99%, UNÍ-VOS! II – Não temos dinheiro para investir (Parte II de III)

Contas Públicas, os fatos e “lendas” que deveríamos conhecer para avaliarmos a verdade por trás dos números!

Por Hélio Silveira¹, Gustavo Galvão² e Rogério Lessa³, para o Duplo Expresso

Na 1ª parte, mostramos as “lendas” da Previdência “quebrada”, agora, daremos continuidade falando de outras “lendas” correlacionadas.

3ª “Lenda”: O Déficit Público crônico e crescente impede o Investimento Público

Leitores atentos do “99% UNÍ-VOS” já entenderam que, para um Estado Desenvolvimentista, não existe restrição para Investimento público. Já entenderam que o Déficit público usado de forma funcional é parte do crescimento da Renda. Um exemplo crucial: em 2008, em plena crise do “subprime” o Governo estadunidense e o Federal Reserve-Fed soltaram “dinheiro a rodo” na expressão de Ben Bernanke – presidente do Fed, na ocasião – para evitar a quebra sistêmica do setor financeiro de lá. Tiveram grandes déficits públicos e, pasmem, “compraram” um grande montante de títulos privados podres do mercado. Entretanto, eles e a Zona do Euro não deram prosseguimento às ações econômicas, não partiram para um Plano de Recuperação, deixaram por conta do mercado. Resultado: 10 anos de baixo crescimento e subemprego para os 99% e valorização de ativos especulativos para os 1%. No Oriente, os países partiram para dar continuidade ao desenvolvimento e hoje mostram uma economia relevante e crescente, ao ponto de provocar até conflitos comerciais entre os blocos hegemônicos!

No Brasil, o Presidente mobiliza seus 3 bancos oficiais para dar liquidez à economia, resultado: do crescimento zero de 2009, alcança 7,5% em 2010! O BNDES, reforçado com recursos do Tesouro, teve ação destacada evitando a quebra de relevantes empresas, endividadas em dólares, pegas no contrapé da desvalorização do real.

Na ocasião, foi revelado um inusitado instrumento de desenvolvimento, o “arranjo institucional BNDES/TESOURO”: o Governo emite títulos do Tesouro para que o BNDES os use em projetos de desenvolvimento e salvamento de empresas. E o mais relevante, com endividamento zero para o Governo! Até aí tudo bem, mas o que isso tem de inusitado? Não endivida o Governo? Conta outra! Ok, na visão ortodoxa assim parece, mas vamos analisar tecnicamente o funcionamento do arranjo.

Mas como não está endividando o Governo? O Governo ao colocar recursos no seu próprio banco, não está se endividando? Claro que não! O Governo apenas está tirando seus recursos do seu Tesouro e colocando no de sua empresa – o BNDES. Ou seja, na prática, está tirando recursos de um bolso e colocando no outro bolso da mesma calça! Mas como, ele não teve que criar títulos? Sim, e não! Sim, ele criou títulos e os guardou no BNDES. Não, o Governo já tinha os títulos no Tesouro e os passou para o BNDES. Mas isso é irrelevante porque o Governo através do Tesouro tem a prerrogativa constitucional de usar ou criar novos títulos! Mas o BNDES não vai monetizar e “jogar dinheiro” no mercado e inflacionar a Economia? Não de forma relevante, o BNDES analisa projetos e financia os escolhidos com sua expertise consagrada. Ele não “joga” dinheiro no mercado, ele financia cada etapa do projeto depois de comprovar a efetivação da mesma. O dinheiro “jogado” na economia de forma parcimoniosa em cada parte do projeto, já sai movimentando a economia como um todo. O “dinheiro” já sai comprando insumos e alavancando impostos, gira a economia de forma produtiva. Quando novamente da maturação do projeto, tem um efeito multiplicador. Tudo por conta da nova produção e anti-inflacionário nos preços, pelo aumento da Oferta. Então, o dinheiro “jogado” na economia poderá até ter um pequeno efeito inflacionário, se a economia estiver no estágio máximo da capacidade instalada, coisa rara de acontecer, porque os empresários sempre trabalham com uma margem de segurança, não chegam ao limite.

