A culpa do estupro é sempre a minissaia: sobre plantios e colheitas

Por Niobe Cunha, para o Duplo Expresso

Tá difícil de respirar. O ar anda carregado. Qualquer boa notícia nos anima um pouquinho, mas logo em seguida vem bala. Sim, vem bala, pedrada, chicotada, emboscada. Antes de contar até 10 vem outro e mais outro absurdo. Aqui em casa aprendi que a gente conversa: Tá doendo? Vamos conversar um tantinho! Tá triste? Depois, quando quiser, senta aqui pra um café quentinho e a gente troca uma ideia!

Às vezes, claro, o “pau come na casa de noca”. Afinal, tem sangue calabrês do velho Antonio Carmelo Adolpho Gallo navegando pelas veias familiares. A conversa vira furdunço. No fim, nada que um bom pedaço de pão molhado no azeite e uma taça de tinto não celebre.

Nesse espírito, vamos remendando o coração de horrores no Pará, de Marielle, das quebradas onde tantas Marielles morrem incógnitas todos os dias sem direito a hashtag solidária, de uma violência doentia fora de controle sob escolta de intervenções fictícias pra cartão postal em confronto com milícias e facções. Desassossego. Vamos então trocar ideias, conversar, debater, tentar entender, ouvir.

Daí vem a coroação do mal: “Lula está colhendo o que plantou!”

Quando li isso achei que tinha ficado disléxica, devo estar trocando letras, palavras. Imediatamente senti ainda o quente do sangue de Marielle esbarrar em mim: “…está colhendo o que plantou!” Os músculos retesaram: “irmã Dorothy Stang colheu o que plantou, Chico Mendes, os Guaranis Kaiowás, o policial que morreu em combate, a criança jogada da janela, os pais assassinados pela filha”. Ao invés de terra fértil, terra arrasada.

“Ah, mas foram eles quem começaram o nós contra eles!”

Quem são eles? Quem somos nós? Que nó é esse que foi dado que é difícil de desatar? Porque quando se acusa uma violência, por algum mistério algumas pessoas ao invés de olharem para o fato (quando lhes convém, é claro) relativizam e buscam na vítima uma justificativa para a consequência? Porque é tão difícil de lidar com o espelho mágico que revela nossa sombra? Minha mãe quando eu era pequena e reclamava que algum professor tinha passado dos limites respondia: “Alguma coisa você aprontou, conheço meu gado!”

Confesso que nunca fui santa, sempre dei trabalho pros professores, mas eu não tinha nem o direito de ser injustiçada por isso, por ser rebelde? “Ah, tava andando de saia curta, dando mole, depois reclama…”

O mal está sendo justificado. Minha mãe, de novo, intervinha nas brigas dos irmãos que discutiam pra saber quem provocou quem, quem começou o quê: “Não quero saber quem começou. EU vou terminar!” Olhar dirigido a cada um dos 3 pequenos e a palavra definitiva: “Chegou!” A gente sabia que a coisa acabava ali com a autoridade de mãe.

Estamos nos debatendo diante dessa plantação de ervas daninhas de quase 500 anos. Herdamos frutas podres nessa colheita e com elas temos que nos virar pra saciar fome e sede.

Quem plantou o quê?

Quem são eles?

A culpa do estupro é do decote?

Perguntas pra distrair a plateia. Estamos diante de terra arrasada. Como o caso do Padre José Amaro Lopes de Souza, da paróquia de Santa Luzia de Anapu, no Pará, parceiro e sucessor do ativismo da irmã Dorothy Stang, assassinada em 2005. Ele foi preso acusado de “promover invasões de terras que são reconhecidas pela justiça como terras públicas, destinadas à reforma agrária”.

Colhendo o que plantou? Gostaria de convidar essas pessoas que repetem isso roboticamente a pensarem em momentos trágicos, de grandes perdas, de desespero total, de falta de chão e de ar. Ali você estava colhendo o que merecia? Quando uma pessoa sofre um abuso qualquer, você diz ou pensa que ela colhe o que planta? Alguém se dá o trabalho de abandonar a sua vida pra militar por alguma causa pensando em colher tiros?

Estou brava e cansada de discutir bobagens enquanto a gente vive esse divórcio com o bom senso. Discursos pretensamente pacifistas repetem hipocritamente a palavra empatia. Esse ódio todo não foi plantado por A ou B, nem mesmo colhido por eles (ou nós). Foi cultivado por senhores poderosos e distribuído gratuita e fartamente na caixa d´água de quem tinha sede, mas não importa a fonte.

A culpa nunca é da vitima. A culpa, no fundo, no fundo, é nossa!

 

PS: A frase “o PT colhe o que planta”, foi o comentário de um pré-candidato a presidência da República sobre o ataque a bala sofrido pela caravana de Lula pelo Paraná na última terça-feira, dia 27 de março. Esse pré-candidato até o momento registra um dígito de intenções de votos. A frase foi hipnoticamente repetida por pessoas que viram no ataque, “muito mimimi esquerdista”.

 

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