Investimento público em pesquisa e soberania nacional

Por Bruno Prata para o Duplo Expresso

As universidades possuem três funções primordiais e igualmente importantes: o ensino, que consiste na formação de recursos humanos; a extensão, que consiste na interação da universidade com a sociedade em geral; e a pesquisa, que consiste na geração de conhecimento novo. Na atual conjuntura, as universidades públicas brasileiras, em especial, as instituições federais de ensino técnico profissionalizante e superior, tem sofrido com os cortes em seus orçamentos que restringem suas atividades. Nesse contexto, por demandar recursos adicionais, a pesquisa científica tem sentido, de forma contundente, o voraz ataque ao Estado brasileiro ora em curso. Embora o foco deste texto seja no investimento público em pesquisa no âmbito das universidades públicas, outras instituições desempenham papel de destaque na pesquisa científica brasileira, como, por exemplo, a EMBRAPA, o IPEA e a Fundação Oswaldo Cruz.

Diante de um cenário de escassez, deve-se priorizar a alocação de investimentos. Ocasionalmente algumas pessoas manifestam, implicitamente ou explicitamente, a idéia de que as universidades recebem muitos recursos e de que estes poderiam (ou deveriam) ser aplicados em outras áreas. Por não ser algo tão tangível para o brasileiro médio, a pesquisa padece de um estigma de ser algo supérfluo. A meu ver, esse paradigma deve ser desconstruído para que o povo compreenda a importância estratégica da pesquisa científica para um país como o Brasil.

Pesquisa não é luxo. Nenhum pais hoje desenvolvido deixou de investir maciçamente em educação básica e superior nos primórdios de seu desenvolvimento industrial. Nenhum pais que atingiu um patamar elevado no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), indicador que reflete a qualidade de vida de uma população, deixou de investir incisivamente em pesquisa científica. A geração de novos conhecimentos é um elemento crucial para a soberania nacional.

Figura 1 – Despesa anual em pesquisa e desenvolvimento em dólares per capita, em 2015

Quem não desenvolve sua própria ciência e seus próprios adventos tecnológicos ficará sempre dependente das nações que detém esse conhecimento. Esse é, não por acaso, o contexto do Brasil, um país que, dadas suas condições geográficas, econômicas e culturais, tem um potencial latente para ser uma nação autônoma do ponto de vista cientifico e tecnológico.

Citarei um exemplo de como nosso país é nitidamente dependente do ponto de vista tecnológico, de forma a limitar nossa autonomia em termos econômicos, políticos e militares. Nos dias atuais, o sistema de posicionamento global GPS (do acrônimo em inglês Global Positioning System) é vital para atividades civis e militares. Tal sistema é de propriedade dos Estados Unidos e seu acesso pode ser restringido (ou mesmo deturpado) se for do interesse de seus proprietários. O GPS foi descoberto por acaso por acadêmicos estadunidenses na década de 60 do século passado. O Ministério da Defesa, ao ter conhecimento das potencialidades de aplicação daquela tecnologia, investiu bilhões de dólares nas últimas décadas. Diversos sistemas similares tem sido desenvolvidos por outros países, objetivando a independência ao sistema estadunidense: GLONASS (Rússia), BeiDou (China), Galileo (União Européia), IRNSS (Índia) e QZSS (Japão). O Brasil, mesmo com suas dimensões continentais e sua localização estratégica, é completamente refém dos sistemas desenvolvidos por esses países. A Base de Alcântara, hoje um enclave do Estados Unidos no território brasileiro, poderia ser crucial para a alavancagem de um sistema de posicionamento global genuinamente nacional. Além desse exemplo, diversas outras áreas são estratégicas para a soberania do Brasil, como, por exemplo, telecomunicações, informática, eletrônica de potência, recursos hídricos, saneamento, ciências agrárias, siderurgia, energias renováveis, planejamento energético, petróleo e gás, química e construção civil pesada.

Ademais, a autonomia científica é de suma relevância para a redução da desigualdade em um país.

Em seu livro “O capital do século XXI”, o célebre economista Thomas Piketty argumenta em suas conclusões que a produção e a disseminação de conhecimento são fatores preponderantes para a desigualdade dentro de um país e entre os países. É a incapacidade do Brasil de produzir e difundir conhecimento que o torna um dos países mais desiguais do mundo. Investimentos em pesquisa científica são imprescindíveis para a transformação dessa triste realidade. Tais investimentos são condições necessárias, mas não suficientes, para a mitigação da desigualdade e necessitam de tempo para a obtenção de resultados. É oportuno citar o exemplo da China que, na década de 90, enviou centenas de milhares de chineses para cursar mestrado e doutorado em outros países, principalmente na América do Norte e na Europa, e, ao longo das últimas décadas, tem tido avanços não somente no crescimento econômico, mas na redução da desigualdade. Um projeto de consecução da autonomia científica brasileira é um empreendimento de longo prazo, mas que certamente trará resultados efetivos para o país.

