Ensurdecidos por uma Imagem

Por Amanda Rabusky, para o Duplo Expresso

 

Começo ilustrando a versão de Ovídio do tão famoso Mito de Narciso. É muito comum escutarmos das mais diversas bocas a expressão: “Ele(a) é um(a) narcisista!”. Será que sabemos o que isso significa? Irei relatar brevemente o Mito que deu origem à expressão, na tentativa de traçar um paralelo com a nossa atual conjuntura política. Pelo menos é o que espero lograr! Os efeitos, só saberei a posteriori

Pintura “Eco e Narciso” por John William Waterhouse (1903)

Vamos ao Mito. Iniciamos com uma violência – não diferente de muitas vidas mundo afora. Narciso nasceu do estupro da ninfa Liríope por Cefiso, o deus dos lagos. Desses corpos, um terceiro foi gerado. Narciso era uma criança belíssima. Belíssima, mesmo! Tamanha era sua beleza, que os deuses se sentiram ameaçados. E sabemos que ninguém pode ser ou ter mais do que os deuses.

Acontece que a beleza de Narciso causou desejo nas deusas, nas ninfas e em todas as mulheres da Grécia. Nossa! O que restará aos homens e aos deuses sem as mulheres? Reação: Os deuses ficaram furiosos!

A mãe de Narciso, que, como muitas mães, queria poupar os filhos de futuras tragédias, foi consultar-se com o Oráculo, para saber da vida do filho e dos possíveis castigos que ele sofreria. Não teve erro! O Oráculo proferiu: “si non se uiderit”, ou seja, “se ele não se vir”. Se ele não se vir? Como assim? Narciso não poderá ver sua imagem se quiser ter uma vida longa? É isso mesmo!

Os anos se passaram, e Narciso foi ficando cada vez mais belo – se é que isso é possível. Com a beleza, veio a arrogância e a vaidade. Narciso não queria saber de ninguém além dele mesmo. Afinal de contas, com tamanha beleza, é de se esperar que só tivesse olhos para si. Sua bolha não furava. Narciso estava preso em sua própria esfera, e, pior, não havia como furá-la. Afinal de contas, Narciso era completo! Ou seja, ele se bastava, não tinha carências. E, sem carência, não há desejo. O desprezo de Narciso pelo outro fez com que Nêmesis, a deusa do destino e da vingança divina, o condenasse a se apaixonar pelo próprio reflexo na lagoa.

No desenrolar do Mito, surge Eco, uma ninfa cujo grande atributo era o domínio da palavra. Sua enorme eloquência, a tornava capaz de entreter as pessoas com longos discursos. Certa vez, utilizou esse talento, para distrair a deusa Juno, a fim de que as outras ninfas – que assediavam o marido desta, Júpiter – pudessem fugir. Juno, ao perceber que fora enganada pela ninfa, vingou-se, condenando-a a eternamente repetir as palavras dos outros, duplicando seus sons. Eco foi transformada numa voz ressoante. Além de não mais conseguir falar por conta própria, podendo apenas repetir o que os outros diziam, lançando palavras fora de contexto, Eco não podia se calar. E, ao reverberar a fala de terceiros, só conseguia repetir as últimas palavras por eles proferidas.

Eco, ao ver Narciso entrando no bosque, por ele se enamorou e se ardeu de paixão, seguindo-o mata adentro. Narciso, que não percebeu a presença de Eco, gritou: “Alguém me escuta?”. Repetiu Eco: “Escuta!”. Narciso então falou, procurando por toda a parte pela voz: “Vem!”. Eco repetiu: “Vem!”. “Por que foges de mim?”, fala Narciso. E escutou a mesma frase de volta. Narciso, pensando estar sendo iludido pela voz que replicava, disse: “Aqui nos juntemos!”. E Eco repetiu: “Juntemos”. Eco, ao escutar a proposta de sexo de Narciso, saiu de seu esconderijo e abraçou-o no pescoço. Narciso ficou escandalizado e disse: “Tire as mãos, não me abraces, morrerei antes que tu possas me reter!”. E Eco repete: “Que tu possas me reter!”.

