Diários da Pandemia: Linha de Frente – Alto Xingu (2)

Por Daphne Lourenço

Hoje eu presenciei meu primeiro óbito por covid. Seu Malopa, um pajé de 79 anos. Fui para o Kuluene de avião, pois ele havia piorado. Estava saturando a 60%, cansado. Quando cheguei ele estava no oxigênio, mantendo saturação entre 60-70%, apesar do tratamento contínuo.

Os pajés trabalhavam, a família fazia de tudo. Carinho, comida, cuidados. Seus filhos e netos estavam muito abalados, chorando. Entendiam que ele não deveria tomar aquele coquetel do Dr. Jair, “Eu sei que aquele remédio é pra piolho doutora”.

Fizemos antibiótico, corticoide, soro. Ele foi piorando, fora do oxigênio chegou a saturar 30%.

Ouça o artigo no player abaixo ou na Rádio Expressa:

 

Seu filho, Kanoá, também pajé, não para de trabalhar. Me conta que seu pai está ruim pois a alma do cunhado, que faleceu de covid há alguns dias, havia chamado seu pai no enterro. Seu pai aceitou ir. Kanoá tentou resgatar a alma do pai, mas não sabe se conseguirá. Ele entende que algumas pessoas vão morrer de corona; talvez seu pai seja um deles. Ele tenta mais uma abordagem, é a hora de sua mãe abraçar o pai. Ela vem de fora; Kanoá a prepara para o abraço. Ela sobe na rede, abraça o marido por um bom tempo.

Todos entendem a gravidade, mas ele vai ser cuidado na aldeia; nada de hospital. Noto sempre um menino pequeno com um pequeno defeito no nariz chorando muito, chego a ficar incomodada, “Por que esse menino quer tanta atenção?”

Seu Malopa fala na língua deles, todos começam a chorar muito. Não entendo, mas penso que ele se despediu, avisou a todos de sua morte. Ele está cansado, está difícil respirar. Coloco Berotec na máscara, vou preparar mais 1 ampola de hidrocortisona. Muitas pessoas estão ao redor da rede de Malopa, todos querem estar por perto. Sabemos que não pode aglomerar, todos sabem. Mas não importa mais falar.

O cilindro de oxigênio cai, a extensão estoura, não chega mais oxigênio para Malopa. Saio correndo para buscar outra. Quando retorno, seu Malopa não respira mais. Luiza, enfermeira, implora que as pessoas se afastem, coloca o corpo no chão, começamos RCP. Não tem mais batimento, seu Malopa se foi.

O choro é coletivo, intenso, sofrido. Eu choro, Luiza chora. Alguns gritam, uma mulher desmaia, se debate no chão de tanto sofrimento. Abraço os filhos, abraço a equipe, por alguns segundos esquecemos das regras de afastamento que repetimos o dia todo. Aquele menino com o nariz diferente continua chorando demais, mais do que todos. O sofrimento é muito intenso, não há vergonha em sofrer. Os filhos desmaiam nas redes, os familiares vêm acariciar, eles melhoram. Alguns desmaiam por muitos minutos; depois gritam, choram. Seu Malopa é colocado em uma cadeira, banhado, seu cabelo cortado. O choro coletivo não para; ele segue por horas. É possível ouvir a mais de 300m de distância. Carros chegam de outras aldeias; mais pessoas se juntam ao choro. O corpo está pronto, limpo, arrumado, todo pintado, colorido, vestido como um guerreiro.

Descubro quem é o menino: seu filho adotado. A família não quis ficar com ele por conta do defeito no nariz. Me contam que os dois só andavam grudados o tempo todo. Ultimamente caminhavam pelas aldeias com os braços envoltos em ervas para afastar o covid. Agora entendo aquele choro.

A urna chega. Hora da última despedida. Seu Malopa está bonito, vai encontrar o cunhado. Não consigo parar de pensar que foi uma morte bonita. Seu Malopa foi muito bem cuidado em seu último dia de vida, todos que o amam estavam por perto. Nenhum hospital no mundo conseguiria promover essa morte.

Será que ele estaria vivo se tivesse ido antes para o hospital? Será que ele morreria pela covid em quaisquer das situações? Nunca saberei a resposta, mas penso que se pudesse escolher minha morte, escolheria que nem Malopa, na casa onde nasci, cercada por todos que amo.

***

Takuma Kuikuro, segundo óbito por covid que presencio. Mas esse mais do que presenciei, contribuí.

Takuma era cadeirante, 50 anos, caquético. Cuidado com muita dificuldade na aldeia. Contaminou-se com coronavírus. Foi difícil perceber os sinais. Oxímetro não pega, ausculta turbulenta, não fala. Até agora me pergunto se deveria ter feito diferente. Rapidamente ficou grave, cansado. Tava difícil respirar. Oxigênio contínuo, antibiótico venoso. Tudo na aldeia.

“É muito grave, ele pode não sobreviver ao dia de hoje.”

Noite em claro, Takuma está cansado. Outra noite; pequena melhora. Ele está estável, com fluxo mais baixo de oxigênio. Hoje a equipe pode dormir. Às 8h da manhã, a equipe chega. Takuma não conversa mais. Está muito cansado. Pressão baixíssima, pupilas não reagem.

“É grave, Takuma não respira mais sem oxigênio. Esse é nosso último cilindro. Vamos pra cidade?”

“Não doutora, Takuma vai morrer na aldeia”

O choro coletivo começa. A família entende que são os últimos momentos. Vêm pessoas de outras aldeias chorar a seu lado. Todos querem abraçar Takuma.

“Doutora, você pode desligar o oxigênio? Nós queremos abraçar ele sem máscara.”

Paro, penso. Eu vou desligar, ele vai morrer. Mas vai morrer abraçado. Fecho o oxigênio.

Todos abraçam, choram, desmaiam. Eu não vejo mais Takuma, são muitos em seu peito. Uma mulher grita olhando pra mim. Depois descubro o que ela diz:

“Por que o branco trouxe essa doença pra matar os índios?” Gostaria de responder: “Sinto muito”. Não vejo Takuma morrer. Como vou atestar esse óbito? Será que vou enterrar alguém com vida? Me dou conta do meu poder, ele é imenso. Minha angústia maior ainda.

Takuma está pintado, colorido. Ele é um guerreiro de novo. Está em paz. Sua família sofre, o sofrimento mais intenso que já vi. Homens e mulheres adultos desmaiam, parentes carregam seus corpos em sofrimento. Adolescentes desmaiam. Crianças choram. O corpo entra no caixão, o caixão entra no buraco. Sua mãe se joga em cima. Familiares a retiram. O buraco é fechado, o choro se ouve à distância. Takuma se foi.

Só agora percebo que essa foi minha primeira eutanásia. Foi difícil, eu desliguei o que o mantinha vivo. Mas vi uma morte linda. Pessoas de longe vieram lhe ver. Deixei que ele fosse abraçado. Se puder escolher, espero que algum dia façam o mesmo por mim.

Daphne Lourenço é Médica de Família e Comunidade, atuando no DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena), Xingu.

*Foto: http://agenciabrasil.ebc.com.br/galeria/2004-08-20/20-de-agosto-de-2004

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