Decodificando o hipersônico Putin num dia de remembrança

Texto de Pepe Escobar para o The Saker, em 14 de novembro de 2018, traduzido por Yorkshire Tea para o Duplo Expresso:

Sentados junto ao presidente francês Macron durante o 100º aniversário do Armistício da Primeira Guerra Mundial[1], Putin e Trump roubam o show em Paris

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O protocolo do Palácio Eliseu[2] foi implacável. Ninguém em Paris teria permissão para roubar do anfitrião, o presidente Emmanuel Macron, o centro das atenções durante o 100º aniversário do Dia do Armistício, que marca o término das hostilidades na Primeira Guerra Mundial.

Afinal de contas, Macron investiu todo seu capital político em visitas a vários campos de batalha da Primeira Grande Guerra, enquanto alertava contra a ascensão do nacionalismo e um ressurgimento do populismo de extrema direita no Ocidente. Ele teve o cuidado de sempre colocar a ênfase no elogio ao “patriotismo”.

Agora, vemos uma batalha de ideias por toda a Europa, tipificada pelo conflito entre o globalista Macron e o ícone do populismo, Matteo Salvini, o ministro do interior italiano. Salvini detesta o sistema de Bruxelas. Macron está intensificando sua defesa de uma “Europa soberana”.

E, para o horror do establishment norte-americano, Macron propõe um “exército europeu” de verdade, capaz de uma autodefesa autônoma, lado a lado com um “diálogo real sobre segurança com a Rússia”.

No entanto, todos esses ideais de “autonomia estratégica” foram por água abaixo quando foi preciso dividir o palco, ao vivo, com as estrelas indiscutíveis do show global: os presidentes Donald Trump e Vladimir Putin.

Assim, o que se viu em Paris não foi exatamente uma versão 2.0 da Conferência de Yalta[3]. Valia de tudo para manter Trump e Putin separados. A distribuição de cadeiras apresentava, da esquerda para a direita, Trump, a Chanceler Angela Merkel, Macron, sua esposa Brigitte e Putin. Por motivos diversos, nem Trump nem Putin participaram de uma jogada de marketing do tipo “caminhar na chuva” evocando a paz.

No entanto, eles se encontraram. Sir Peter Cosgrove, o governador geral da Austrália, confirmou que Trump e Putin, num almoço de negócios, tiveram uma conversa “animada e amigável” por pelo menos meia hora.

Ninguém melhor que o próprio Putin para revelar, mesmo que indiretamente, o que realmente foi conversado. Três temas foram absolutamente fundamentais.

A respeito da proposta de Macron, de criar um exército europeu fora da OTAN: “A Europa é … uma união econômica poderosa. Por isso, nada mais natural do que eles desejarem ser independentes e … soberanos no campo da defesa e da segurança.”

Sobre as consequências de um exército desse tipo: Seria “um processo positivo” que “fortaleceria o mundo multipolar”. Além disso, a posição da Rússia “está alinhada com a da França”.

Sobre as relações com a Organização do Tratado do Atlântico Norte e Washington: “Não somos nós que iremos sair do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário. São os estadunidenses que planejam fazer isso.” Putin acrescentou que Moscou não tem exercícios militares programados próximo a fronteiras com a OTAN, a fim de tentar apaziguar uma situação já tensa. No entanto, a Rússia “não tem problemas com” exercícios militares da OTAN e espera pelo menos algum diálogo no futuro próximo.

Entra em cena o Avangard

Amplos setores do Estado Profundo dos EUA se recusam a enxergar a realidade, mas Putin pode ter conseguido transmitir a Trump a necessidade de um diálogo sério devido a um vetor absolutamente essencial: o Avangard.

O Avangard é um veículo planador hipersônico russo capaz de voar acima de Mach 20 – 24.700 km/h, ou 6,8 quilômetros por segundo – e uma das armas russas revolucionárias anunciadas por Putin em seu discurso revelador de 1º de março.

