Diários da Pandemia: na Sibéria

Por Marcus.

Quando saí de Xangai em janeiro para passar o feriado de ano novo na Rússia, a situação em Wuhan e em toda a província de Hubei já estava bem séria.

Particularmente, eu não acreditava em um quadro de epidemia enquanto as pessoas não retornassem do feriado, quando metade dos chineses saem das regiões metropolitanas onde trabalham, em direção às outras metrópoles, cidades ou vilas de origem.

Era para ser só mais um feriado de ano novo, com tudo voltando a funcionar depois das duas semanas de celebração em família.

Durante e logo depois de meu auto-isolamento, o máximo que lia e escutava eram rumores de casos suspeitos em outras cidades no interior, e é bem provável que nenhum deles tenham sido confirmados.

Como eu (e qualquer pessoa com acesso à internet) sabia a velocidade com que novos casos iam se confirmando pela China, imaginava o que poderia acontecer em Novosibirsk, muito próxima da fronteira e com laços fortes com o território chinês.

Lá, Wuhan e praticamente Hubei inteira já estavam em lockdown, outras províncias que ainda não tinham casos confirmados iam se somando à lista uma atrás da outra e cidades do porte de Pequim, Xangai e Chongqing em nível máximo de emergência.

Nos primeiros dias de fevereiro, outros rumores foram oficialmente confirmados aqui, não em Novosibirsk, mas em Zabaykalsky, também território (Krai) de fronteira. Provavelmente nesta altura do campeonato já haviam dezenas de suspeitos em observação em Moscou.

Na verdade, o governo russo foi muito rápido em tomar medidas preventivas antes mesmo da primeira confirmação, alertando a população e controlando a chegada de estrangeiros vindos da China logo depois da primeira confirmação por aqui.

Todas as manhãs eu me assustava com o que chegava pelo Wechat (aplicativo de mensagem usado por praticamente todos na China), a curva de epidemia cada vez mais acentuada e os vídeos mostrando o drama dos médicos chineses.

Ao mesmo tempo o governo russo já ia anunciando novas medidas quase que diariamente também. Ainda assim, o número de casos na Rússia não parecia acompanhar o aumento que se via por exemplo em alguns países europeus.

Conversando sobre a epidemia com conhecidos, eu percebi que para muita gente em Novosibirsk, os protocolos de segurança ainda eram uma medida um pouco exagerada, ao menos em meados de fevereiro.

Passadas duas semanas, em Moscou já funcionava reconhecimento facial e punições para quem infringisse a quarentena, enquanto aqui no meio da Sibéria, a apreensão ia aumentando junto com a adoção de medidas preventivas.

Na primeira semana de março o governador decretou a obrigatoriedade do uso de máscaras e no fim do mês toda área metropolitana de Novosibirsk estava isolada.

Pelo VK já viralizavam os vídeos mostrando a Guarda Nacional (Rosguard) patrulhando em Moscou.

Não demorou para que eu também pudesse escutar as viaturas aqui instruindo os pedestres a voltarem para casa durante o dia. A partir das 20h, até as 8h, esta instrução é uma ordem, e ninguém parece disposto a desobedecer.

No mais, as medidas seguem o mesmo padrão: boa parte do comércio e serviços fechados, eventos públicos cancelados, as universidades em recesso há várias semanas, assim como escolas e bibliotecas públicas.

Cafeterias e restaurantes têm funcionamento restrito e um dos poucos lugares funcionando quase normalmente são supermercados, onde eu vou a cada 2 dias por necessidade e para quebrar minha rotina de trabalho online.

Os Siberianos convivem com a neve desde o outono e passam todo o inverno sob o frio de 25 a 15 graus negativos. Os dias de sol deste início de abril e temperatura ao redor de zero já são mais que suficientes pra lotar qualquer praça e os vários parques comunitários entre os conjuntos mais antigos.

Poucos dias atrás voltando do supermercado, onde até o mês passado só os funcionários usavam máscaras, fiz questão de registrar a vizinhança e é muito claro como a comunidade têm levado o isolamento a sério.

