Linha de frente: o drama no atendimento médico no RJ

Da Redação do D.E.

Relato – importantíssimo – de médico veterano formado em faculdade de ponta e especializado em Saúde Pública na FIOCRUZ atuando na coordenação do combate à epidemia de coronavírus no Rio de Janeiro:

Peço desculpas pela demora em enviar o relato porque ontem foi um dia desgastante no trabalho e vocês irão entender o porquê mais abaixo. Cheguei esgotado. E hoje (23/04) é feriado de São Jorge. Aproveitei para descansar um pouco e para pedir forças no bom combate à São Jorge / Ogum.

Antes de falar propriamente sobre a situação do Rio de Janeiro nessa COVID 19 acho importante que vocês conheçam a estrutura de controle sanitário na cidade só para contextualizar melhor a situação. Acho que isso não precisaria entrar no depoimento. Seria mais para ser algo a título de entendimento.

O Rio já tendo sido capital desse país tem um acúmulo histórico de experiências em controle sanitário.

Se quiserem conhecer melhor a estrutura da Secretaria, consultar:

http://www.rio.rj.gov.br/web/sms/

ou mais especificamente

http://www.rio.rj.gov.br/documents/73801/d913a164-9dc5-47d3-984c-96a23c2de264

Atualmente a cidade é dividida em 10 regionais para melhor gestão sanitária do município. Essas regionais seriam uma espécie de minisecretarias de saúde em cada região. É como se fossem “espelhos” do nível central de coordenação da Secretaria Municipal de Saúde.

Pensando mais especificamente no acompanhamento da COVID, essas 10 regionais por sua vez possuem em cada uma delas a Divisão de Vigilância em Saúde que coordena os Serviços de Vigilância em Saúde de sua regional.

No município do Rio eu trabalhei num Serviço de Vigilância em Saúde de um Centro Municipal de Saúde na Praia de Ramos, como médico de Saúde Pública de 1992 a 2008. A área de atuação de controle epidemiológico abrangendo a Maré, Manguinhos, Alemão, Bonsucesso, Olaria e Ramos. Nossa tarefa era o controle de doenças transmissíveis desses bairros e da logística e assessoria de vacinas para as unidades de saúde (Centros de Saúde, Postos de Saúde, Clínicas da Família e Hospitais).

De 2009 a 2014 eu trabalhei numa Regional (Divisão de Vigilância em Saúde) que coordenava além do próprio serviço em que trabalhei, também o Serviço de Vigilância em Saúde da Penha (que incluía Vigário Geral, Parada de Lucas, Cordovil e Cidade Alta) e o Serviço de Vigilância em Saúde da Ilha do Governador.

De 2015 aos dias atuais trabalho no nível central da SMS-RJ e tenho um cargo gerencial ligado à Vigilância de Óbitos de toda a cidade.

Passei, portanto, por todos os níveis de atuação em saúde: local, regional e municipal. E essa tarefa de vigilância em saúde abrange a ação estatal no âmbito de unidades públicas e privadas e em todos os bairros.

Por isso sempre me incomodou muito esse discurso muito batido na mídia de que o Estado não está presente nas favelas e quando vai é para reprimir. Tudo bem, ainda chega de maneira tímida mas nós da Saúde e da Educação sempre estivemos lá.

Até 2008 realmente as poucas unidades de saúde que eram dentro de favelas era a unidade em que trabalhei na Praia de Ramos, algumas na Maré, uma no Alemão e uma unidade da Rocinha. Após 2009 muitas unidades de saúde chegaram às favelas.

Até 2008 os únicos profissionais que adentravam as favelas éramos nós da Vigilância em Saúde (Epidemiologia, como o setor era chamado). Quantas e quantas vezes eu fiquei preso dentro de comunidades por causa de início de tiroteios. No próprio Centro de Saúde da Praia de Ramos já ficamos muitas vezes agachados nos corredores da unidade porque o tiroteio começou. Aliás o Centro de Saúde da Praia de Ramos, o posto do Piscinão popularizado na novela “O Clone” de 2001, ficava junto à uma praça dentro das favelas. Ou seja, no limite entre a Favela de Ramos e da Favela Roquete Pinto. Cada uma com uma facção dominando. Mas o grande problema não era a guerra entre facções mas quando a polícia entrava de surpresa porque não tinha recebido a propina maior que tinha obrigado alguma facção a pagar. Quando o “bicho ia pegar” entre as facções eles nos avisavam para vazarmos. Éramos meio os “capacetes azuis” da ONU (mesmo sabendo da politicagem da ONU que ficou omissa em Ruanda, por exemplo).

Aliás essa história da ONU é bem ilustrativa da questão das instituições. Tendemos a achar que as instituições são monolíticas. Na ONU assim como na SMS-RJ existem servidores e servidores, gestores e gestores, com diferentes visões, ideologias, crenças etc etc etc. Como os médicos. Eu, por exemplo, já fui comunista de carteirinha (PCdoB de 1979 a 1982, depois de uma dissidência dele PRC de 1982 a 1983). Participei de movimento estudantil e inclusive em 1980 fui representando a UFF num encontro de estudantes do PCdoB em Salvador. Ficávamos às vezes à noite, escutando a Rádio Albânia porque a Albânia era o farol do socialismo kkkkkkkkkkkkkkk.

