Vivemos sob uma Democracia ou uma Ordem Autoritária em Construção?

Por Mário Maestri

Com as eleições de 2018, o Brasil superou o golpe de 2016 ou ingressou em uma espécie de ditadura “constitucional”? Esta não é pergunta retórica, para impulsionar simplesmente reflexões diletantes sobre a situação do país. Uma resposta correta é necessária para a definição das saídas possíveis da terrível realidade que vivemos. Para tal, devemos, inicialmente, precisar os conceitos, ou seja, o que é um “golpe” e o que é uma “ditadura” – ou “ordem autoritária”.
Um “golpe político” é uma fratura brusca em um processo institucional, em geral por forças anti-populares, portanto sem o direito de intervenção no ordenamento social. O “golpe” pode ser “civil”, em geral com o apoio das forças militares. Mais comumente, é militar e expressa facções do capital nacional ou internacional. Em um curto espaço de tempo, o “golpe” – daí o nome – procura interromper um processo institucional, retornando a seguir à normalidade anterior. Ou, mais comumente, pretende criar um novo ordenamento no país. Habitualmente, tratam-se de ações anti-populares, em favor dos donos da riqueza e do poder.
O Paraguai, em 2012, é exemplo de “golpe parlamentar” pontual que, com a bênção das forças armadas e inspirado e guiado pelo imperialismo, afastou o ex-bispo Fernando Lugo, com o retorno, a seguir, às instituições e mecanismos conservadores tradicionais. Quando do golpe, Lugo perdera boa parte do apoio popular que o elegera, por contemporização com as classes dominantes. São inumeráveis os golpes dados para instituir uma nova ordem constitucional conservadora ou ditatorial, contra a população e os trabalhadores, através da supressão dos direito democrático-burgueses. A nova ordem autoritária ou ditatorial pode ou não permitir algumas instituições formalmente democráticas.
É habitual que a ordem ditatorial seja exercida diretamente pelas forças armadas, como no caso do Paraguai, em 1954; do Brasil, em 1964; da Argentina, em 1966; do Chile, em 1973. Os militares também gostam de uma “boquinha”, e como gostam! Os ditadores-presidentes podem ser rotativos, como no Brasil, em 1964-1985, ou permanentes, como Stroessner, de 1954 a 1989, “re-eleito” sucessivas vezes, ou Pinochet, de 1973-1990, que se manteve no poder sem firulas pseudo-democráticas.

A característica central de ordem ditatorial é a manutenção da população à margem da gestão política da sociedade, mesmo relativa, obedecendo às necessidades e exigências das classes proprietárias nacionais ou mundiais. As formas institucionais para impor a separação da população da participação no jogo político e reprimir sua organização são diversas e variam segundo a época e o momento. Durante o século 19 e começos do século 20, governos oligárquicos ou capitalistas foram mantidos, sem a necessidade da intervenção militar, através sobretudo do voto censitário, no qual apenas os ricos votavam nos ainda mais ricos. Foi o caso das grandes nações européias, antes da imposição do voto universal e o direito de organização pelos trabalhadores, e mesmo do Brasil, no Segundo Império e na República Velha.

 