Já em casa, mais tarde, abri a página do Estado de Minas, e uma das matérias em destaque: “Orla da lagoa da Pampulha em BH tem movimento normal“. Uma foto mostrava ciclistas, gente caminhando e crianças.

Novosibirsk e BH têm muito em comum: mesma população, importância econômica, científica e como no Brasil, a “capital da Sibéria” é a terceira metrópole nacional fora do eixo Moscou-São Petersburgo.

Mas agora temos uma diferença (triste pra mim): enquanto por aqui são 20 casos confirmados, em BH já somam mais de 320 (09-04).

Acredito que a variável com maior peso aí seja os mais de 3.000 Km até Moscou. Pelo menos hoje na Pampulha já não circula ninguém. Vi que colocaram grades.

Pior ainda é pensar que não faz sentido nenhum comparar números porque eventualmente o quadro pode sair do controle em qualquer lugar e a qualquer hora, como parece ter acontecido em alguns países.

Na China finalmente a situação vai voltando ao normal.

O lockdown em Wuhan foi suspenso, o metrô já reabriu, a atividade industrial vai sendo retomada e quem tinha chegado para celebrar o Ano Novo em meados de Janeiro pôde finalmente deixar a cidade anteontem.

Até os hospitais de campanha já foram desmontados. Em algumas províncias as escolas já têm atividade em sala e hoje acabei de ser informado que em Xangai também iniciam no final do mês.

Provavelmente não demora para que as universidades tenham os campi reabertos. Desde fevereiro o semestre letivo é não presencial.

Mas não tenho dúvida que vamos conviver por um bom tempo com muitas medidas de prevenção: checagem de temperatura no metrô, nos shoppings ou em qualquer esquina, câmeras de infravermelho, equipamentos de proteção individual e entradas proibidas pra quem não usar.

Meus colegas ainda precisam apresentar um health card para entrar e sair do condomínio onde moram, e por enquanto não podem entrar em nenhum outro. Assim parece estar sendo em toda Xangai, com 23 milhões de pessoas, 500 casos e 6 mortes.

Agora todo cuidado é pouco, e o governo chinês tem restringido a entrada de estrangeiros desde que os últimos casos passaram a ser de pessoas vindas de fora do país.

Enquanto isso na Rússia, os casos confirmados aumentaram bastante nos últimos dias, a última vez que li eram mais de 11 mil, quase 90% deles concentrados em Moscou.

Por um lado é alarmante, e legitima o governo a tomar medidas mais duras. Por outro, fica a impressão de que a contenção do avanço pelo resto do país parece estar funcionando. É um padrão que têm sido repetido em outros países, com poucas cidades concentrando a grande maioria dos casos.

Como em qualquer outro lugar, as pessoas em Novosibirsk estão preocupadas e ansiosas para voltar ao trabalho.

Tem gente falando até da possibilidade de comemorar o Dia da Vitória, que era uma incerteza há poucos dias atrás.

O Nove de Maio é celebrado como a rendição da Alemanha nazista, e é sem dúvida a data mais comemorada pelos russos, com aquela parada grande na Praça Vermelha e muitas outras pelo interior da Federação, ruas tomadas de gente, bandeiras, cartazes e fotos dos familiares heróis de guerra.

Se a parada vai acontecer sem público ou adiada para outra data, isso deve ser confirmado nos próximos dias, mas alguns já apostaram comigo que o Regimento dos Imortais sai em marcha, independente de qualquer vírus.

Olhando para esses gráficos de trajetória de infecção, vejo que a reta russa ainda é muito inclinada se comparada à de outros países que estão estabilizando.

Em Novosibirsk os números são relativamente baixos, mas a mídia diz que na capital o sistema de saúde já está no limite. Como no caso do Brasil, onde as circunstancias já eram bem ruins antes da pandemia, torço pra que todos façam sua parte ficando em casa, e que o Estado tenha bom senso e firmeza para conduzir a situação.

 

Marcus, brasileiro, participa do Grupo de discussão do DE no Telegram, estuda em Xangai, China, e atualmente está em Novosibirski, Rússia.

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ver também:

MST: Terra Prometida

KM 32: na profundidade da Periferia

Frente CDD: Cidade de Deus (RJ)

Pandemia e periferia

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