Considerando o Orçamento Geral da União do Brasil, no ano de 2016 o percentual correspondente à ciência e tecnologia foi de 0,27%. Com efeito, os investimentos em pesquisa e desenvolvimento no Brasil tem sido insuficientes para suplantar nossas carências tecnológicas. Considerando os investimentos per capita (por habitante), o Brasil encontra-se muito aquém dos patamares de investimentos alcançados pelos países desenvolvidos. A Suíça, por exemplo, investe em pesquisa científica por habitante um valor da ordem de dez vezes o investimento per capita brasileiro. A discrepância é abismal.

Um argumento recorrente nos corredores das universidades (notadamente nos departamentos de engenharia, que é o universo que posso ilustrar com maior propriedade) é o de que a salvação da pesquisa nas universidades federais seria a iniciativa privada. Os investimentos, seja em educação superior, seja em pesquisa científica, deveriam estar a cargo da iniciativa privada. Obviamente, o caso de sucesso de tal estratégia sempre é o modelo das universidades americanas. Embora a iniciativa privada possa complementar o investimento em pesquisa científica em um país como o Brasil (não defendo essa prática, mas obviamente é algo factível), não se pode desvincular do Estado o protagonismo em fomentar a pesquisa no Brasil.

Nas últimas décadas, os Estados Unidos tem destinado maciços investimentos públicos em pesquisa científica, provavelmente bem mais do que qualquer outro país no mundo. Citar os Estados Unidos como um país que prescinde do Estado para seu desenvolvimento científico é um argumento falacioso.

No que se refere ao investimento de empresas privadas, acho ingenuidade acreditar que empresas multinacionais iriam investir em pesquisa científica no Brasil de forma a desenvolver nosso país. O investimento privado em pesquisa no Brasil se dá sob a forma de um projeto ou de uma consultoria, com contratos firmados e o compromisso da entrega de produtos, visando um retorno pragmático de todos os investimentos e a obtenção de patentes, as quais ficarão de posse das empresas investidoras. Esse tipo de lógica não desenvolve ciência autônoma, tampouco massifica a formação de recursos humanos. É desnecessário também frisar que dificilmente empresas investirão em projetos em áreas que não apresentem uma perspectiva imediata de retorno financeiro, como, por exemplo, em ciências puras ou ciências sociais. Priorizar os investimentos privados em pesquisa científica no Brasil, em detrimento de investimentos públicos, além de não conduzir aos resultados desejáveis para a soberania de nosso país, iria desequilibrar ainda mais as estruturas de nossas universidades, beneficiando as áreas de ciências exatas, ciências da saúde e tecnologias, bem como desestimulando as áreas de ciências sociais.

Tão importante quanto pesquisas que conduzam ao desenvolvimento tecnológico, são pesquisas nas áreas de ciências socais, como, por exemplo, economia, ciências políticas, sociologia, filosofia, comunicação social, lingüística, pedagogia, história, dentre outras. Desenvolver conhecimento autônomo nesses campos de saber é de suma relevância para a consecução de independência científica, independência econômica, independência política e soberania. O pragmatismo absoluto é uma visão míope da realidade, temos de pensar em médio e em longo prazo.

Diante do exposto, é oportuno ressaltar que investimentos públicos são vitais para um país como o Brasil, objetivando a mitigação da grave desigualdade que nos acomete, bem como para a consecução de patamares de desenvolvimento científico e tecnológico já atingidos por outros países. É preciso buscar uma linguagem acessível ao povo brasileiro (isto é, o brasileiro médio) para explicitar que a pesquisa não é um luxo desnecessário, mas um instrumento vital para a soberania nacional. Talvez um exemplo bem tangível para tanto seriam os hospitais universitários, recordistas de transplantes de órgãos no Brasil. Em textos futuros, trarei vários exemplos de sucesso da atuação da pesquisa científica no Brasil, bem como de oportunidades para intervir de uma forma ainda mais efetiva.

Fontes de figuras:

Banner – Canteiro de construção do programa PROSUB. fonte: https://www.marinha.mil.br/prosub/sites/www.marinha.mil.br.prosub/files/livro_submarino.pdf

Figura 1– Mapa baseado em dados da UNESCO e do Banco Mundial. Disponível no sítio: https://www.nexojornal.com.br/grafico/2018/09/14/Qual-%C3%A9-o-investimento-em-pesquisa-ao-redor-do-mundo.

Figura 2 – Revista de audiência pública do Senado Federal. Ano 3, n 12. Disponível no sitio: https://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/inovacao/ciencia-tecnologia-e-inovacao-no-brasil/investimento-em-pesquisa-e-desenvolvimento-no-brasil-e-em-outros-paises-o-setor-privado.aspx.

Piketty, Thomas. O capital no século XXI. Editora Intrínseca, 2014.


Bruno Prata é graduado em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Ceará, Mestrado em Logística e Pesquisa Operacional pela mesma instituição e Doutorado em Engenharia Industrial e Gestão pela Universidade do Porto. É professor do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal do Ceará. 

 

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