O Avangard está em produção na linha de montagem desde o verão de 2018 (Hemisfério Norte), e deve tornar-se operacional no sul dos Urais até o final do ano que vem ou início de 2020.[4]

No futuro próximo, o Avangard poderá ser lançado pelo formidável míssil balístico intercontinental Sarmat RS-28 e atingir Washington em meros 15 minutos, voando numa nuvem de plasma “como um meteorito” – mesmo se o lançamento for feito do território russo. A produção em série dos ICBMs Sarmat começará em 2021.

O Avangard simplesmente não pode ser interceptado por nenhum sistema existente no planeta – e os EUA sabem disso. Eis o que diz o General John Hyten, chefe do Comando Estratégico dos EUA: “Não temos nenhuma defesa que poderia impedir o emprego desse tipo de armamento contra nós.”

O Irã como a nova Sérvia[5]?

Gostaria de ter estado em Paris – a minha casa na Europa – para acompanhar ao vivo essas tramas concêntricas relacionadas à Primeira Guerra Mundial. Mas não deixou de ser fascinante acompanhá-las de Islamabad, onde me encontro agora, de volta da região norte do Corredor Econômico China-Paquistão (CPEC). O Império Britânico usou de 1,5 milhão a 2 milhões de súditos coloniais indianos, para lutar – e morrer – pelo império naquela guerra. Um número considerável deles era formado por naturais da região do Punjab, que agora faz parte do Paquistão.

Quanto ao futuro, Trump certamente está ciente das inovações hipersônicas da Rússia. Trump e Putin também conversaram sobre a Síria, e podem ter falado brevemente sobre o Irã, embora ninguém presente ao almoço dos líderes tenha vazado qualquer coisa a respeito.

Supondo que o diálogo continue na cúpula do Grupo dos 20 em Buenos Aires no final de novembro, Putin talvez consiga fazer com que Trump compreenda que, assim como a Sérvia catalisou uma cadeia de eventos que levou as grandes potências a mergulharem na Primeira Guerra Mundial, o mesmo poderia acontecer com o Irã, levando ao terrível prospecto da Terceira Guerra Mundial.

A obsessão da equipe de Trump de estrangular o Irã economicamente é algo que se encontra numa zona proibida, mesmo para a União Europeia liderada por Macron e Merkel. Além disso, a parceria estratégica da Rússia com a China simplesmente não permitirá nenhuma iniciativa temerária contra um dos pontos nevrálgicos da integração eurasiana.

Putin não precisará nem mesmo ficar “hipersônico da vida”[6] para convencer Trump.

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[1] O Armistício da Primeira Guerra Mundial ocorreu às 11h00 (horário de Paris) do dia 11 de novembro de 1918 (“a décima-primeira hora do décimo-primeiro dia do décimo-primeiro mês”) e foi o resultado do Tratado de Compiègne.

[2] O Palácio Eliseu é a residência oficial da presidência da França.

[3] A Conferência de Yalta (4 a 11 de fevereiro de 1945) reuniu os “Três Grandes” – Stálin, Churchill e Roosevelt – cujo objetivo era definir a paz no pós-guerra (Segunda Guerra Mundial – 1939-1945).

[4] O original fala em 2019, mas provavelmente foi um pequeno lapso, pois o “ano que vem” é 2019.

[5] A Primeira Grande Guerra (1914-1918) começou a partir do assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando por Gavrilo Princip, um nacionalista sérvio. O atentado serviu de estopim para o início da guerra.

[6] O original fala em “go hypersonic” numa brincadeira com a expressão “go ballistic” (ficar louco da vida, extremamente irritado).

A ilustração do banner é uma montagem utilizando a imagem de divulgação do filme La La Land (“La La Land: Cantando Estações”), de Damien Chazelle para a Summit Entertainment, USA (2016) + imagem de um míssel balístico + o recorte das cabeças de Donald Trump e Wladimir Putin de uma charge de de Brandan Reynolds do Business Day, SAF (2017).

 

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