Para o leigo é difícil entender o funcionamento do sistema monetário, mas entendam que o dinheiro repassado para o empreendedor do projeto não fica parado em banco. Ele gira nos bancos privados. Aí aconteceram dois fatos monetários: 1- o BNDES retirou dinheiro do mercado ao vender os títulos tendo um efeito anti-inflacionário; 2- mas imediatamente o dinheiro é jogado na economia pelo empreendedor tendo um efeito inflacionário. Então, os dois fatos não se compensam? Mas se gerar um pequeno aumento de liquidez (dinheiro rodando na economia real), e as taxas do mercado caírem, faz parte das atribuições do Banco Central-BC entrar comprando títulos do Tesouro, ou aumentado o compulsório para tirar dinheiro da economia e subir a taxa. Tudo isso é normal e faz parte do dia-a-dia do sistema monetário. Mas se é assim, por que teve tanta crítica do empresariado? Eles, preponderantemente os financistas, alegaram que existia um subsídio: diferença entre a taxa menor de aplicação do BNDES e a taxa da Selic paga pelo Governo nos seus títulos e isso geria dois efeitos negativos: 1- aumento de inflação e do endividamento e custos para o governo; 2- uma prática desleal para com os bancos privados em seus empréstimos, gerando desfuncionalidades no sistema econômico.

Respostas:

1 – Como aumento de custo e endividamento? Primeiro que conforme explicamos, o recurso gera um efeito multiplicador de impostos que compensam a diferença de taxas, isso nunca é mencionado! Também explicamos que o aumento da quantidade dos títulos, se houver criação líquida de títulos, isso é prerrogativa do Governo, aliás de qualquer Governo do mundo que também tenham essa prerrogativa, mas também explicamos que pela “mecânica” do sistema monetário os efeitos de criação e/ou uso dos títulos da carteira do Tesouro, pelo BNDES, ou se compensam, ou se houver efeito residual é corrigido pela atuação normal do BC. Bom lembrar que a tal diferença de taxas acontece com uma taxa real normal do BNDES compatível com as baixas taxas de juros internacionais, versus uma das maiores taxas de juros de curto prazo do mundo! E se houvesse subsídio? No caso prático seria apenas mais uma operação de transferência de recursos entre o dono e sua propriedade, em termos consolidados isso é nulo!

2 – Como uma prática desleal? Pela lógica financeira consolidada no Brasil (desde o acordo como o FMI em 1983), taxas altas de curto prazo, oferecido e garantido por títulos do Governo induzem aos bancos privados a atuar na zona de conforto sem risco, ou do “rentismo”, ou do empréstimo geralmente consignado e/ou garantido pelo próprio bem (imóvel, veículos ou eletrodoméstico) do contrato às maiores taxas de juros do planeta. Por que saírem desse conforto e se aventurarem no risco do longo prazo à taxa mais baixa? Ou seja, bancos privados diante desse conforto nunca aplicaram seus recursos no longo prazo, atuam no máximo como repassadores de recursos externos, com variação cambial, que volta e meia “quebram” as empresas financiadas. Mesmo assim, temem a participação maior dos bancos públicos na economia, por isso tanto atacaram o arranjo BNDES-TESOURO.

