Manual “secreto”: como a internet levou – e mantém – Bolsonaro no poder
Publicado 23/ago/2019 – 6:54
Atualizado 23/ago/2019 – 14:00 – debate no D.E. de hoje (ver final)
A palavra chave aqui é desorientação e sobrecarga cognitiva. A sobrecarga se deve às característica da moderna sociedade da informação e seus múltiplos estímulos comunicacionais. A cesura se dá não propriamente pela ocultação definitiva de conteúdos relevantes mas por um bombardeio de saturação à atenção do indivíduo com conteúdos irrelevantes/ manipuladores. Some a isso um Bolsonaro “mitando” em contraponto a uma esquerda “lacrando” nas redes sociais em temas morais, a coleta, o processamento e o uso de big data para sequestrar — e moldar — o “debate” político e você tem parte da receita de bolo que explica o Brasil atual. E que nos possibilita pensar uma reação.
Manual “secreto”: como a internet levou – e mantém – Bolsonaro no poder – Parte 1 (de 3)
Por “Caos Soberano”, especialista em segurança e tecnologia
Título original: “Ferramentas de guerra híbrida e sua implementação” – Parte 1 de 3
O Duplo Expresso sempre fala sobre guerra híbrida, sobre manipulação das eleições com o uso de redes sociais, sobre violações da privacidade e sobre estado de vigilância.
Mas por mais que se fale, é importante esclarecer as pessoas para esses problemas que se tornam a cada dia mais graves e afetam nosso dia a dia, nosso sistema político e consequentemente nossas vidas.
Não vou me aprofundar no debate sobre nomenclaturas e classificações, pois acho no momento mais importante a discussão dos impactos diretos e indiretos da aplicação de tecnologias que afetam o comportamento humano, da indiscriminada violação da privacidade e do anonimato, que caminham para a violação da liberdade de expressão, e a implantação de um modelo totalitário em que provavelmente muitos vão repetir: “As instituições estão funcionando normalmente”, ou a “democracia é plena no Brasil”.
Quem acompanha o Duplo expresso já deve ter ouvido várias vezes falar de estratégia de pinça, guerra híbrida, aproximações sucessivas e outros termos afins. Sobre isto é imperdível o papo do Piero com o pessoal da revista Opera (aqui).
Vamos nos concentrar no essencial: entender os mecanismos utilizados. Por que são tão eficientes e como interagem com a política e os agentes econômicos para criar uma paralisia que permite o avanço dos ataques do Imperialismo e de seus sócios nacionais.
Os mecanismos utilizados para manipular o comportamento humano são estudados pelo menos desde o início do século XX, com John B. Watson em 1913 e, posteriormente, com B. F. Skinner a partir de 1945. Sistemas básicos de respostas a estímulos e punições são descritos em quase todos os materiais básicos de psicologia. Ademais, elementos antropológicos e culturais específicos já são usados como arma de guerra há algum tempo.
Durante a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria vimos diversas operações deste tipo, tanto de um lado como por outro, com resultados variáveis.
Um fator que sempre deve ser levado em conta é que a implementação de operações psicológicas em larga escala e com um impacto profundo, tinha um custo alto e um tempo de implementação também alto.
O que vemos hoje? O que mudou e por quê?
As grandes questões aqui são:
– Quais são as pré-condições necessárias para que este processo sejam implementados?
– Como é possível fazer isso em sequência, com grande velocidade e eficiência?
– Como prevenir que uma ação ou uma variável inesperada da conjuntura impeça esse processo de ter sucesso?
– Como implementar isso com uma amplitude que abranja o todo ou uma parcela significativa da sociedade? (mais sobre isso na segunda parte desta série)
Vamos começar pelas pré-condições necessárias à implementação deste processo. Ou seja, o que fragiliza as sociedades.
Pré condições
As modificações socioculturais e econômicas provocadas pela globalização prepararam o cenário perfeito para que tais ações assumissem uma proporção até então impensável no cenário mundial.
