União Europeia: sumário da decomposição
16/6/2018, Jacques Sapir, Russeurope en Exil, Les Crises – traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
A União Europeia está em decomposição. Já é claro, e cada vez mais a decomposição atropela os discursos combinados e o faz-de-conta dos que nossos amigos italianos chamam de “(h)euroinômanos [org. «euroïnomanes»]. Mas semana passada o processo entrou em nova fase de aceleração.
Bem claramente, a questão dos «migrantes» teve papel de detonador. Sobre essa questão, de fato, acumulam-se erros políticos, um discurso pretensamente moral que não passa de conversa moralista, e enorme hipocrisia. A prova aí está, no caso do navio Aquarius, fretado pela ONG SOS-Méditerranée. Mas no fundo a questão apenas reflete as contradições internas que se desenvolveram no seio da UE. Num sentido, pode-se dizer que são raros os dirigentes que ainda «creem» numa União Europeia federal, por mais que o presidente da França agarre-se desesperadamente a essa fantasia.
A decomposição em curso pode resultar num estouro da UE, assim como pode resultar também na evolução do ‘bloco’ rumo a uma zona comercial de regras leves, organizada em torno de vários círculos de cooperação definidos, eles mesmos, por projetos e problemas particulares. Mas, seja qual for a solução, e ainda que o nome «União Europeia» sobreviva, é claro que já não será a UE como foi imaginada e posta em prática a partir da aprovação do famoso «Acte Unique (fr., Acto Único, port. de Portugal)» de 1986. Estamos assistindo ao fracasso de mais de 30 anos de «construção europeia».
Um processo bem avançado
É preciso fazer um relato das transformações, antigas e recentes, que se impuseram na União Europeia. Falamos muito do Brexit, votado em 2016, e que alguns esperaram inverter, não se sabe por quais traquinagens «legais». Ou, com a votação recente no Parlamento britânico, votação que Mme Theresa May venceu, contra a fração pró-UE,[1] já é claro que, sim, o Brexit acontecerá. O Reino Unido deixará a União Europeia, sim, à meia-noite do dia 29/3/2019, horário do continente.[2] As eleições gerais que aconteceram nos últimos seis meses na Hungria, na Áustria e também na Eslovênia, levaram ao poder (ou lá mantiveram) governos que são muito claramente eurocéticos, o que sugere modificação profunda das regras da UE. Agora, afinal, a ação do governo italiano atual, resultado de uma coalizão entre o M5S e a Lega acabou por trazer à luz essas contradições.
A causa da agitação e do escândalo foi a decisão do ministro do Interior da Itália, Matteo Salvini, de recusar ao navio Aquarius fretado por uma ONG, o direito de desembarcar os migrantes recolhidos. As boas almas elevaram-se contra essa decisão. Mas a decisão respeitou por um lado o direito marítimo internacional,[3] e o fato de a ONG em questão não ter atacado o governo italiano é testemunho disso; e, por outro lado, os casos de urgências humanitárias foram respeitados. Apesar de declarações às vezes muito ruidosas, M. Salvini aceitou que mulheres grávidas e doentes em estado grave fossem desembarcados, e a Guarda Costeira continua as operações de salvação. O Aquarius, que é regularmente seguido por aviões de reconhecimento da Marinha, tanto italianos como franceses, jamais esteve sob risco de naufragar, e está sob escolta da Guarda Costeira italiana – o que até a própria ONG SOS-Méditerranée reconhece.[4]
Hipocrisias franco-alemãs
O que, portanto, está em causa é uma política caracterizada por cegueira ante o real, além de imensa hipocrisia – da União Europeia, mas também de Alemanha e França, em particular. Essa hipocrisia, particularmente, força a Itália a carregar quase que exclusivamente o peso de acolher os «migrantes» nos três últimos anos.
Significativo nesse sentido é o recuo do presidente francês, M. Emmanuel Macron, que – depois de ter denunciado a atitude da Itália em termos morais, mais que políticos[5] – foi obrigado a baixar o tom, sob pena de ver cancelada uma reunião marcada para a 6ª-feira, dia 15, com o primeiro-ministro italiano. Declarando que conviria separar política e emoção, o presidente da França recuou para posição mais razoável, mas ao custo da humilhação internacional. A reunião pôde, afinal acontecer, e os dois dirigentes acertaram uma entente tanto mais cordial quanto mais se sabe que a situação chegara à beira de uma crise grave.[6]
Simultaneamente, essa crise introduziu-se na Alemanha, onde Angela Merkel foi obrigada a se recompor com seu próprio ministro do Interior, Horst Seehofer. Esse último, mantido por uma maioria de deputados da CDU-CSU,[7] quer que a Alemanha aprove um acordo com Grécia e Itália sobre a questão dos migrantes, acordo que permita à Alemanha rejeitar todos os migrantes que não tenham sido previamente registrados. É muito embaraçoso para a chanceler Merkel, que será obrigada a pedir a concordância de Alexis Tsipras e de Giuseppe Conte. Muito claramente, a chanceler aparece enfraquecida por essa crise.
Além do mais, circularam informações sobre uma reunião de três ministros do interior, de Alemanha, Áustria e Itália, sobre a questão da imigração ilegal. São governos que mostram vontade de se coordenarem entre eles. Mas, e todos estão vendo claramente, trata-se de uma coordenação intergovernamental, entre estados soberanos, coordenação que contorna assumidamente os procedimentos e hábitos da UE, e que, provavelmente, porá em discussão as próprias regras do bloco. Sinal dos tempos?
