Operações Compromissadas X Depósitos voluntários Remunerados: uma grande manipulação

Por Gustavo Galvão (Doutor em economia pela UFRJ)

O projeto de lei 3877/2020 pode ser uma das maiores armadilhas financeiras da história do Brasil. Vou escrever urgente sobre isso, porque não sei a velocidade de tramitação do projeto no Senado.

Não tenho nenhuma dúvida em relação às melhores intenções do senador Rogério Carvalho do PT, a quem admiro, apoio e deposito minhas esperanças como um futuro estadista. Porém, tenho certeza que não está compreendendo todas as consequências possíveis desse assunto.

Não vou me aprofundar nesse artigo em todas as implicações e ressalvas possíveis em relação ao tema, que pode ser muito técnico. Faço assim, com pressa, porque o tempo urge e temos que traduzir tecnicalidades e idiossincrasias da política monetária de cada país em uma forma simples, compreensível e generalizável. Portanto, vou falar mais da teoria que está por detrás do assunto.

Em resumo, vou mostrar que nenhum projeto que desobrigue ou que crie condições no futuro para que o Banco Central possa suprir liquidez (não emergencial) ao mercado ou definir a taxa de juros de referência sem lastro em títulos públicos não deve ser aprovado de forma alguma, pois pode ser um dos maiores atentados imagináveis à Soberania Nacional. Isso é particularmente válido no Brasil, cuja soberania já é muito enfraquecida e onde diversas instituições ditas independentes, formal ou informalmente, como o próprio Banco Central já deram abundantes evidências de que podem se insurgir contra o interesse público, nacional e o governo eleito democraticamente.

De fato, a ideia em si, é aparentemente inofensiva, como mostra a justificativa do projeto. Mas certamente está casada por detrás, obviamente sem o conhecimento do Senador, com a possibilidade real de independência do Banco Central, cuja aprovação não podemos garantir que nunca será aprovada. Combinada com a independência do Banco Central, objeto de outros projetos legislativos em tramitação no parlamento brasileiro, ela vai reduzir significativamente a soberania fiscal do governo e do próprio parlamento brasileiro, que ficariam reféns do Banco Central.

Por exemplo, se esse projeto e o banco central independente forem aprovados, o auxílio emergencial não poderia ser viabilizado, a menos que houvesse anuência do Banco Central e do “mercado”, pois a imensa expansão dos gastos públicos que ele implicaria levaria a um especulativo aumento geral dos juros dos títulos públicos de qualquer prazo e não apenas dos títulos públicos longos, como acontece hoje.

Dessa forma, combinado com a independência do Banco Central, esse projeto de lei pode levar à desobrigação de suprimento de liquidez ao sistema bancário sem lastro em títulos públicos. Isso seria o fim de qualquer possibilidade de efetiva soberania monetária, fiscal e cambial. Seríamos uma espécie de Grécia pós-crise do Euro, submissa e colonizada, mesmo emitindo a própria moeda.

Nesse sentido, vou fazer um breve comentário baseado, em boa parte, no que o excelente Professor Daniel Negreiros Conceição me explicou por telefone agora há pouco.

Hoje como demonstra de forma incontestável as Finanças Funcionais, a Teoria Monetária Moderna – MMT e a Teoria Cartalista da Moeda, um país que emite sua própria moeda tem soberania monetária para fazer política fiscal com déficit público, definir sua taxa de juros e definir sua política cambial. E isso normalmente é válido mesmo que o Banco Central seja independente, como nos EUA, a Inglaterra e mesmo o Banco Central do Meirelles na época do Presidente Lula.

Em todos os países com soberania monetária, o governo pode ter déficits públicos sem problemas, ou seja, sem causar inflação ou aumento da taxa de juros. Isso só não seria plenamente válido em algumas circunstâncias especiais como Pleno Emprego, por exemplo. Isso ficou extremamente óbvio na crise de 2008 nos países mais desenvolvidos e em todos os países na crise do coronavírus. Este ano, o Brasil por exemplo, terá quase 1 trilhão de reais em déficit público sem praticamente nenhum problema, com juros caindo e inflação ainda muito baixa na prática, apesar da subida do dólar e de algumas commodities em razão do superestocamento de alimentos feito pela China.

