Relações Exteriores e do Presidente Putin em recentes reuniões do Valdai Club.

Numa de suas falas crucialmente importantes sobre o papel do Capital, Putin destacou a necessidade de “abandonar a prática de consumir sem restrições e sem limites – o superconsumo –, e de favorecer a suficiência judiciosa e razoável, quando não se vive só para o dia de hoje, mas também se pensa no amanhã.

E, fazendo eco à continuada experimentação chinesa, acrescentou que, de fato, nenhuma regra econômica é eterna e imutável: “Nenhum modelo é puro ou rígido, nem na economia de mercado nem a economia controlada que se tem hoje. Simplesmente, temos de determinar o nível de envolvimento do estado na economia. E o que usamos como fator básico para essa decisão? A necessidade e a utilidade para dado fim. Temos que evitar usar qualquer modelo e, até aqui, temos conseguido.”

Pragmático, Putin definiu como “uma forma de arte” o modo como regular o papel do estado.

Ele exemplificou: “manter a inflação um pouquinho elevada facilitará o pagamento dos empréstimos tomados por consumidores e empresas russas. Economicamente é mais saudável do que as políticas deflacionárias levadas a efeito pelas sociedades ocidentais.”

As políticas pragmáticas de Putin tiveram consequências diretas – programas sociais abrangentes e grandes projetos nacionais – enquanto isso, o ocidente ignora que a Rússia pode estar no caminho para superar a Alemanha como a quinta maior economia mundial.

O resultado é que a combinação da parceria estratégica entre Rússia e China oferece, em especial para o Sul Global, duas abordagens radicalmente diversas em oposição ao axioma  padrão neoliberal do ocidente. Ocorre que isso é anátema para o conjunto do establishment dos Estados Unidos.

Então, não importa qual o resultado da “escolha” entre Trump e Biden, o choque entre a potência hegemônica e os Dois Soberanos está destinado se tornar cada vez mais incandescente.

 

*Trad. Coletivo de Tradutores Vila Mandinga, com permissão do autor

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