Só não pode é, nessa altura do campeonato, alguém perguntar: Mas o Governo não está endividado por conta de seus gastos excessivos? Aí só nos resta chocá-lo! Um Governo não necessita nem de impostos nem de dívida pública para se financiar, ele, simplesmente emite! Vide o “99% Uní-vos”. Mas o mais chocante será dizer para esse alguém que o Brasil em 35 anos (desde que o país assinou o acordo com o FMI) raras vezes teve déficit primário em “Uma Ponte para o Futuro na Era da Pós-Verdade: uma análise sob a ótica do desenvolvimento econômico – Parte III” mostramos que nesses 35 anos tivemos 26 ocorrências de superávits primários, e a soma líquida (tirando os déficits primários) totalizou 49% do PIB! Então, porque estamos endividados? Simples, dívida pública, conforme já explicamos, não é para financiar o Governo, mas sim para dar uma alternativa de aplicação ao setor privado. Mas por que, então, os Governos, nestes anos endividaram-se tanto? De novo, simples: Não para financiar gasto público e/ou investimento, mas para alimentar o “rentismo”. E o pior, às mais altas taxas do planeta!

E qual é o problema do “rentismo”? O problema é é que, ao instalar-se de forma relevante em um sistema econômico, age como se fosse um parasita. Desenvolve-se até matar o hospedeiro! E como isso acontece? Simples, quando os títulos da dívida pública extrapolam e passam a oferecer alta liquidez e segurança, ele passa a ser um fim em si mesmo. De início começa como alternativa de aplicação do excedente de lucros do sistema produtivo, na etapa seguinte passa a concorrer com a atividade real, e quando chega ao ponto de ser aplicação mais rentável que a atividade produtiva de risco e do investimento, ele reduz o giro dos negócios. Então, o Governo (de perfil liberal) passa a aumentar impostos e cortar gastos públicos essenciais. Quando ele se consolida, começa o caminho de matar o hospedeiro. Ou seja, a economia real! Dado as características do atual estágio de nossa economia, não estamos nesse ponto?

Mas, então, o que fazer diante dessa dívida que alcança 74%do PIB e não para de crescer? Tecnicamente, simples diante dos conhecimentos desenvolvimentistas, que teimamos em divulgar, mas, politicamente difícil! Tecnicamente, se o Governo constituiu uma dívida em excesso sem necessidade e não foi um endividamento para financiar nenhum desenvolvimento, visto que estamos 35 anos crescendo à baixas taxas, então da forma que foi criada e cresceu, da mesma forma pode ser desfeita: monetizada em parte nos vencimentos, diminuição de juros e lançar um Plano de Desenvolvimento Nacional para os próximos 20 anos (o mesmo período do “teto dos gastos”), obrigando parte dessa “poupança” congelada a procurar aplicações produtivas. Enfim, várias alternativas. Inclusive a constitucional – a Auditoria da Dívida!

Politicamente difícil, assistimos hoje o domínio das forças do mercado financeiro no comando do país. E o que vemos? Recessão, desemprego e avanço em reformas para tirar direitos consolidados dos assalariados. Então, não resta nada a fazer? Existe, sim: A tomada de consciência dos 99%! Quantos mais de nós nos tornarmos conscientes, esclarecidos, divulgarmos, discutirmos e compartilharmos nossos conhecimentos em vários fóruns, maior resistência ofereceremos ao avanço dos 1%.

Mas não parece um discurso fácil falar que não temos limites para investir? E, vejam só, não temos limites mesmo. Pelo menos até alcançarmos o pleno emprego e algum limite físico de insumos e/ou empregados. No limite, teremos que partir para um aumento de produtividade, impingindo um uso mais intensivo do capital produtivo, adotar novas tecnologias e – até mesmo o impensável –, abrir a porta deliberadamente para imigrantes! Mas se conseguirmos chegar lá, isso será um outro problema, mas um doce problema, não?

Se é tão fácil fazer investimento público, por que o governo não o faz? Porque ele está há 35 anos dominado pela lógica liberal (desde o acordo com o FMI) de perseguir o equilíbrio fiscal e, ao consolidar o “rentismo” desnecessário, os 1% que dominam as finanças e o Governo não querem altas taxas de crescimento. Uma Economia crescendo forte desfaz-se da dívida pública e do “rentismo”, e isso tiraria o poder político e o ganha-pão seguro dos 1%! Não?