Com a imposição de um estado financeirizado a nível mundial a partir da crise da queda do muro de Berlim e do estabelecimento do chamado consenso de Washington, cria-se o prospecto de um Estado cuja função prioritária não é mais proporcionar o bem-estar social e dirigir a sociedade no caminho de um estado mais justo e igualitário do ponto de vista material. A prioridade do Estado nesse novo cenário seria promover a igualdade de oportunidades em um cenário competitivo e manter um draconiano equilíbrio fiscal, nem que isto significasse abrir mão de políticas de desenvolvimento, programas sociais e de serviços até então considerados a base do Estado no Século XX, como saúde, educação, segurança e transporte.
Pois uma vez que o Estado garantisse a igualdade de oportunidades de competição o mercado se encarregaria de suprir todo o resto.
Tais modificações nos objetivos fundamentais dos Estados-nação geram uma profunda desestabilização nas relações entre o Estado e seus cidadãos.
Os impostos coletados dos cidadãos não mais retornavam como benefícios, não retornavam mais como ferramenta de fomento ao desenvolvimento econômico. Paradoxalmente, a retração do “Estado-providência” gera uma amplificação no discurso de que o Estado é inchado e ineficiente e que portanto deve ser enxugado ainda mais.
Esse processo leva a uma espiral de esvaziamento da estrutura e legitimidade do Estado, tudo em benefício do sistema financeiro transnacional.
Sobre este assunto deixo aqui, em homenagem ao Piero Leirner, citações de um discípulo de John Boyd, John Rob, um ex integrante das Forças Especiais dos EUA e consultor de diversos órgãos de segurança dos EUA: DoD, JCS, CIA, NSA, NIC e ODNI.
Faço questão de citar uma pessoa ligada ao aparato de defesa dos EUA, pois devemos saber que eles entendem estes processos e como utilizam essas análises contra nós.
Sobre o esvaziamento do Estado (ele chama de Estado oco):
“Continua a existir (o Estado) no cenário internacional e tem todos os edifícios padrão de governança. No entanto, ele é fortemente corrompido pelas elites globais corporativas/ monetárias. Ao contrário de um Estado falido, um Estado oco ainda fornece um mínimo de bens políticos (para um grupo muito reduzido em torno da capital) e mantém um exército. Para pessoas de fora, parece um Estado funcional. Tem toda a pompa e circunstância que você esperaria.
No entanto, apesar dessa fachada, o Estado oco abdicou (de forma explícita ou de fato) de poderes e territórios para grupos não-estatais.”
Os “grupos não estatais” a que ele se refere são grandes corporações e crime organizado. Soa familiar?
Sobre o processo de tribalização e lealdades primárias:
“O declínio de um Estado-nação funcional para um Estado oco parece repentino para os observadores. Para os indivíduos, a experiência é um declínio sustentado do padrão de vida. Com o passar do tempo, os itens e serviços críticos tornam-se cada vez mais inacessíveis – cuidados de saúde à habitação. Pequenas empresas desaparecem ou se tornam presas de empresas/ indivíduos conectados com acesso ao poder coercitivo remanescente do Estado-nação. À medida que a privação se torna comum, as pessoas recorrem à lealdade primária em busca de apoio e serviços – lealdade a uma corporação, tribo, gangue, família ou comunidade. Esses grupos, energizados por novos níveis de lealdade, mas profundamente obrigados a retribuir essa lealdade com apoio, tornam-se extremamente agressivos em busca de sua sobrevivência. Uma vez que essa mudança na lealdade é feita, um ciclo auto-gerador de violência, crime e corrupção (alimentado em grande parte por conexões com o sistema de mercado global) se torna entrincheirado. O Estado-nação, nesse ponto, torna-se irremediavelmente oco.”
Soa familiar? Algo que lembre igrejas e organizações criminosas ocupando o vácuo deixado pelo Estado nas periferias e zonas ermas?
