Desenvolvimento e soberania: uma relação necessária

Segue, abaixo, o resumo escrito do comentário desta semana do cientista político Felipe Quintas no Programa Duplo Expresso, com o tema “Desenvolvimento e soberania: uma relação necessária”. O início da fala de Quintas já está marcado na janela de vídeo abaixo, bastando clicar play para inicia-la.

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“Desenvolvimento e soberania: uma relação necessária”

Por Felipe Maruf Quintas, para o Duplo Expresso

Existe muita confusão (propositalmente criada pela grande mídia e a ortodoxia monetarista, sacerdotes da alta finança) entre crescimento e desenvolvimento e, ainda por cima, limitando-os a seu aspecto econômico e não enxergando as relações políticas e sociais que os caracterizam em cada contexto. Dificilmente ocorre desenvolvimento sem crescimento mas esses aspectos não são redutíveis um ao outro. Crescimento, na verdade, refere-se simplesmente ao aumento quantitativo do produto interno medido em termos financeiros, geralmente em dólar, sem necessariamente qualquer repercussão na estrutura física do país, na sua capacidade endógena de produção de riquezas, na sua inserção no comércio internacional e na sua organização social, ainda que, quando ocorra sem desenvolvimento, seja apropriado quase inteiramente pelas oligarquias existentes, servindo apenas a propósitos privados.

O desenvolvimento, por sua vez, significa uma transformação estrutural das relações materiais e sociais, com novas combinações técnicas produzidas nacionalmente que elevem a complexidade produtiva do país e sua posição nas cadeias globais de valor, articuladas com um rearranjo social no sentido de maior diversificação ocupacional e maior mobilidade social, tornando possível mais tipos de aspirações pessoais serem realizados. Não necessariamente coexiste com a redução das desigualdades sociais, vide os casos do Brasil do “Milagre” e da China dos anos 1990 e 2000, embora em outros, como nos países escandinavos durante os “trinta anos gloriosos” (1945-1973), tenha feito parte da estratégia desenvolvimentista conduzida pelos governos social-democratas. O desenvolvimento é, assim, um processo de longo-prazo de caráter público, multidimensional e totalizante, cujo aspecto central é a criatividade em todos os níveis, politicamente orientada pela ação coordenadora do Estado.

Esse último ponto é outro em que crescimento e desenvolvimento se diferenciam: enquanto o primeiro, em si só, pode ser mero reflexo de oscilações de preços internacionais ditados pela política de grandes corporações sediadas nos países centrais, o segundo sempre acontece a partir da ação deliberada e coordenada do próprio Estado. A posição privilegiada desse último no conjunto do país, dado o seu monopólio da violência física legítima em todo o território, lhe permite alocar recursos segundo uma estratégia de longo-prazo que supere as de curto-prazo dos agentes individuais. Não existe nenhuma experiência histórica de desenvolvimento que não tenha passado pela liderança estatal a partir de múltiplas formas de intervenção do poder público (construção de infraestrutura, protecionismo alfandegário, incentivos tributários e fornecimento de crédito público a atividades promissoras selecionadas como prioritárias, capacitação da força de trabalho, geração endógena de tecnologia, planejamento salarial, criação de demanda a partir de compras governamentais para fins civis ou militares etc.). Também favorece a negociação entre diferentes interesses e grupos sociais em termos favoráveis ao desenvolvimento, mantendo e se possível incrementando a coesão social e a estabilidade institucional em um contexto de profundas mudanças, nos quais os beneficiários da ordem anterior são preteridos em favor de novos grupos, vinculados à dinâmica desenvolvimentista. A coesão social e a estabilidade institucional, ampliando a capacidade estatal de intervenção desenvolvimentista, são fundamentais para a sustentabilidade desse processo, intrinsecamente de longo-prazo.

O desenvolvimento, portanto, ao contrário do mero crescimento, só é possível com um elevado grau de soberania nacional, que permita à coletividade se autodeterminar em última instância, mesmo a despeito de pressões externas em sentido contrário. Para isso é fundamental que haja o controle nacional sobre os recursos estratégicos do país (territoriais, naturais, financeiros, produtivos e, sobretudo, humanos/sociais/demográficos), a fim de utilizá-los a favor do desenvolvimento. Para que esse controle seja possível, é preciso que haja um forte sistema de defesa, um poderio militar proporcional à importância e grandeza do país no mundo, que deve ser tanto maior quanto mais se expandir o poder nacional. Sendo a defesa de uma nação “muito mais” importante que a sua opulência, como assinalado por Adam Smith no livro IV d’A Riqueza das Nações, isso se deve ao caráter geopolítico do desenvolvimento, uma vez que a riqueza e o poder das nações, sua capacidade econômica e militar, são indissociáveis, ainda mais quando se trata de potências de fato ou aspirantes. Essas condições permitem ao Estado, representante institucional da nação, dispor dos meios para impulsionar o desenvolvimento.

Esse, por sua vez, reforça a soberania do país ao incrementar seus recursos materiais (substituindo importações e melhorando sua posição tecnológica e comercial no mundo, alinhando sua pauta exportadora ao estado da arte da tecnologia mundial) e ampliar os horizontes sociais, nacionalizando os centros de acumulação e reduzindo assim o grau de dependência ao exterior, em um círculo virtuoso no qual mais recursos podem ser dispendidos em investimentos públicos com finalidades produtivas e sociais, que por sua vez aceleram o desenvolvimento e democratizam o acesso aos recursos criados. Soberania e desenvolvimento se retroalimentam em um processo que é não apenas econômico, mas, sobretudo, político e geopolítico.

 

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