Para além da questão dos migrantes
Tudo isso poderia fazer crer que a questão dos «migrantes» esgota a ordem do dia da UE. Mas, se o tema tem, sim, lugar sem dúvida importante, nem por isso é o único– e longe disso. O governo italiano, sempre ele, acaba de anunciar que proporá que o Parlamento não ratifique o Comprehensive Economic and Trade Agreement (CETA) [Acordo Econômico e Comercial Amplo], tratado de livre comércio assinado entre o Canadá e os países da UE.[8] É decisão que, ao término, pode levar à anulação do próprio tratado. Sabe-se que o tratado foi muito contestado, e não sem boas razões, seja do ponto de vista do direito dos consumidores, seja por preocupações com a preservação do meio ambiente, mas também do ponto de vista jurídico. Esse tratado previa o direito dos estados soberanos seja substituído por uma arbitragem comercial. Além disso, essa decisão do governo italiano está em contradição com a vontade da Comissão Europeia de decidir, ela mesma, em lugar dos – e em substituição aos – Estados, todas as questões comerciais. Trata-se aqui, portanto, bem claramente, da reafirmação do papel primeiro, e fundador, da soberania dos Estados.
A decisão tomada pelo governo italiano é, assim, uma espécie de jogar uma pedra na superfície calma do lago, ou melhor, do charco de Bruxelas.[9] Ao mesmo tempo, o governo italiano deixou subentendido que poderia opor-se à reaplicação de sanções contra a Rússia.[10] Aqui também, trata-se de decisão tomada por consenso. Se um país quebra o consenso, outros o seguirão.
Como se vê, as questões econômicas e as questões comerciais têm lugar importante no processo de decomposição da UE. Processo que foi posto em evidência pela decisão da Alemanha de recusar a maior parte das propostas feitas pelo presidente Emmanuel Macron da França.[11] A publicação recente, pelo Observatoire français des conjonctures économiques (OFCE) [Observatório francês de conjunturas econômicas] de texto sobre o papel deletério do euro vis-à-vis das economias francesa e italiana confirma isso.[12] De fato, constata-se que «a dupla franco-alemã» não existe, senão nos delírios dos editocratas franceses.
As formas das «narrativas» da crise engendrada pela Itália,[13] para começar nos «noticiosos» da imprensa alemã, mas também nos termos extremamente duros que Emmanuel Macron usou, são sintoma da decomposição da União Europeia, mas são também uma das causas dela. É portanto evidente que a União Europeia já não «protege» e não favorece a paz ou o entendimento entre os povos. Pode-se dizer que, isso sim, faz o contrário.
Capas escandalosas da ‘mídia’ alemã
A volta da soberania das nações
Essa decomposição da UE é processo de longo prazo, engendrado pelas contradições internas à instituição, e também por sua incapacidade crônica para se reformar além de mudanças apenas marginais. Nesse contexto, o gesto de Matteo Salvini no caso do navio Aquarius, aprovemos ou desaprovemos, provocou uma importante cesura. Demonstrou que um país podia ignorar e ignorou as regras da União Europeia. Ao mesmo tempo demonstrou que não existe «soberania europeia», esse mito tão caro a Emmanuel Macron, mas existe… a soberania italiana.
O gesto dos italianos terá consequências. Primeiro, contribui para novamente dar aos italianos alguma confiança no próprio governo e nas capacidades da Itália. É evento importante, num momento em que outros enfrentamentos aproximam-se, principalmente sobre a questão econômica. Mas o gesto do governo italiano é também importante para os outros países da União Europeia. Porque, se a Itália pode recuperar a própria soberania, pode também, num momento de crise, decidir que o país fixa a agenda dos problemas a resolver e que tipo de solução lhes dar – o que é uma definição de soberania –, lição que outros países não esquecerão.
É muito provável que se veja, nos próximos meses, uma aceleração do processo de decomposição ao qual já nos referimos. Ao mesmo tempo, esse ato de recuperar a soberania não é de modo algum incompatível com procurar cooperações nas quais seja possível escolher os parceiros, que não sejam impostos por Bruxelas. Desenham-se portanto os contornos de um outro modo de organização da Europa, uma ordem pós-União Europeia, mas que só poderá afirmar-se quando for oficialmente declarada a morte da velha ordem.
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[1] https://www.bbc.com/news/uk-politics-44456035
[7] “A União”, também conhecida como “Partidos da União” é uma aliança política dos partidos democratas cristãos alemães: a União Democrata-Cristã e a União Social-Cristã [NTs, com informações de Wikipedia].
[8] www.lesechos.fr/monde/europe/0301823856135-le-parlement-italien-appele-a-rejeter-le-ceta-2184143.php
[9] Orig. La décision prise par le gouvernement italien constitue donc un pavé dans la mare, ou plutôt le marigot, de Bruxelles [NTs. Correções e comentários são bem-vindos.]
[11] https://www.romandie.com/news/926189.rom
[12] Villemot S., Ducoudré B., Timbeau X., « TAUX DE CHANGE D’ÉQUILIBRE ET AMPLEUR DES DÉSAJUSTEMENTS INTERNES À LA ZONE EURO », in Revue de l’OFCE, n°156 (2018)
[13] https://www.ft.com/content/087e3a12-6b1e-11e8-8cf3-0c230fa67aec
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