Existirá o “Sagrado” para o Neoliberalismo?

Aqui a participação de João de Athayde no Duplo Expresso de 07/jun/2019:

 

Por João de Athayde*, para Duplo Expresso

“Sagrado” não é só o que é venerado por uma religião ou relacionado a uma liturgia, mas também o que é digno de respeito absoluto, o que é, ou seria, em princípio, inviolável; o que não deve ser profanado.

Nessa perspectiva, em qualquer sistema de crenças ou sistemas de lógicas, incluindo aí sistemas de tradição, sistemas morais, sistemas de costumes, ideologias, códigos de deontologia implícitos ou escritos, sistemas jurídicos ou administrativos e até mesmo em certas teorias acadêmicas se pode falar de sagrado, no sentido do que é ou seria digno de respeito absoluto,
o que não deve ser profanado.

Imagem: Two Dollar Battle Tank por © Orudorumagi11

O neoliberalismo, visto na sua ideologia
— uma ideologia de guerra como já comentamos outras vezes —
pode ser abordado em sua prática tão dinâmica e adaptável:
“Ó neoliberalismo, sob quantas máscaras pérfidas perfazes teu filme de terror travestido de carnaval?”
A questão então toma corpo e crânio: para o neoliberalismo, existirá o “sagrado”?
Ó questão hermética e hamlética!
Os neoliberais são os neobárbaros Hunos com “h”, mas também unos sem “h”
porque unidos pela goma pegajosa de seus interesses.
São os “Hunos unos”.

São estes cruzados djihadistas da xaria do (livre) mercado e do terrorismo legislativo; estes vândalos da terra nacional e do estado arrasado, dos direitos sociais esmigalhados por coturnos, por de putaputa deputados, por fake tanks midiáticos e as vezes até por “marionetongs” (na sequência dos manifestoches, eis as grandes ONGs manipuladas pelos grandes interesses imperiais e da banca: as “marionetongs”), enfim, toda essa constelação obscurecedora
– uma anticonstelação então, já que faz desbrilhar nosso céu anil –
conhecerão eles o sentido do sagrado? Hmmm… Não sei ao certo.

Imagem: Um soldado estadunidense na França examina um modelo de madeira construído pelos alemães perto de Metz. É uma moldura de madeira com um tubo de drenagem formando um disparador, montada em um carrinho. De longe, parece realista. Fonte: YANK 2, Feb 1945

E sobretudo, respeitarão eles algo como sendo sagrado?
Ou profanarão eles em sua sede de água amazônica, oceânica ou présalina até a mais recôndita estrutura psicológico-afetiva e até o último ligame de compaixão e solidariedade dos grupamentos humanos?
Existirá algo sagrado para o neoliberalismo? Ou para o liberalismo, como alguns preferem identificá-lo? Ou mesmo, simplesmente, para o capitalismo?

Adaptando as ideias do pensador Francês Jean-Claude Michéa, poderíamos dizer que o bacilo do liberalismo já se achava contido no projeto do capitalismo moderno, na própria ideia que este veicula, a de viver numa “modernidade”.
Eu pensei que não, que o neoliberalismo não reconhece o sagrado,
porque nenhuma instituição ou intimidade fica impune
ao seu rolo compressor e tentacular.

“Mas sim”, respondeu-me um amigo italiano de café, entre questionamentos e caminhadas por bosques, javalis e estradas:
“O lucro é sagrado e intocável” – observou ele –, e eu abri o olho.
E meu amigo tem razão; eu entendi e desenrolei.
Já que ele levantou a bola, acrescento que sagrado também é o fosso que separa as oligarquias do resto da população;
e mesmo a supra-e-restrita-oligarquia central
das periféricas oligarquias
de uma pós-nação.

 


*João de Athayde é antropólogo carioca residente na França (Aix en Provence). É doutor na Universidade de Aix-Marselha, França e vinculado ao IMAF (Institut des Mondes Africains / Instituto dos Mundos Africanos) com pesquisa sobre as heranças culturais ligadas ao tráfico de escravos no contexto do Atlântico Negro, em especial sobre identidade, religião e festa popular entre os Agudàs, descendentes dos escravos retornados do Brasil ao Benim e Togo, numa perspectiva comparativa entre a África e o Nordeste Brasileiro. Ele participa e comenta no Duplo Expresso às sextas-feiras.

 

DE – A imagem base utilizada na colagem que ilustra o banner trata-se de “A Disputa do Sacramento Sagrado”, ou simplesmente “Disputa”. Pintura do artista renascentista italiano Raphael (circa 1509-1510) representando a primeira parte da encomenda de afrescos dos quartos que hoje são conhecidos como o Stanze di Raffaello, no Palácio Apostólico do Vaticano. Para ver o original em maior dimensão, clique aqui!

 

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