Em 1982 ainda me filiei ao PT mas nunca atuei muito “catolicamente” (desculpe Romulus) nele.

Tenho um lado meio anarquista (mas não como o Arkx, é mais o espírito porque não gosto do centralismo democrático). Hoje me defino como um socialista democrático porque acredito e luto por um Estado de Bem-Estar Social convivendo com a iniciativa privada regulada. Desde 1985 também abandonei meu ateísmo. Sou espiritualista. Ligado nas tradições afro-brasileiras e na tradição de Alan Kardec. Admiro o papa Francisco e fui criado e estudei em colégio católico. Tenho queridos amigos e amigas evangélicos. Convivo com pessoas que votaram em Bolsonaro e são pessoas muito bacanas. Concluindo: detesto generalizações. Por isso não gosto dessa categoria de “expressonauta”. Admiro o trabalho, bebo nessa fonte mas me enquadrar numa categoria me lembra os tempos de comunismo com seu centralismo democrático.

Outra coisa que gostaria de relatar é o trabalho silencioso que fazemos na Saúde Pública e que não é visto. O último caso de poliomielite acontecido no Brasil foi em 1989 e o Brasil ganhou o Certificado Internacional de Erradicação da Poliomielite antes dos países europeus. Para isso não bastou ter o último caso. Temos que rotineiramente monitorar os casos de paralisia flácida aguda, colhendo as fezes e enviando para o laboratório de Enteroviroses da FIOCRUZ. Por que? Para saber se está circulando o vírus selvagem da Poliomielite. Inclusive colhendo material também em esgotos porque o vírus da poliomielite “sai” pelas fezes. Quantas vezes eu fui para o meio da favela solicitar que recolhessem fezes para nós. Como o Brasil foi exemplar durante anos nesse monitoramento ganhou esse certificado.

Quando vacinamos as crianças em campanhas nacionais com a gotinha, vacinamos indiscriminadamente as crianças mesmo já estando com todas as doses completas que garantem a imunidade. Por que? Para jogarmos o vírus vacinal no ambiente também e para esse possa “competir” com um possível vírus selvagem presente no ambiente. Não me lembro o ano ao certo, acho que entre 2000 e 2003, fizemos uma campanha de vacinação contra poliomielite na Favela da Maré, 2 meses antes da campanha nacional. Por que? Estava tendo uma epidemia em Angola e a Maré tinha uma comunidade angolana que sempre recebia novas pessoas de lá. Fizemos essa vacinação para espalhar o vírus vacinal na Maré. E depois vacinamos novamente na campanha nacional.

É por essas e por muitas outras coisas que eu fico chateado com a generalização sobre nós profissionais de saúde e médicos em particular. Fico chateado também com o aviltamento da condição trabalhista dos novos profissionais. Eu sou estatutário, estou no regime jurídico único da Prefeitura do Rio com 2 matrículas como médico. Fiz 2 concursos públicos. Vejo hoje profissionais contratados como Pessoa Jurídica (PJ) – muitas prefeituras do PT apoiaram isso – ou como CLT (o que é menos pior mas …). O profissional de saúde tem que ter uma carreira estável que dê condições de progressão e segurança para agir com conforto em situações difíceis. Afinal a crise social explode aonde?

Aliás, modéstia à parte, a Saúde é a Política Pública mais avançada porque com a introdução do modelo assistencial da Saúde da Família a gente passou a ir nas comunidades, antecipando as demandas de saúde. Esses profissionais precisam cadastrar as famílias, ir nas comunidades. No modelo anterior a gente ficava nas unidades esperando a demanda chegar e os únicos que iam éramos nós da Vigilância em Saúde (Epidemiologia). Assim mesmo íamos para como “bombeiros” para apagar incêndios sanitários.

Não estou desmerecendo outras políticas públicas. Pelo contrário. Tenho quatro irmãs professoras aposentadas que atuaram em militância sindical desde 1979 em greves de professores. Uma delas inclusive foi da direção estadual do Sindicato Estadual de Profissionais de Educação (SEPE) do Estado do Rio e também foi vice-prefeita pelo PT numa cidade do interior do Estado do Rio de Janeiro numa aliança com o PSB. Mas de qualquer forma a Educação e a Assistência Social esperam a demanda chegar.

Os críticos de esquerda de bibliotecas recheadas de livros em apartamentos confortáveis vão logo dizer que essa política de Saúde da Família, no fundo é para “controlar” os corpos. Que ela possa ter essa dimensão dependendo de como estiver instrumentalizada há que se ter em conta. Mas reduzir a isso? Seu companheiro já deve ter vivido algumas vezes situações em que nos agradecem pela nossa atuação em alguma ação de saúde. Por mais que nossas remunerações estejam um pouco aviltadas, receber esse agradecimento é uma remuneração que não tem como mensurar. Sensação de fazer o bem é muito bom (desculpe-me o lado “piegas” ou talvez pretensioso, mas …).