Indiscutivelmente um Golpe

Voltando ao Brasil. Fora exceções patológicas como o PSTU, o MES de Luciana Genro, a CST do Babá, todos na esquerda concordam, sem entrar na discussão das bondades ou maldades do governo Dilma Rousseff, que ele sofreu, em 2016, um golpe, quando perdera já o apoio popular, devido à forte guinada direitista. Um golpe que, mutatis, mutandis, seguiu de perto o sofrido por Lugo. Ou seja, um golpe realizado por meio de um empeachement em tudo forçado que pôs os vices na presidência, como determinavam as constituição, aqui e lá. Encenação de respeito constitucional para a qual, temos que reconhecer, o PT e sobretudo Dilma Rousseff contribuíram, aceitando, até o fim, participar de uma disputa parlamentar e judiciária farsesca, desde o início já decidida, em vez de chutarem a “pau da barraca”.
Comportamento repetido por Lula da Silva que, apesar de reconhecido como prisioneiro político por todos os homens e mulheres honestos, do Brasil e do mundo, entregou-se, em vez de permanecer entre os trabalhadores, caracterizando a ilegalidade total de seu aprisionamento. E, mais ainda, seguiu o caminho para a prisão dizendo confiar na Justiça. E, agora, preso há mais de um ano, segue exigindo que a Justiça reconheça sua inocência, apesar de ela ter sido a responsável por enviá-lo para a prisão, e lá mantê-lo, por delitos fantasiosos, sem qualquer traços de prova.
Se é certo e líquido que, em 2016, houve um golpe de Estado, falta definir qual seu objetivo. Ou seja. O impeachment procurou afastar Dilma, para retornar, a seguir à normalidade institucional, como no Paraguai, após o interregno de Michel Temer? Ou seu objetivo foi criar uma nova ordem que impeça de todo e permanentemente a população intervir na gestão política de seus destinos, mesmo no contexto da ordem capitalista, pondo assim fim, de fato, à própria democracia burguesa? Isto é. O grande objetivo do golpe não teria sido derrubar Dilma Rousseff, mas a criação de ordem autoritário institucionalizada que permita a imposição permanente de ditadura plena do grande capital e do imperialismo sobre os trabalhadores e o país.
Em forma geral, essa questão já foi respondida pela direção da oposição de esquerda, sobretudo parlamentar. E a resposta que esta última deu a ela, totalmente alienada, teve resultados indiscutivelmente desastrosos para a população. PT, PCdoB, PSOL e puxadinhos propuseram -ou se comportaram- como se a vida política, após 2016, tivesse continuado a funcionar como anteriormente, sem modificações essenciais, fora o vice ocupando ilegalmente a presidência e alguns outros pequenos problemas. Assim sendo, propuseram as eleições presidenciais como o melhor combate ao “governo golpista” de Michel Temer, originado no empeachement, com limite de uso em outubro de 2018. Após as eleições, tudo voltaria à normalidade, ou quase, sugeriam e propunham.
Em verdade, alguns dos maiores dirigentes da oposição parlamentar, como Haddad, vacilaram até mesmo em definir o empeachement como golpe. E, logo após a derrota no pleito presidencial de 2018, que jamais denunciaram como farsa, Haddad, Boulos e associados subscreveram a legalidade de eleições em tudo fraudadas pela grande mídia, pelo empresariado, pela justiça eleitoral, pelo STF, pela polícia federal e, com destaque, pelo alto comando do exército. A seguir, as variadas direções da oposição bem comportada propuseram oposição e resistência às políticas do governo Bolsonaro, e não ao governo, que juram legítimo. E, sobretudo, apontaram para sua derrota através da luta parlamentar e das eleições em 2020 e 2022. Tudo como se vivêssemos em normalidade institucional. Política nas palavras e no silêncio subscrita por Lula da Silva, desde a prisão.

Fantasia Política e Terra Arrasada
Por enquanto que a direção política e sindical hegemônica da oposição encanta com sua fábula política a população desesperada e desorganizada, o movimento golpista realiza, a trote-galope, literal arrasamento social e econômico do país, de sentido irreversível, ao qual a direção narcótica do movimento popular propõe, igualmente, opor-se, essencialmente no parlamento, onde não alcança qualquer resultado tangível. Quando propõe. A direção de longe majoritária da oposição desvia a população e os trabalhadores da luta contra a instalação de ordem autoritária, ao avalizar a farsa institucional que o golpismo impulsiona. Faz de conta que tudo segue como dantes, neste cada vez mais triste quartel de Abrantes. Repete o triste papel do MDB, de oposição consentida pela Ditadura, com a função de desviar a população da luta. Defende seus interesses particulares e os das classes que representa, desinteressada da sorte da população e dos trabalhadores.
Mas agora, a oposição faz-de-conta acaba de sofrer derrota monumental, que esperava e de certo modo preparou, que desnuda o sem sentido de sua retórica e propostas, que, entretanto, não serão por ela abandonadas. Os 379 a 131 votos no primeiro turno da liquidação da Previdência pública e privada mostram que o “golpismo”, através do domínio total da Câmara, tem condições para a total reformatação das instituições nacionais, construindo nova ordem que permita manter, ad aeternum, a população longe de qualquer determinação de seus destinos, sob o tacão despótico do grande capital e do imperialismo. Portanto, junto ao arrasamento das condições de existência da população e da nação em curso, a Câmara e o Senado seguirão avançado, dentro de pretensa legalidade, a construção de uma verdadeira ditadura institucional anti-popular, anti-trabalhadora e anti-nacional.
Uma ditadura institucional que já é discutida nos seus detalhes e será consolidada através de reformas tributária, política, orçamentaria, judicial e por aí vai, que deixarão o mundo do trabalho e o país nas mãos do grande capital globalizado e do imperialismo, através de seus operadores locais – a grande mídia; a Justiça, a Polícia, o Congresso, as Forças Armadas, todos já sob controle do imperialismo e corrompidos até a medula dos ossos. Realidade consolidada pelo destruição de qualquer espaço de legalidade real e pela naturalização da lei do cão do grande capital na gestão da sociedade.
É imperativo superar as políticas e propostas da direção colaboracionista, antes que se consolide a metamorfose patológica da sociedade nacional e de suas instituições. Urge levar a luta, pelo fim do segundo governo golpista e da ordem atual em constituição, às ruas, às fábricas, às escolas, ao campo, aos quartéis. Antes que o Brasil se transforme em uma neocolônia da ordem capitalista globalizada e sua população em semi-servos assalariados, sob o tacão das forças policiais e militares, comandadas por generais em tudo estrangeiros ao país. Antes que o inferno que já vivemos congele toda a nação.

* Mário Maestri, 71, historiador, é autor de Revolução e contra: revolução no Brasil. 1530-2018. https://clubedeautores.com.br/livro/revolucao-e-contra-revolucao-no-brasil#.XW2RdS3Oogt

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