Em defesa de dar um jeito na Suprema Corte* 

Da Redação do Duplo Expresso,

28/8/2018, Todd N. Tucker**, Jacobin Magazine

Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu

“Todas as condenações em processos de impeachment 
na história dos EUA (oito) foram contra juízes.”

 

Ver também: 
”Contra o(s) Supremo(s) Tribunal(ais)”, 
06/01/2014, Rob Hunter, Jacobin Magazine, trad. port. em 12/10/2016, Blog do Alok
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”Um único voto que mudasse, teria jogado todos os negócios dessa nossa grande nação de volta ao caos mais desesperado. De fato, quatro juízes da Suprema Corte entenderam que o direito em contrato privado para arrancar uma libra de carne humana seria mais sagrado que os principais objetivos da Constituição para estabelecer nação forte (…). A Suprema Corte age não como corpo judiciário, mas como corpo legislativo (…) Chegamos portanto ao ponto, como nação, em que temos de salvar a Constituição, da Suprema Corte; e a Suprema Corte, dela mesma” (Presidente Franklin D. Roosevelt, “Conversa ao pé da lareira”, 3/9/1937, pelo rádio).

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Não devemos admitir que um punhado de juízes reacionários intrometam-se no caminho de mudanças progressistas. É tempo de ‘superlotar’ a Suprema Corte.

Com a Suprema Corte na 3ª-feira confirmando a decisão de Trump de banir muçulmanos (Suprema Corte EUA, SCOTUS); na 4ª-feira atacando os sindicatos de funcionários públicos; e com o anúncio feito pelo juiz Anthony Kennedy, de que se aposenta, é tempo de trazer outra vez para o topo da agenda uma ideia marginal: ‘superlotar’ a Suprema Corte.

O apoio da maioria conservadora ao trumpismo e sua obcecada oposição a qualquer projeto progressista implica que, na atual formação, a Suprema Corte funcionará como barreira que bloqueará qualquer agenda de qualquer presidente e Congresso que tenham qualquer tendência de esquerda, mesmo que levíssima. Esse tipo de barreira tem de ser enfrentada e confrontada com firmeza.

Hoje, essas ideias têm cheiro de veneno ao nariz mediano de autoridades Democratas eleitos e eleitas – lembrem a rapidez com que Al Gore rendeu-se ante a decisão de Bush v. Gore em 2000, apesar das provas que depois surgiram de que ele devia ser empossado como vencedor legítimo e legal daquela eleição. Mas essa deferência nem sempre foi a norma.

Nada há na Constituição dos EUA que especifique o número de juízes ou a precisa organização do judiciário federal, nem há qualquer dispositivo que dê poderes à corte para revisar atos do Congresso.

Tudo isso foi decidido nos anos iniciais da república norte-americana, mediante uma série de leis para o Judiciário no Congresso e sucessivas e crescentes ações, da Corte, para capturar cada vez mais poder. O cientista político Stephen Engel listou 833 esforços pelo Congresso, entre 1800 e 1982 para reorganizar o Judiciário ou para constranger ou encaminhar, mediante ação do Judiciário, interesses políticos. E todas as condenações em processos de impeachment na história dos EUA (oito) foram contra juízes. O mesmo acontece na Câmara de Deputados, onde a maioria dos 19 processos de impeachment também foram contra juízes. Faz perfeito sentido: os pais fundadores tinham tal aversão, visceral, a monarquias e estavam tão incomodados com mandatos presidenciais de quatro anos, que deram ao Congresso a capacidade para remover presidentes em meio de mandato. Nada mais esperável que o extremo cuidado que tomaram contra mandatos vitalícios para juízes nomeados – uma das duas únicas especificações para o serviço de juiz (a outra, é a garantia de jamais ter os salários reduzidos).

Desde o tempo em que os juízes da Suprema Corte afirmaram unilateralmente o próprio poder para derrubar a legislação em 1802, uma supremacia judicial que corrói a democracia é perigo eternamente presente.