Diante desse terreno propício a desestabilização, aplicado em maior ou menor grau em praticamente todos os países no mundo, com honrosas exceções como Rússia e China, abre-se um espaço para o uso de avançadas técnicas de modificação comportamental, amplificadas pelo poder de difusão quase instantânea e capilarizada proporcionado pela internet e auxiliadas por dados coletados em sites e nas mídias sociais.
Como é possível fazer isso em sequência, com grande velocidade e eficiência?
Como exemplo do modelo básico de implementação de uma guerra informacional de grande escala, podemos utilizar uma apresentação da Cambridge Analytica, que aparece no filme “Privacidade Hackeada” (2019). Nele, mostra-se uma parte da técnica utilizada. Como se tratava de uma apresentação comercial, muitos detalhes importantes são suprimidos. Porém a estrutura básica é essa mesmo. Nele, vemos a implementação de um ciclo de disparos destinados a modificar o comportamento e/ ou reforçar uma tendência comportamental/ psicológica.
Para facilitar a compreensão, refiz o gráfico, traduzindo os termos:
Os principais elementos estão aqui:
-Dados brutos
– Pesquisa
– Dados analíticos
– Modelagem
– Segmentação de público
– Criação de conteúdo adaptado
– Disparos nos vários canais de mídia da internet
Vou fazer um breve resumo de cada termo e dos processos em que estão envolvidos:
Dados Brutos
Quando navegamos pela internet, fazemos compra com cartões, utilizamos nossos smartphones, postamos em redes sociais, pedimos ou simulamos um empréstimo. Aquele site que lhe pede cadastro, aquelas pesquisas de opinião “divertidas”, aquele teste “curioso” (“qual herói você é nos filmes da Marvel?” (homem); “qual princesa da Disney você é?” (mulher))… tudo isso deixa uma trilha de dados que, dentre outras coisas, podem revelar:
Dados pessoais, demográficos, econômicos, sociológicos, psicométricos entre outros. Tornando a análise ainda mais completa, os termos de uso desses aplicativos muitas vezes determinam o acesso aos seus contatos e às suas curtidas e comentários naquela plataforma social. Assim, os “pescadores de dados” ainda podem lançar sua rede sobre os seus contatos. Ao final, chega-se a quase toda a sociedade ativa nas redes. A Cambridge Analytica alegava ter inventário com o perfil psicológico – coletado dessa maneira – de cada eleitor dos EUA.
Raça, sexo, idade, religião, inclinação ideológica, orientação sexual, região em que mora (às vezes endereço completo e no. de telefone), trajeto diário, se é casado, solteiro, namora, etc., renda mensal, renda familiar, condição médica, histórico de compras, histórico de crédito, gosto musical, gosto culinário, hobbies, seus interesses, quais sites você visita, quais idiomas fala, sua profissão, que tipo de bicho você prefere, o que faz em seu tempo livre, se pratica esportes… – só para citar alguns exemplos.
Temos que entender que existe um gigantesco mercado nem sempre legal de dados pessoais. Muitas vezes seus dados são vendidos para dezenas de empresas de propaganda, empresas de avaliação de crédito, financeiras e seguradoras. Vezes há em que nós mesmos recebemos “propina” para vender nossos dados relativos a consumo. O “cartão de fidelidade” de supermercado – muito comum na Europa –, que retorna em cupons (recebidos pelo correio em casa) o equivalente a 1% dos gastos dos clientes nada mais é do que uma “propina” para que o cliente permita que a rede de supermercados registre cada um dos itens comprados por cada cliente. E, depois, revenda tais dados, com o pefil de consumo de cada indivíduo, às grandes corporações. Isso vale ouro. Muito mais que o 1% “devolvido” aos clientes.
Até mesmo o nosso “sabido” editor, Romulus Maya, aceita tal “propina”, em troca de seus reveladores dados de consumo:
Além disso, muitos dos nossos dados pessoais estão expostos na rede para quem quiser capturá-los: seus posts no Facebook, no Twitter e no Instagram, fotos públicas na galeria do Google, comentários em sites, etc.