Mesmo com o Banco Central Independente, que é uma ideia estúpida, as Finanças Funcionais ainda são eficazes, porque o Banco Central é obrigado a “monetizar” a emissão de títulos do Tesouro Nacional para impedir que essas emissões enxuguem demais a base monetária e criem problemas de liquidez no setor bancário e, principalmente, descontrole a meta de juros (SELIC).

Hoje, quando o Tesouro faz uma grande emissão de títulos públicos, ele enxuga a liquidez do mercado e isso tenderia a fazer com que as taxas de juros subam. Mesmo para um leigo isso seria óbvio, porque ao oferecer mais títulos no mercado, se os compradores continuam na mesma quantidade, eles tenderiam a pedir juros mais altos para comprar mais do que eles estavam desejando comprar até aquele momento.

Mas hoje os juros de curto prazo não sobem quando o governo emite títulos, porque o Banco Central tem uma meta de taxa de juros. Quando o Tesouro faz uma grande oferta de títulos, tendendo a elevar as taxas de juros, o Banco Central por diversos mecanismos possíveis, aumenta a oferta de dinheiro proporcionalmente e assim faz a taxa de juros se manter dentro da meta. No Brasil usam as operações compromissadas com títulos públicos para fazer isso. Dessa forma, o Tesouro Nacional pode emitir títulos à vontade sem medo de que isso vá aumentar as taxas de juros de curto prazo ou que não encontrem compradores suficientes para seus títulos com o mesmo valor da taxa SELIC.

Mas tem um ponto importante para que o sistema funcione dessa forma, a meta de juros que o Banco Central escolhe, tem que ser lastreada ou garantida de alguma forma em títulos públicos, como é o caso das operações compromissadas.

Caso isso não aconteça, ou seja, se a meta de juros que o Banco Central usa para estabilizar o sistema bancário e regular a liquidez não depender de títulos públicos e se os títulos públicos não forem mais um lastro para obter liquidez imediata do Banco Central às taxas de juros definidas como meta, você estará tornando os títulos do Tesouro Nacional similares aos títulos do setor privado, portanto, sujeitos aos humores do mercado e as manipulações dos especuladores.

Isso tornaria na prática o Tesouro refém dos bancos privados, o que não acontece hoje por vias econômicas, mas apenas políticas, através do poder que os bancos e o dinheiro em geral tem sobre o parlamento, as eleições e o judiciário. Hoje o Tesouro é completamente independente dos bancos para se financiar, porque na prática é o Banco Central que corrobora os déficits públicos se a excessiva demanda por liquidez por meio de emissão monetária, pois o Banco Central, através da política de manutenção da meta de juros (SELIC), transforma qualquer quantidade de títulos públicos que o setor privado não queria carregar imediatamente em dinheiro.

Se os depósitos voluntários dos bancos no Banco Central pagarem juros, como propõe o projeto, o mercado poderá migrar das compromissadas para os depósitos voluntários remunerados, aliás, como explicitamente pretendem os defensores do projeto. Isso poderia acontecer se houvesse qualquer dúvida em relação à perfeita substituição entre os títulos públicos e os depósitos voluntários que rendem juros, chamados no projeto de lei de depósitos a prazo no Banco Central.

Essa dúvida surgirá no exato momento em que se abrir uma diferença entre a taxa de juros dos depósitos a prazo no banco central e o dos títulos públicos de mesmo prazo. Essa diferença poderia acontecer em qualquer corrida por liquidez, desde que o banco central não seja obrigado a comprar ou aceitar os títulos públicos como garantia de seu suprimento de liquidez sem perda de valor e sem custos.