Uma das confrontações mais significativas aconteceu em 1937, quando o governo de Franklin D. Roosevelt decidiu enfrentar a briga contra a Corte.

Impossível imaginar disputa em que as apostas fossem mais altas ou mais radicais. Desde os anos 1890s, a chamada “era Lochner”, a Corte fora dominada por juízes dedicados a impedir o crescimento do estado executivo administrativo, mediante interpretações de direita [ing. libertarian interpretations] para a substância do devido processo legal. O caso de 1905 que deu nome à era pôs fim ao limite máximo de horas de trabalho para os padeiros, sob o argumento de que a lei interferia nos direitos dos padeiros que desejassem trabalhar por períodos mais longos. Essa orientação geral prevaleceu até os anos 1930s. Conforme contagem feita pelo cientista político Randall Calvert, de 1934 a 1936, a Suprema Corte ouviu 14 casos contra políticas do New Deal e decidiu contra elas nove vezes. Uma dos ‘revides’ nessa refrega foi a aprovação da Lei de Recuperação da Indústria Nacional (LeRIN) de 1933 [ing. 1933 National Industrial Recovery Act (NIRA)], assinada dia 16/6/1933; vigorou por dois anos] – que prometia, dentre outras coisas, levar a sindicalização à maior parte da indústria nos EUA. (Os trabalhistas não gostaram do modo como a lei foi executada, mas essa já é outra história.)

A hostilidade da Corte na era do New Deal, contra a atividade do governo, não acompanhava rigorosamente a divisão entre os partidos: o bloco conservador, de quatro membros, reunia dois Democratas, e os dois juízes ‘indefinidos’ eram Republicanos. Mesmo os três juízes mais ostensivamente ‘de esquerda’ [orig. liberal] não eram aliados confiáveis. Os três assinaram três sentenças unânimes contra o New Deal exaradas dia 27/5/1935, que ficaria conhecida como “2ª-feira negra”. Dentre elas, decisões contra a LeRIN (no caso A.L.A. Schechter Poultry Corporation X United States) e contra FDR por ter demitido um comissário conservador da Federal Trade Commission (Humphrey’s Ex’r X United States). O leão ‘da esquerda’ Louis Brandeis chegou a assinar a decisão contra moratória em hipoteca, entendendo que seria confisco inconstitucional de propriedade privada dos bancos (Louisville Joint Stock Land Bank X Radford). Outro juiz ‘de esquerda’, Benjamin Cardozo, foi o único a votar contra num caso anterior de processo baseado na (lei) LeRIN (Panama Refining Co. X Ryan). Mas, como o próprio Cardozo escreveu, haveria apenas “estreita” diferença entre sua opinião e a dos demais oito juízes.

Se esses precedentes tivessem perdurado, teria sido impossível construir grande parte da legislação federal básica que assumimos como assegurada (pelo menos até o Tribunal Roberts).

FDR sentira desde os primeiros momentos do primeiro mandato, as dificuldades que teria de enfrentar; e desde o início considerou várias opções para limitar os poderes dos juízes da Suprema Corte como revisores judiciais.

Como o historiador William Leuchtenburg já relatou em seu livro sobre a era, a opinião pública, de modo geral, não acolhia bem as ideias do governo nesse caso – a Suprema Corte tinha imagem associada com a integridade da própria Constituição. Mesmo assim, FDR havia vencido as eleições de 1936, vitorioso em todos os estados, exceto dois, e obtivera a maior quantidade de votos populares da história do sistema bipartidário. Quando voltou ao governo, reeleito, vinha determinado a encontrar um modo de fazer o New Deal avançar.

Dia 5/2/1937, Roosevelt propôs a Lei de Reforma dos Procedimentos Judiciais [orig. Judicial Procedures Reform Act], lei que lhe daria meios para nomear um novo juiz para cada juiz em atividade que se recusasse a renunciar no período de seis meses depois do 70º aniversário. Naquele momento, seis juízes já haviam ultrapassado esse limite; se aprovada a lei expandiria para 15 o número de juízes.