Também aqueles testes engraçados e pesquisas divertidas que vemos no Twitter e em várias páginas da internet podem ser utilizados como ferramentas de obtenção de dados psicométricos.
Pesquisa
Nessa fase, faz-se a avaliação dos dados brutos disponíveis. Normalmente, aplicam-se processos de Big Data, que são formas de extrair padrões, prever tendências de opinião e comportamentos futuros. Essas tendências e comportamentos normalmente são testados e refinados através de pesquisas qualitativas que realimentam esses modelos de extração, permitindo um nível de precisão muito alto nestas previsões.
Modelagem
A modelagem é a parte do processo em que se extraem postagens nas variadas redes sociais para fazer o que é chamado análise de rede, de onde se consegue inferir (i) a distribuição desses vários setores de opinião previamente identificados nas redes; (ii) como essas redes se interligam e se relacionam entre si; (iii) como elas reagem a cada discurso (análise de sentimento); e (iv) os caminhos dentro dessas redes que podem gerar uma distribuição mais rápida e eficiente de iscas mirando esses alvos.
Segmentação
A segmentação de audiência junta os dados demográficos advindos do Big Data, as previsões de tendências comportamentais e de opinião, a forma como as redes interagem entre si e quais as mensagens que melhor se adaptam a qual demografia, em qual rede e região.
Criação de conteúdo adaptado
O passo seguinte é a criação de mensagens personalizadas de acordo com as tendências psicológicas, antropológicas e socioeconômicas de cada setor, utilizando-se gatilhos psicológicos e tendências antropológicas de cada setor de forma que as mensagens atinjam cada alvo com a mensagem exata, sob medida, de forma a gerar comportamentos desejados de acordo com as tendências pré-determinadas com a coleta e processamento dos dados (etapas anteriores).
Disparos
Então são usados os canais de difusão específicos nas redes, como forma de potencializar a penetração dessas mensagens em cada setor social.
Nos modelos atuais de difusão são utilizados robôs e redes de distribuição como forma de maximizar a penetração das mesmas, criar uma tendência de silenciamento de divergências em cada um dos setores, polarizando-os de forma que prevaleçam apenas os discursos pré-determinados.
Esses ciclos geram mais dados, que serão utilizados nas ações seguintes. Uma espiral em que a “Matrix” vai ficando cada vez mais refinada e eficaz, com o aprendizado de cada rodada.
(na segunda parte desta série vou explicar como as redes de extrema-direita foram criadas e fortalecidas)
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Como prevenir que uma ação ou uma variável inesperada da conjuntura impeça esse processo de ter sucesso?
Como se controla o discurso utilizando os sistemas computacionais e elementos de guerra informacional: modulação de hegemonias e controle de fatores divergentes.
Uma parte importante da forma como funcionam esses sistemas é como utilizar robôs, análise de sentimento e os chamados “transientes rápidos” para modular e controlar a forma com que a hegemonia discursiva se estabelece.
Uma parte importante do uso de sistemas computacionais e armas de guerra informacional para modular a hegemonia de uma determinada narrativa ou grupo parte do pressuposto de que a comunicação sempre sofre modulações, distorções, interferências e ruídos.
Partindo-se desse pressuposto, monitora constantemente as reações no Facebook, Twitter e Instagram com uma técnica chamada “análise de sentimento”, que verifica como está sendo a reação a determinada operação. Também monitoram como as redes estão se comportando em relação à penetração de determinada pauta, quais termos são mais utilizados, quais regiões geográficas e extratos socioeconômicos estão mais ativos, entre outros indicadores. Permite-se, assim, não só a calibragem naquela rodada mas o aprendizado para as seguintes.