Mas essa de aumentar a atuação do Estado, não parece coisa de “comunista”? Não, não estamos falando de comunismo, estamos falando de social-democracia, do Estado do Bem-Estar Social, exatamente o contrário: Estamos falando do remédio que foi aplicado na Europa pós II Grande Guerra pelos próprios liberais produtivos. E o fizeram justamente para impedir o avanço do comunismo soviético! Jorraram recursos oficiais de entidades públicas para a recuperação europeia e japonesa, todos com rápidos resultados. Estados fortes promoveram economias fortes e socialmente inclusivas!

Mas, só foi lá na Europa e no Japão dizimados pela guerra? Não, o bom contágio da social-democracia atingiu inclusive os EUA nos anos dourados entre 1950 e 1960. Vejam no link abaixo o documentário sobre os anos dourados dos EUA “Capitalism: A Love Story” (Capitalismo: Uma História de Amor), de Michael Moore, 2009, dois momentos emblemáticos:  aos 15min:40seg, onde Moore fala da consolidação do “american way of life” que tanto nos propagandearam, e às 1h:53min:30seg, onde ele mostra que Roosevelt anunciou medidas que salvaram Europa e Japão, mas não foram seguidas nos EUA.

Então os EUA foram o maior fornecedor dos recursos aos europeus e japoneses, e nem por isso faltou verbas para promover a era de ouro internamente.

Mas os EUA à época não eram o credor do mundo, não tinham muito dinheiro sobrando? Sim, com certeza tinham, mas também tinham a moeda mais requisitada da época, até hoje! Então, seguramente naquele período, eles também emitiram muito sua própria moeda!

Mas por que atualmente eles não emitem mais ainda para acelerar seu próprio crescimento? Porque eles também estão dominados pelos interesses financistas dos 1%. Os financistas são ingratos: Receberam, em 2018, “rios de dinheiro” criado para salvá-los, mas eles não querem o crescimento produtivo, preferem manter a liquidez criada somente para a especulação em ativos. Essa é sua natureza! Criaram até a expressão: “o baixo crescimento é o novo ‘normal’ ”! Só esqueceram de contar para os orientais, não?

Mas, se não é “comunismo”, não é “Estatismo”, um Estado Forte? E o Estado Forte não nos sufoca? Não, de forma nenhuma. Mostramos aqui diversos instrumentos públicos não ortodoxos, para que um Estado Soberano e Atuante possa agir funcionalmente para levar a Economia ao Pleno Emprego! E quando chegar lá e for vigilante para manter a economia girando os negócios produtivos no ponto ótimo, se verá que a participação percentual do Estado no PIB será reduzida frente ao tamanho do setor privado: das empresas privadas e dos assalariados! Entendam, por favor, “rentismo” o parasita tira as forças do hospedeiro enfraquecendo-o até o fim.

Relembramos, mais uma vez: o Estado Soberano, do Bem-Estar Social não é uma utopia delirante, ele já funcionou e funciona sempre no intuito de corrigir os erros da economia privada, funcionou tanto para recuperar empresas no pós-guerra e funcionou para salvar a banca privada em 2008! Então, porque ficar refém dos 1% e do baixo crescimento? Se não é utopia delirante porque não O Estado Ativo? Delírio? Falem isso para os orientais, que eles estão delirando con-vul-si-va-men-te!

Mas a era de ouro acabou, não tem mais volta! Se olharmos para o ocidente, sim, são 10 anos de “austericídio liberal”, baixo crescimento e desemprego. Mas se olharmos para o oriente com forte participação do Estado Indutor parece que estão numa era dourada! Não?

 

Pausa novamente! Prosseguiremos na 3ª parte do: “99% UNÍ-VOS – II (3ª Parte – O setor privado quer administrar os recursos da Previdência!)…”

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1 Economista aposentado do BNDES
2 Economista do BNDES, doutor em economia pela UFRJ
3 Jornalista Econômico da AEPET – Associação de Engenheiros da Petrobrás

 

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