A grande disputa geopolítica do século XXI: mobilidade, meio ambiente e inteligência artificial – Parte 3

Por Gustavo Galvão*, para o Duplo Expresso

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Ameaças geopolíticas

Esse modelo de desenvolvimento baseado no automóvel a gasolina tornou o petróleo a principal commoditie transacionada internacionalmente e fonte de riqueza financeira principal para dezenas de países exportadores, incluindo a ex URSS, arqui-inimiga dos EUA.

Os EUA acabaram se envolvendo em uma luta secular sobre o controle das reservas petrolíferas mundiais, chegando ao ponto de considerar o controle sobre a forma de pagamento das exportações de petróleo como sendo “essencial” para a manutenção da sua hegemonia monetária.

De fato, quando um país com saldo comercial positivo, adota o dólar como moeda de reserva, ele passa a fortalecer a demanda e a força do dólar. Se ele exporta um bem de primeira necessidade, que é fundamental para definição da taxa de inflação, como o petróleo, ele torna os EUA mais independentes economicamente, porque aumenta muito a capacidade dos EUA emitir moeda e dívida sem gerar desvalorização cambial, inflação ou aumento dos juros.

Muitos países petrolíferos reagiram ao abraço de urso da política americana para o petróleo, e acabaram se tornando, se não inimigos, ao menos um problema para os EUA.

Hoje muitos desses países petrolíferos rebeldes estão se rebelando contra a dominação ou o intervencionismo americano. Essa luta é cara e prejudicial à imagem e liderança dos EUA.

Portanto, o maior beneficiário da civilização do petróleo, cada vez mais tem mais interesse na sua superação.

Aquecimento global e energia limpa

O contínuo aumento consumo de combustíveis fósseis em razão da adoção do modelo fordista-petroleiro americano pela maior parte do mundo em desenvolvimento está levando à perda de prestígio desse modelo e ao crescente investimento em tecnologias e infraestrutura alternativa a ele.

Essa alternativa já foi escolhida: é a mobilidade elétrica com trens e carros elétricos e a substituição do carvão e o óleo combustível por tecnologias de conservação de energia e fontes mais limpas de produção de eletricidade como gás natural, energia eólica e solar.

Está havendo uma grande corrida pelo modelo carro elétrico dominante, os trens de alta velocidade dominantes e as tecnologias para produção de energias limpas e economia energética. Não se pode dizer que os EUA estejam na frente da China nessas revoluções. O que implica em crescente investimento nessa corrida tecnológica.

Essa revolução tecnológica não definirá apenas quem terão as principais indústrias exportadoras, mas também quem terão as cidades mais baratas e que mais atraem técnicos e empresas inovadoras, além de quem serão os maiores exportadores de energia. Os maiores exportadores terão provavelmente as moedas e os bancos mais poderosos e a economia menos dependente. Serão assim os países mais poderosos.

A questão energética é fundamental porque hoje o petróleo é o “ouro negro” porque é uma das energias mais baratas para se produzir e a mais cara para se vender. É provavelmente o setor da economia, depois das finanças, que mais produz excedentes econômicos: lucros e impostos. O petróleo é muito caro porque tem a produção e distribuição altamente cartelizada e tem o monopólio de quase 95% energia usada para transporte no mundo, porque os automóveis, aviões e navios praticamente não tem outra forma de abastecimento em razão de seus motores serem incompatíveis frente a outras fontes de energia primária. Ou seja, a “energia limpa” de baixo carbono, como energia eólica e solar, tem custos muito inferiores (para o consumidor) do que o petróleo.

Smart Grid e internet das coisas

As energias solar, eólica e outras fontes renováveis serão cada vez mais dominantes, isso significa que teremos que lidar com a intermitência e a falta de controle sobre a produção de energia. Nesse sentido será fundamental primeiro que o consumo de energia seja mais flexível e adaptável à produção e que sejam encontradas formas de armazenar eletricidade.

Dessa forma, a cidade inteligente terá antes de tudo uma rede elétrica inteligente, smart grid, interligada a cada aparelho eletrônico por internet para ligar ou desliga-los dependendo da produção de eletricidade naquele momento, e, portanto, de seu preço.

O carro elétrico terá papel chave porque poderá consumir até 30% da eletricidade total e porque terá nele a forma mais barata de colocar baterias na rede elétrica.

Uma peculiaridade desse processo é que quanto mais barato e universais forem as redes de internet e eletricidade, mais eficiente e baratas serão a energia, o custo e a qualidade de vida no país. Como as redes elétricas e de telecomunicações privatizadas são muito mais caras e buscam minimizar os investimentos para gerar mais lucro, os países com redes privatizadas, como o Brasil, ficarão muito atrasados.