Por exemplo, com essas informações disponíveis, podem determinar se é necessária uma abordagem diferente, um ataque com robôs para silenciar ou amplificar um item ou grupo, ou a indução de um “transiente rápido” (declaração ou notícia chocante que desvia a narrativa ou muda o foco), dentre outras técnicas. Um exemplo concreto, bem conhecido pela Comunidade Duplo Expresso, é a denúncia em massa por robôs dos conteúdos disruptivos publicados ao longo do tempo pelo site (como as denúncias desmascarando a Lava Jato em 2017/ 2018), levando à invisibilização dos mesmos nas redes sociais. Chegamos mesmo ao caricato, quando por meses os algoritmos do Google direcionavam os programas do Duplo Expresso ao público de 0 a 5 anos!
Temos que entender que essas técnicas são utilizadas em tempo quase real. Também temos que entender que a mídia tradicional joga um papel preponderante, como geradora de credibilidade (falarei mais sobre isso na segunda parte da série).
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Como a esquerda foi paralisada: a quebra do Loop OODA e a desorientação
Proponho um exercício ao leitor: esqueça por um momento a análise fria sobre a conjuntura e deixe-se levar apenas pelo emocional ao acompanhar a imprensa. Vai se sentir chocado, deprimido, indignado e, principalmente, desorientado.
A palavra chave aqui é desorientação e sobrecarga cognitiva. A sobrecarga se deve às característica da moderna sociedade da informação e seus múltiplos estímulos comunicacionais. A cesura se dá não propriamente pela ocultação definitiva de conteúdos relevantes mas por um bombardeio de saturação à atenção do indivíduo com conteúdos irrelevantes/ manipuladores. Quanto à desorientação, um elemento chave da guerra informativa é a destruição do chamado “ODA Loop” do inimigo.
Eexplico: OODA é um acrônimo de origem militar que significa “Observe, Orient, Decide and Action” (observar, orientar, decidir e agir). Ou seja, em qualquer tipo de operação é necessário se “Orientar”, conhecer a situação e o terreno. “Decidir”, i.e., ver qual é a ação correta a ser tomada naquela situação. E, finalmente, “Agir” para implementar a ação previamente decidida.
Porque Loop: esse ciclo se repete até que uma condição de saída seja atingida, ou seja, uma condicional em que o estado inicial seja superado.
Por exemplo, em um confronto, o primeiro passo é saber onde estão, quantos são e qual o potencial do inimigo. Baseado nisso, saber se avançará, recuará ou manterá a posição e como o fará. Na sequência, implementar a ação decidida e verificar o seu resultado.
No caso do exemplo acima, a condicional de saída é a cessação do conflito.
Destruir o Loop significa que você quebra a fase de orientação e decisão, confundindo o inimigo e levando-o a tomar decisões e implementar ações equivocadas.
A parte de choque, depressão e indignação são alguns dos elementos psicológicos utilizados para atingir este objetivo.
(na segunda parte discutirei melhor este elementos)
O conceito que devemos entender aqui é como as políticas aparentemente malucas, idas e vindas, os discursos aparentemente sem sentido (“Transiente rápido”) e com o único propósito de chocar, as falsas contradições, são todos eles na verdade parte de um conjunto de técnicas destinadas a desorientar e confundir, consequentemente causando uma paralisia.
Soa familiar no Brasil de Bolsonaro? Em que, em “resposta”, não há oposição?
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Como dividir e polarizar uma sociedade como forma de exercer o controle: o modelo cismogênico e a “esquerda identitária” – feitos um para o outro
Uma das técnicas que mais se destacam pelo seu uso intensivo no Brasil chama-se cismogênese (ou “schismogenesis”, em inglês).
O nome deriva do grego skhisma (divisão em facções opostas) e genesis (criação). Ou seja, o processo de criação de divisões em uma sociedade.
O conceito foi desenvolvido nos anos 30 pelo antropólogo Gregory Bateson que, em 1936, apresenta-o ao mundo no livro “Ethnography Naven: A Survey of the Problems suggested by a Composite Picture of the Culture of a New Guinea Tribe drawn from Three Points of View”.