Havia precedentes para a ideia de alterar o número de juízes na Suprema Corte. Em 1789, eram inicialmente seis juízes; ao longo dos anos, os estatutos especificaram cinco, sete, oito e até dez lugares. Nove juízes só passou a ser norma em 1869 – quando James, o meio irmão mais velho de FDR, já tinha 15 anos.

O presidente coordenara o anúncio, de modo a que acontecesse antes da apresentação da defesa oral, dia 8/2 no caso N.L.R.B. X Jones & Laughlin Steel Corp., que tratava especificamente da proibição, pela Lei Wagner de 1935, de qualquer discriminação contra membros dos sindicatos e, de modo mais geral, sobre se o governo podia ou não regular relações trabalhistas. A conversa ao pé da lareira, de Roosevelt, dia 9/3, pelo rádio tratara também de seus objetivos, chamando a atenção para o fato de que a resposta de seu governo, em 1933, à crise financeira, só por um fio conseguira sobreviver à revisão na Suprema Corte:

“Um único voto que mudasse, teria jogado todos os negócios dessa nossa grande nação de volta ao caos mais desesperado. De fato, quatro juízes entenderam que o direito em contrato privado para arrancar uma libra de carne seria mais sagrado que os principais objetivos da Constituição para estabelecer nação forte (…). A Suprema Corte age não como corpo judiciário, mas como corpo legislativo (…) Chegamos portanto ao ponto, como nação, em que temos de salvar a Constituição, da Suprema Corte; e a Suprema Corte, dela mesma.”

O efeito da ameaça de FDR foi imediato. Em poucas semanas, no evento que ficou conhecido como “mudança (de votos) a tempo, que salvou nove (juízes da Suprema Corte) [ing., rimado “the switch in time that saved nine”] os dois votos ‘oscilantes’ uniram-se aos três juízes ‘de esquerda’ para aprovar a Lei Wagner e a lei que instituiu o salário mínimo no estado de Washington. Em 1941, com os sindicatos reforçados por importantes proteções de lei, o número de empregados sindicalizados duplicou pela primeira vez na história (antes ainda de os EUA entrarem na 2ª Guerra Mundial, quando a mobilização industrial levou a mais aumentos na sindicalização de empregados). E àquela altura, já houvera aposentadorias e falecimentos em número suficiente para que a maioria dos juízes da Suprema Corte já tivessem sido nomeados por Roosevelt.

Até o fim dos dois mandatos de Roosevelt, a Suprema Corte abençoou 100% das iniciativas do New Deal, como Calvert identificou em seu estudo.

Não que superlotar a Suprema Corte seja operação fácil. Historiadores documentaram o quanto foi difícil para FDR administrar, nem sempre com sucesso, a opinião pública e do Congresso, e o quanto foi realmente muito difícil obter maioria favorável ao seu projeto de governo. O triunfo veio, afinal, porque o presidente pode ter mais de dois mandatos até que efetivamente conseguiu configurar a Suprema Corte a favor do projeto eleito de governo –, tempo com o qual, atualmente, os políticos eleitos já não podem contar. Isso, além de já haver hoje, na Suprema Corte juízes conservadores relativamente jovens, como Neil Gorsuch [50 anos] que lá permanecerão por décadas.

Mas nada disso nos deve desanimar. O cientista político David Faris argumenta muito sedutoramente a favor da ideia de que ‘superlotar’ a Suprema Corte – além de garantir foro de estado ao distrito de Columbia (DC) e Porto Rico, dentre outras reformas – é pré-requisito para reformas progressistas duradouras.