Nesse momento da COVID 19 nós que trabalhamos com Vigilância de Óbitos estamos auxiliando os técnicos de Vigilância de Doenças Transmissíveis, do nível central também, a organizarmos e qualificarmos as informações da COVID 19 seja no tocante aos restabelecidos como em relação aos óbitos.

Em relação ao panorama de casos pode-se ver em

http://www.data.rio/app/painel-rio-covid-19

Ontem no trabalho vou listar algumas questões que observei sobre o gerenciamento COVID 19 :

  • Realmente a situação está cada vez mais complicada nas unidades hospitalares do Rio. Inclusive estão transferindo pacientes para Volta Redonda (isso saiu na mídia, inclusive). Não entendi porque não encaminharam para Niterói. Talvez por causa da regulação estadual. Acho que ainda somos muito enrolados gerencialmente. Não dá prá dizer que em alguns casos é má vontade. Agora daí a extrapolar e dizer que o problema do SUS é gerencial num diagnóstico à la Mandetta que votou na PEC do Teto dos Gastos … Não que inexista o problema gerencial mas para ter uma gestão eficiente e eficaz há que se ter investimento para qualificar essa gestão. Para isso é preciso grana para ter carreira, investir em capacitação gerencial etc.
  • Ontem recebemos no nosso setor um coordenador médico do SAMU no Rio de Janeiro (serviço responsável pela atenção às urgências em via pública e domicílio fora de acidentes que fica a cargo dos bombeiros). Ele foi retirar Declarações de Óbito em branco no nosso setor. Aproveitou e como estava eu e o outro médico conversamos sobre a situação. Duas situações nos chamaram atenção:

► Ele acredita pelos chamados ao SAMU que tem acontecido, que os casos aumentarão abruptamente nas próximas 2 semanas.

► Muitos médicos do SAMU muitas vezes não atestam COVID porque existe uma cláusula nos seguros de vida que diz que não precisam ser pagas as apólices em caso de pandemia.

  • Meu setor como eu disse está ajudando no fechamento de casos de COVID 19 através de acompanhamento dos dados clínicos e dos exames laboratoriais. Em alguns casos mesmo sem laboratório podemos fechar como COVID 19 a partir das informações de prontuários e fichas hospitalares. Você não pode mudar uma declaração de óbito no papel mas a partir das investigações epidemiológicas você pode mudá-las no Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) que é um sistema informatizado e padronizado nacionalmente. Temos que ter muita precaução no tocante a falar sobre manipulação de dados epidemiológicos. Muitos atrasos de informações acontecem justamente por causa da falta de prioridade da saúde no gasto público. Por que será que é tão fácil e ágil fazer uma transferência de dinheiro via bancos online? Só para você ter uma ideia. Enquanto dois médicos do meu setor estavam fazendo essa limpeza do banco de óbitos qualificando para COVID 19, para fechar os casos e inserir no SIM, eu estava com a planilha de óbitos e com um outro sistema informatizado nacional aberto de Gerenciamento de Exames Laboratoriais (GAL) para ir pesquisando e atualizando os dados. Para que tanto a nossa rede como para que os sistemas SIM e GAL funcionem dependemos da Internet. Ficamos num turno de trabalho de 8 horas umas 4 horas sem Internet. Mas eu poderia fazer uma transferência bancária do meu celular 4G tranquilamente. Ou ficar ouvindo o Luís Moreira no Duplo Expresso com o meu 4G e meu fone sem fio. E aí vem gente falando que os técnicos escondem dados blá, blá, blá … Como dizia meu pai: “… Tem gente que precisa comer muito arroz com feijão e angu para crescer na vida …” Meus pais eram mineiros e os mineiros tem um ditado bacana: “… Dou um boi para não entrar numa briga e uma boiada para não sair dela …” Entrei na briga por um Sistema Único de Saúde, público, gratuito e universal e dou uma boiada prá não sair dela.
  • Acho que o Rio está muito tímido nas ações sanitárias, sociais e econômicas, coordenadas e principalmente focadas para populações vulneráveis ao contrário de Niterói, que está dando um show.
  • No nível central da SMS-RJ tem muita gente comprometida, séria, compassiva como por exemplo, o Subsecretário da Área Hospitalar mas tem uns gestores que sinceramente …. Deixa quieto …

Um último ponto. Ouvir que “ … Problema do povo brasileiro é fazer psicanálise. …” Completamente Patético. Como você, Romulus, faço análise, no caso lacaniana há 17 anos (agora por WhatsApp) para estar melhor e agir melhor mas sinceramente ela perdeu a oportunidade de ficar calada. Nem sei o que dizer. Só pode estar de sacanagem. Não peraí sacanagem é bom kkkkkkkk. Sem comentários.

 

Outra coisa: Isso … Repita milhares de vezes a história do MERS, calor e Manaus. Aprendizagem de surdos se dá por repetição exaustiva

Site do Coronavirus do Ministério com dados

https://www.saude.gov.br/saude-de-a-z/coronavirus

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