O processo de criação de discórdias nas sociedades para expandir as divisões existentes e gerar comportamentos autodestrutivos foi chamado de cismogênese. O Escritório de Serviços Estratégicos (OSS), um precursor institucional da Agência Central de Inteligência (CIA), usou essa teoria no Pacífico Sul durante a Segunda Guerra Mundial para semear a desunião entre os combatentes inimigos e criar divisões nas comunidades que apoiavam o domínio japonês.
Bateson identificou e descreveu os dois tipos de cismogênese : complementar e simétrica.
Na cismogênese complementar as relações apresentam um equilíbrio desigual. Nela, identificamos um comportamento assertivo versus um comportamento submisso entre duas pessoas ou dois grupos. Podemos citar como exemplo: dominância-submissão (pai-filho) ou exibidor-espectador (performer-audiência).
Na cismogênese simétrica, dois tipos “opostos” de comportamento reforçam-se mutuamente em “direções opostas”. O “mesmo” comportamento levará a mais do “mesmo” pelo outro indivíduo ou grupo – um sistema repetitivo de competição crescente, em um processo de escalação. Relações simétricas são aquelas em que duas partes são iguais e competem entre si: como nos esportes e na guerra.
Soa familiar no Brasil de um Bolsonaro “mitando” e uma esquerda “lacrando” nas redes sociais?
Pode-se argumentar fácil e corretamente que a cismogênese pode ocorrer em todos os tipos de campos sociais, culturais e políticos. Os níveis de escalação vão depender dos controles sociais e do equilíbrio de uma sociedade. Em situações extremas, ambas as posições escalam a níveis absurdos como forma de salientar suas diferenças chegando a perder contato com a realidade.
Lembram do “golden shower” e do “dedo no ânus” no Carnaval? Pois é…
Na sociedade atual, podemos verificar casos em que escolhas de estilos de vida diferenciados, como até mesmo carnívoros vs. veganos, escalam de uma forma absurda chegando a intervir nos valores e metas de vida dos indivíduos. Quem acompanha as discussões de diversos grupos na internet verifica que é cada vez mais comum a polarização entre esses grupos em um processo de escalação que frequentemente descamba de suas questões iniciais para o terreno moral de valores.
Frequentemente verificamos como esses processos de escalação afetam a dita “esquerda identitária” de forma especialmente importante. Isso porque a mesma se transforma em um elemento cismático dentro da própria esquerda, uma vez que esses ditos identitaristas frequentemente focam as suas questões específicas como se elas fossem o ponto fundamental da realidade. E, a partir desse foco, fazem a sua leitura de realidade. E qualquer confrontação a esse foco leva a um processo de escalação.
O gráfico abaixo explica os processos envolvidos:
(Valores e Metas no sentido psicológico/ antropológico para um grupo humano)
Ciclos de escalação cismogênese simétrica
1 – Fatores conjunturais e da realidade sinalizam para um dos grupos ou para ambos uma determinada “ameaça” (os vieses cognitivos de cada grupo são determinantes aqui)
2 – A percepção de conflito sinaliza que o grupo deve agir/ reagir.
3 – A ação/ reação do grupo oposto reafirma o perigo/ ameaça e indica que se deve adotar ações mais extremas.
4 – Ao mesmo tempo ação/ reação do grupo oposto são vistas como uma ameaça aos valores e metas do grupo o que o orienta a agir.
O processo de implantação de um processo cismático em uma sociedade depende da determinação dos fatores polarizáveis na mesma, no estudo dos grupos sociais já delimitados, da forma como grupos específicos podem ser radicalizados a partir de suas questões focais específicas para serem utilizados para outros objetivos.
A esquerda identitarista serve como um perfeito exemplo da aplicação da cismogênese simétrica. Talvez um dos maiores exemplos de como os identitaristas acabam servindo de massa de manobra é como a escalação de seus “protestos” contra o Golpe e contra Bolsonaro foram utilizados contra a esquerda em geral.