Narciso, que era capaz de se enamorar apenas de si mesmo, rejeita Eco de todas as formas. Narciso dialoga consigo mesmo, pois a ninfa Eco é incapaz de semanticar. Eco é a repetição acústica, sem sentido. Eco, desiludida pela rejeição do amado, começa a definhar, seu corpo desaparece, até restarem apenas voz e ossos. E seus ossos rapidamente viraram pedra, sobrando apenas a voz. Voz que ressoa: Eco. Não há mais corpo, a voz de Eco perdeu sua unicidade e seu timbre. Eco funciona como um espelho acústico que repete os sons. E Narciso, incapaz de amar ao outro, morre enamorado pela própria imagem refletida no lago. Tragédia como em todos os Mitos. Enfim, Narciso estava destinado…

E a tal conjuntura política nisso tudo aí de Mito? Pensemos: estamos em ano de eleição aqui no Brasil. E mais, estamos vivendo um golpe e em pleno estado de exceção. Ora, isto todos estamos carecas de saber. (Quase todos!) Mas, então, por que a sensação que temos é a de que essa situação não muda, não melhora? Por que não conseguimos “acabar” com o golpe? Afinal, somos milhões de brasileiros. Ah! Aí está a grande pergunta. E é neste ponto que articulo o Mito com a nossa atual conjuntura.

imagem esq: Sérgio Moro recebe prêmio da Globo por © Fabio Rossi (2014) / Agencia O Globo | Imagem dir: DJ Paul Pepper™, Lula e Damous por @ Facebook reprodução (2018)

A nossa cultura, a lógica do capital na qual estamos inseridos, estimula o consumo. Crescemos numa sociedade em que milhares de produtos e serviços são lançados e estão disponíveis para consumo a todo instante. Com o advento e o avanço tecnológicos, podemos consumir produtos e serviços produzidos a milhares de quilômetros, sem que, para isto, saiamos do conforto de nossas casas. E essa lógica proporciona uma sensação no indivíduo de que, para que ele seja “aceito” nesta sociedade, ele tem que consumir. Ou seja, “Só sou alguém, se tiver dinheiro para comprar e ostentar o que comprei, porque não basta ser lindo, como Narciso, é preciso ser admirado”.

Vimos, com o Mito, que Narciso era dependente de sua imagem. Um ser frágil e prestes a se desmanchar no lago. Bastava um vento balançar as águas, que sua imagem apareceria trêmula. Isto se dá na sociedade atual. Temos indivíduos frágeis e dependentes, e, além disso, com agressão reprimida, pronta a se liberar. Assim como Narciso fez com a ninfa Eco, quando ela declara seu amor a ele. Narciso, em fúria, a afasta, “tire suas mãos de mim”, não há espaço para mais ninguém. Temos aí, então, o indivíduo voltado para si mesmo, incapaz de ver o outro, incapaz de amar, incapaz de respeitar, incapaz de se socializar.

São indivíduos que querem aparecer a qualquer custo, utilizando-se de diversas artimanhas, para que seu Eu não seja ameaçado pelo outro. Poderíamos mencionar casos de parlamentares que, principalmente em ano de eleição, exaltam suas imagens, na tentativa de continuarem defendendo seus anseios. Alguns até, diria eu, utilizam o contato direto com lideranças, para, literalmente, “aparecerem bem na foto”. Por isso, temos de ficar de olhos, ouvidos e todos os sentidos bem abertos. Vamos refletir, pessoal. Não nos deixemos seduzir pela beleza de Narciso. Afinal, de belo, Narciso não tinha nada, além de poder ser muito cruel, quando sua beleza é ameaçada.

Nessa busca pela imagem, os indivíduos desvalorizam o outro e apresentam desinteresse por qualquer coisa que possa lhes causar danos. Narciso não se identifica com o outro, pois é incapaz de fazer isso. Narciso sente-se onipotente. Assim, poderíamos dizer que há uma predominância do privado sobre o público. Mas voltemos ao Mito. Narciso age assim porque se sente desprotegido, impotente, carente de autonomia e de autoconfiança: ele é frágil! E, pior, não consegue ver no outro um auxílio para o seu bem-estar, a sua satisfação.

A ninfa Eco, por sua vez, definha, perde o corpo e a voz. Temos aqui, fazendo uma analogia, todos os indivíduos que se identificam com uma ideia, uma liderança, um partido, mas não conseguem refletir sobre a nossa atual conjuntura. São indivíduos que agem repetindo discursos, que agridem, que são violentos, que promovem o mal-estar social. São indivíduos que não são sujeitos, mas meros ecos. Repetem e repetem, mas jamais questionam. E, assim assujeitados, eles definham. E sabemos que sujeitos que abrem mão de seus desejos são incapazes de buscar e alcançar satisfação, de alcançar a “felicidade”.

Então, para finalizar, lanço algumas perguntas: Que tipo de pessoas queremos nos tornar? Pessoas com voz? Pessoas reflexivas e pensantes? Pessoas que visam o bem comum, pois sabem que somente com o outro poderão ser felizes? Ou seremos aqueles que definham e abrem mão de uma sociedade justa, igualitária e democrática?

Montagem com stills do filme “The Wall”, Alan Parker e Gerald Scarfe (1982)

Pink Floyd – Another Brick in The Wall (HQ) 

Amanda Rabusky é Psicanalista. Mestranda em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Revisão, sincronia e montagem: Yorkshire Tea  |  Trucagem: Carlos Krebs

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