Em seu novo livro It’s Time to Fight Dirty [lit. “É hora de jogar sujo”, sem tradução ao português], Faris propõe aumentar o quadro de juízes da Suprema Corte para 12 ou 13 imediatamente, e na sequência aprovar lei que permita aos presidentes nomear um novo juiz a cada dois anos. Ao mesmo tempo, os juízes mais velhos serão promovidos para uma espécie de posição Emérita, com menos serviço. Os nove juízes mais recentemente nomeados julgarão o maior número de casos, com os mais antigos podendo ser chamados ao serviço ativo no caso de morte de algum juiz.

Se parecer loucura, considerem o seguinte:



Primeiro, o senador Mitch McConnell recusou até a admitir que o Senado votasse o nome de Merrick Garland — o que já pôs por terra todas as regras do bipartidarismo que ainda continuassem de pé quanto ao Judiciário.



Segundo, e ainda mais inacreditável, destacados Republicanos ameaçaram não aprovar nenhum dos indicados por Hillary Clinton, caso ela fosse eleita – não só naquele ano eleitoral, mas para sempre!

A ação de impedir que presidentes eleitos nomeiem juízes nos casos de vacância legal é praticamente detonar a Constituição – muito diferente, em todos os sentidos, do ato perfeitamente legal e com muitos precedentes, de aumentar o número de juízes.

Terceiro, os quatro novos juízes de Faris são menos que os seis que FDR queria pôr na Suprema Corte, e o maior perigo que a mudança gerou for impulsionar a Suprema Corte para cumprir o seu papel legal de não atravancar o processo histórico e permitir que o país e a história sigam seu curso.

Esse é o ponto importante: com o número de empregados sindicalizados chegando hoje ao ponto mais baixo de toda a história, com a catástrofe do clima já no horizonte, os políticos futuros precisarão de ferramentas ainda mais robustas do que as que FDR conseguiu organizar. Pensem numa Lei para Renovação da Indústria Nacional VERDE e super vitaminada.

Um punhado de juízes escolhidos na Federação das Agroempresas, na Federação dos Bancos, na Opus Dei, na CIA, nos paraísos fiscais ou nas Congregações dos Bispos da Lavagem de Dinheiro do Último Dia não podem estar – e de modo algum devem ser admitidos – na função de impedir o caminho rumo a economia mais democrática e mais sustentável.

Um projeto bem concebido, para repovoar a Suprema Corte, pode efetivamente garantir que a instância máxima do Judiciário passe realmente a representar o tempo e o desejo dos governos eleitos, mais, pelo menos, que interesses e vontades de grupos (não por acaso!) não eleitos e essencialmente atrasistas e reacionários.

Quanto mais prosperem a desigualdade e os abusos dos direitos humanos, com juízes que na Suprema Corte só façam tornar cada dia mais difícil a vida dos cidadãos e mais improvável a sobrevivência do planeta, indiferentes – e não raras vezes fazendo oposição – a governos eleitos, mais rapidamente chegará a o momento de reconstruir uma Suprema Corte que acompanhe mais democraticamente o andar adiante das sociedades.*******

 

* Orig. In Defense of Court-Packing. “O Court-packing plan [aprox. Plano para Superlotar a Corte] refere-se a uma proposta de lei bem-sucedida, encaminhada pelo presidente Franklin D. Roosevelt em 1937. O plano para Court-packing proposto consistia em aumentar o número de juízes da Suprema Corte dos EUA, de nove para 15. O objetivo dessa ‘superlotação forçada’ era aumentar a eficiência da Corte. Mas o presidente Roosevelt queria usar o plano de court-packing para nomear juízes que não bloqueassem – pode-se dizer praticamente sem nem ler – todos os programas do New Deal [Novo Pacto] sobre os quais estava planejado o seu governo (“Sobre a Lei e a Definição Legal do Court-Packing Plan (Law and Legal Definition)”

** Todd N. Tucker é cientista político e professor no Roosevelt Institute. É autor de Judge Knot (março, 2018), livro sobre o papel dos juízes e da Suprema Corte no neoliberalismo. Siga-o em @toddntucker.

 

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