China invade e conquista o fordismo

A partir dos anos 2000, os chineses colocam como prioridade a indústria metal-mecânica, cuja cereja é a automobilística. E em razão dos baixos custos de mão de obra e matérias-primas e da incrível cadeia produtiva e estrutura logística que construíram passam a ter custos de produção que são uma fração daqueles obtidos em outros países.

Em razão do enorme consumo e produção de veículos na China, que este ano deve estar em torno de 30 milhões de unidades de veículos de 4 rodas, 30% do planeta, quase o dobro dos EUA, eles devem se tornar também o maior exportador de veículos.

Será muito difícil ao Ocidente competir com a China diretamente em custos, mesmo porque o consumo de automóveis está estagnado deste lado do mundo, tornando não compensador investir em novas máquinas para produzir carros a gasolina com vendas decadentes. Dessa forma, a melhor saída no Ocidente será investir em novas tecnologias e um novo paradigma tecnológico para a mobilidade.

IA + mobilidade + eletricidade = superioridade econômica e geopolítica

O novo paradigma tecnológico para a indústria automobilística será do ponto de vista energético os carros elétricos e do ponto de vista operacional os automóveis como serviço de mobilidade urbana inteligentes integrados à rede de transporte público. Em um primeiro momento, essa integração se dá através de aplicativos de motoristas como o Uber, mas também com aluguel temporário de veículos e a médio prazo como veículos autômatos guiados por inteligência artificial.

Toda essa estrutura barateará o custo de transporte, reduzirá significativamente o tempo gasto na transumância diária e melhorará a qualidade e a utilidade do tempo gasto nela. Isso fará com que as pessoas se disponham a morar muito mais longe onde os terrenos e moradias são muito mais baratos.

Portanto, acontecerá um fenômeno similar e ampliado da difusão do modelo das Autobahns pelo mundo nos anos 50: as grandes cidades modernas que adorem mais profundamente o modelo de cidades inteligentes ficarão mais baratas, maiores, mais espalhadas e com melhor qualidade de vida. Assim atrairão mais mão de obra qualificada, empresas mais modernas na indústria e serviços, a custos mais baixos de produção e, assim, aumentando ainda mais a distância entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos.

Para complicar, a inteligência artificial espalhará pelas mais diversas funções, e milhões de empregos, não só motoristas, ficarão obsoletos. E apenas os países com indústrias exportadoras poderão pagar por essas novas tecnologias que aumentam a produtividade humana. Os outros ficarão cada vez mais pobres com cidades cada vez mais disfuncionais.

Umas das funções onde a inteligência artificial se espalhará mais rapidamente será na segurança pública através do monitoramento ostensivo das cidades, o que poderá aproximar o mundo ainda mais dos pesados totalitários dos autores de ficção científica. Todavia, se a democracia, os direitos civis, a diversidade de opinião e os controles sociais sobre o Estado e mega empresas for aperfeiçoado, essa crescente integração orgânica e inteligente do tecido de infraestrutura, serviços públicos e de controle tornará os países que mais aprofundarem nesse novo paradigma mais ricos, menos dependentes de matérias primas produzidas nos países pobres e mais atraentes para se viver, inclusive mais próximo da natureza. Os países pobres, sem recursos para adquirir os imensos montantes de equipamentos necessários às cidades inteligentes, terão um padrão de vida cada vez mais distantes dos países ricos.

Essa trajetória será especialmente assustadora para os atuais países exportadores de petróleo, que poderão sofrer fortes colapsos de seu padrão de vida a partir do ano de 2030.

Os EUA também devem perder a hegemonia econômica nesse processo, porque serão mais reticentes, que a China, em sair do paradigma do petróleo, para o carro elétrico e do carro como bem de consumo para a mobilidade inteligente como serviço público da cidade orgânica e rigidamente planejada.

Além disso, os EUA já tem um terciário já bastante grande e as cidades já bem espalhadas em áreas suburbanas, diminuindo o ganho esperado nesse processo. Na China, esse processo de crescimento do terciário ainda está no início e deve ser acelerado com os veículos autômatos e a integração dos transportes públicos. Ou seja, a China ainda tem um longo período de crescimento acelerado pela frente levando em conta apenas a expansão do terciário em decorrência do barateamento dos custos de mobilidade nas cidades e áreas suburbanas. É possível que o PIB chinês seja o dobro do americano no prazo de 15 anos.

Essa revolução tecnológica, mais a economia de baixo carbono, a revolução vegana e da alimentação saudável jogará por terra as principais apostas econômicas de desenvolvimento que o Brasil apostou nos últimos 20 anos: etanol e cana, carne e soja, mecânica dos motores a diesel, gasolina e flex e a exportação de petróleo. Falaremos sobre esse desastre no próximo artigo.

*Doutor em economia pela UFRJ, economista do BNDES licenciado, assessor parlamentar e comentarista do Duplo Expresso.

 

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