Frente à escalação de pautas morais e de costumes pela direita, como o ataque à exposição “Queer Museum”, passamos a ver inúmeras manifestações de nudez e até escatológicas (escalação em sentido contrário).
Serviram para quê? Para colar na esquerda o rótulo de “imunda”, “degenerada”…
Por sua vez, o conjunto da esquerda se via compelida a defender e às vezes até a apoiar esses grupos, pois os percebia como parte da identidade geral de esquerda, o que só favoreceu o processo de rotulação.
Pior que é mesmo:https://t.co/KnV0GFohFV
Ele nega, mas o projeto dele fala em “cosanguinidade”, sim…— Romulus Maya (@romulusmaya) August 20, 2019
Presta atenção na redação: cossanguinidade entra no rol do que seriam – antes – “obstaculos”.
— Romulus Maya (@romulusmaya) August 20, 2019
Irmãos tb q é mais “comum”. Teve caso famoso na Alemanha anos atrás, de irmãos q casaram sem saber que eram irmãos. Tiveram filhos e td. Alemanha anulou. Foram à Corte Européia de Direitos Humanos, q manteve a anulação. Redação desse projeto de lei é um lixo e merece ser execrado
— Romulus Maya (@romulusmaya) August 21, 2019
Após tantos “protestos” a direita começou a se utilizar da criação de fakes para desmoralizar ainda a esquerda. Abaixo, só um dos últimos exemplos:
Emblemático foi como a campanha do “Ele, não!”, que muitos setores da “esquerda identitarista” achavam que seria o golpe de misericórdia contra Bolsonaro, voltou-se contra ela mesma, como coroação desse processo. As intenções de voto em Bolsonaro dispararam em reação. Isso porque os bolsonaristas logo trataram de espalhar pelas redes várias imagens, algumas do ato e outras retiradas de outras “lacradas”, e conseguiram colar na população em geral (principalmente nos evangélicos e católicos carismáticos) que se tratava de “degenerados” que “queriamm corromper a fibra moral do país”.
Não estou aqui para julgar moralmente ninguém. Minha análise é técnica e política, voltada principalmente à guerra informacional. Mas dá para perceber que o resultado não foi o esperado. Ou melhor: exatamente o esperado por quem começou a levantar pautas morais como isca.
Frequentemente são lançadas as chamadas “baits” (iscas) visando a provocar militantes identitárias a reagir (inclusive contra setores mais tradicionais da esquerda), como forma de provocar divisões internas.
Isto ocorre devido a serem grupos mais isolados e que tendem a focar em suas questões específicas, ficando a mercê desse tipo de manipulação. Fora, é claro, a hipótese de infiltração de agitadores pelo outro lado.
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Esta primeira parte foi apenas uma análise básica. Na segunda, vou descrever as técnicas que foram utilizadas para a criação das redes de direita, quais modelos de distribuição elas utilizam, por que proliferaram tanto e as técnicas psicológicas utilizadas por esses setores. Até lá!
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Debate do tema do D.E. de hoje:
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Nota do editor: sobre o tema, muito cado a nós desde antes de publicarmos nossas ideias em artigos, não deixar de conferir também:
– Como uma luva: Haddad, “Manu” e o lugar do identitarismo na estratégia do Golpe
– Alô, minorias “prafrentex”: é pra derrotar o golpe? Ou “lacrar” nas redes sociais?! Pobre, Lula!
– “Ejaculação-estupro”: “case” de como identitarismos radicais fazem esquerda de refém
– “Homem pelado” Vol.2: MBL volta com diversionismo depois das “férias”?
– Barroso ABORTA Malafaia: com impopularidade do entreguismo, eles “querem” (?) pautar “aborto”!
– “Cura gay” (?!) e o Golpe: por que NÃO mudarei meu avatar no Facebook! – um alerta para a esquerda
– Vol. 2: “cura gay” (?!), o Golpe e o fosso “identitário” na esquerda
– Crítica “machista” a Dilma e EXCESSOS do politicamente correto identitário
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