Evidentemente, o projeto de lei é muito simples e não abarca todos esses detalhes da operação da política monetária. O problema é como se comportaria um banco central independente, quando ele puder usar a taxa de juros dos depósitos voluntários para regular a liquidez do sistema bancário, em substituição à Selic. Vai acontecer? Não sei, mas é uma tendência óbvia segundo o que dizem os próprios defensores do projeto, que demonstram querer acabar com as compromissadas.

Se isso acontecer, o Banco Central não seria mais obrigado a “monetizar”, “comprar”, toda oferta de títulos públicos do Tesouro. Ele poderá assim, se for independente (ou mesmo não for formalmente independente, como foi Meirelles no governo do PT) se abster de garantir a manutenção da liquidez completa para os títulos públicos, independentemente do montante emitido, como acontece hoje. Inclusive, no próprio projeto a gente percebe essa intenção de fundo, porque ele proíbe que a taxa de juros dos depósitos a prazo no Banco Central sejam maiores do que a Selic, mas não proíbe que sejam menores. Isso mostra que já há uma previsão de não aceitação de títulos públicos como garantia para oferta de liquidez imediata, completa e sem custos.

Para que todos esses riscos que levanto aconteçam, basta que o Banco Central deixe de ter a Selic como meta e use apenas as taxas de juros dos depósitos voluntários como meta. Se ele fizer isso, poderá acabar criando um spread entre as taxas de juros dos títulos de curto prazo do governo e a nova taxa meta do banco central, a taxa de juros dos depósitos voluntários, como permite o projeto de lei.

Assim, quando o governo fizer algo que o “mercado” e seu aliado, o Banco Central Independente ou informalmente independente, não concordem, eles poderão deixar de comprar ou aceitar como garantia títulos do Tesouro sem custos aumentando o spread entre os títulos do Tesouro e a nova taxa de referência do Banco Central (a taxa de depósito a prazo), dando uma indicação para a sociedade, que a política do governo está errada, que os juros vão explodir por irresponsabilidade fiscal ou qualquer outra manipulação do tipo.

Assim, obrigará rapidamente o governo a obedecer fielmente as ordens do “mercado”, sob risco de desestabilização dos mercados de títulos públicos, que podem levar no limite até a uma explosão do spread, como aconteceu no sul da Europa a partir de 2010, quando o Banco Central Europeu restringiu a aceitação dos títulos públicos de alguns países como lastro para suas operações de liquidez, supostamente por causa do rebaixamento de alguns títulos pelas agências de rating.

Se isso acontecer, o Presidente do Banco Central será mais poderoso do que o Presidente do Brasil. Eu acho que o atual governo, caso não queira ficar completamente na mão do “mercado”, e também quem for candidato a Presidente do Brasil em 2022, caso queiram realmente governar, precisam se opor frontalmente a qualquer iniciativa que proponha trocar as operações compromissadas por taxas de juros sobre depósitos voluntários.

Tudo o que afirmamos é uma consequência altamente provável e quase certamente é a intenção por detrás dos verdadeiros idealizadores, que sempre sonharam em colocar os governos 100% dependentes do mercado financeiro. Também não é impossível que seja feita no futuro alguma iniciativa que anule esses possíveis efeitos esperados, caso o projeto seja aprovado. Mas para que piorar um sistema que funciona bem para depender de alguma gambiarra ad hoc aprovada com grande esforço político e que ainda pode não ser aprovada?

Por fim, não vou comentar sobre as alegações de que esse projeto reduziria a dívida pública. Isso é terraplanismo contábil. Coloquem um contador desonesto na Presidência da República que logo todos os números ficarão bonitos para “inglês ver”. Só não posso dizer que vai melhorar na prática alguma coisa…


Se quiserem entender melhor essas questões sugiro meu livro que trata desse assunto, na versão virtual:

https://www.amazon.com.br/Finan%C3%A7as-Funcionais-Teoria-Moeda-Moderna-ebook/dp/B08BKTNFDJ

ou na versão impressa pelos correios, mandando um email para:

gustavoag.santos(arroba)gmail.com

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