A Atualidade do Pensamento de Ibn Khaldun

A participação do professor Lejeune Mirhan no Duplo Expresso de 28 de março de 2019 está aqui:

 

Por Lejeune Mirhan, para o Duplo Expresso.

De um modo geral, as contribuições culturais, filosóficas, políticas e científicas que os árabes e muçulmanos deram ao mundo no decorrer dos últimos quase 1.500 anos são praticamente ignorada pelo mundo ocidental hoje. Quando muito, a impressão que se tenta passar é a de que os árabes teriam sido apenas “transmissores” de conhecimento, e nunca “produtores” desses mesmos conhecimentos. Ou ainda, meros tradutores de textos de outros autores importantes. Não há falsidade maior que essa.

São incontáveis os grandes cientistas, filósofos e sociólogos árabes que deram enormes contribuições em suas respectivas épocas. Pretendo com este trabalho, que é parte de nossas pesquisas desde 1993, esclarecer um pouco sobre a obra desse que foi um dos maiores pensadores árabes de todos os tempos – Ibn Khaldun al Raman al Arabi. Quero concentrar esforços para tentar recuperar as contribuições desse cientista tunisiano que foi, entre tantas coisas, filósofo propriamente dito, historiador, sociólogo, geógrafo, economista, jurista e estadista (tendo sido secretário de Estado de vários sultões no Norte da África).

Perfil de Ibn Khaldun

Os elementos que publico a seguir, procuram reunir dados, informações e opiniões de vários autores, enciclopédias e dicionários especializados, sobre a vida, obra e pensamento do eminente cientista árabe. Ainda hoje, ele é solenemente ignorado no mundo ocidental, e ainda mais em nosso Brasil. As obras ou trechos delas publicadas a seguir serão feitas na língua portuguesa, mas foram traduzidas a partir de pesquisas que realizei em cinco idiomas. [LM1]

Khaldun foi altamente produtivo do ponto de vista intelectual. Mas a sua obra que é considerada magistral e de referência para tantos estudiosos e pesquisadores foi El Mukhadima que quer dizer “Os Prolegômenos – Uma Introdução à História Universal”. Posteriormente a ela, e publicada em sete volumes, saiu Kitab Al-Ibar, que significa “História Universal”, que só veio à luz em 1867 na cidade do Cairo e publicada em inglês. Essa obra é considerada pela UNESCO como uma das obras de referência da literatura mundial.

Khaldun publicou ainda História dos Berberes e das Dinastias Muçulmanas na África Setentrional em dois volumes, traduzida para o francês apenas em 1847. Sua autobiografia surge apenas em 1951, em inglês também publicada no Cairo. Aliás, registre-se, foi o primeiro pensador de renome internacional a ter escrito a sua própria autobiografia, hoje já muito mais comum essa prática.

Porta da Casa

 

Alguns esclarecimentos iniciais

O que venho chamando de “filosofia árabe” são um conjunto de estudos e pesquisas que buscam alcançar uma possível harmonia entre razão e fé. Essa tentativa também foi feita na cristandade pelos filósofos Agostinha de Hipona (354-430) e Tomás de Aquino (1225-1274). Khaldun nasceu em 27 de maio de 1332 na cidade de Túnis (atual Tunísia) e faleceu em 15 de março de 1406 na cidade do Cairo (Egito), aos 74 anos incompletos.

Eu mesmo sempre o classifico como “filósofo”, o que era muito comum desde Sócrates. Ou seja, chamar de “filósofos” todos os que eram pensadores e faziam reflexões sobre a sociedade em que viviam. Só muito recentemente surgiram escolas que passaram a formar sociólogos, economistas, geógrafos e historiadores.

Dito de outra forma, podemos afirmar com convicção que o pensamento de Khaldun tem aspectos históricos (filosofia da História), sociológicos, econômicos, geográficos, jurídicos e teológicos. E, no limite, até mesmo Relações Internacionais e Diplomacia, já que ele exerceu a função de Secretário de Estado de vários sultões no Norte da África (seu primeiro papel como Secretário de Estado foi com apenas 23 anos, em 1355 quando serviu ao sultão Abou Inan Faris; além desses serviu ainda aos sultões Abou Salém, Abou Hammu e Abdul El Aziz).

Khaldun terminou a sua vida na cidade do Cairo, exercendo a função de Cádi, que na hierarquia do poder judiciário islâmico corresponde ao nosso presidente do Supremo Tribunal Federal. Exerceu essa função desde o ano de 1387 até o seu falecimento em 1406. [LM2]

Vale a pena que os grandes pensadores da época que Khaldun viveu sejam mencionados. Foram eles: Bocaccio, que era crítico de Dante Alighieri e viveu entre 1313 e 1375. Temos também Ibn Batuta, viajante e cronista árabe que viveu entre 1304 e 1377. Tivemos ainda Eduardo de Woodstock, conhecido como príncipe Negro da Inglaterra, que viveu entre os anos de 1330 e 1376. Sabe-se ainda de Geoffrey Chaucer, filósofo e escritor inglês que viveu entre 1340 e 1400). Por fim, registramos o cronista Jean Froissart, de origem francesa que viveu entre os anos de 1337 e 1410.[LM3]

Busto em sua homenagem

 

O mundo no contexto que a obra foi escrita

Quando se analisa qualquer autor, em especial quando se pretende resenhar a sua obra principal, é de bom alvitre que se leve em consideração o período e as circunstâncias onde ela foi produzida. À época de Khaldun, já iniciava um certo declínio lento e gradual do Império Árabe, que levaría à derrubada dessa etnia do centro do poder em 1453, momento que a etnia turca tomou a cidade de Constantinopla em 1453.

Via-se a degradação dos califados e estados islâmicos na Península Itálica. Da mesma forma, os mongóis, sob a liderança de Timur Lenk (conhecido no Ocidente como Taramelam), ocupou todo o Norte da África, onde tribos nômades foram perseguidas pelos conquistadores.

É preciso registrar que enquanto os árabes e os muçulmanos do Império que leva esse nome, construíam e preservavam as maiores bibliotecas que a humanidade já tinha conhecido, o obscurantismo da “Santa” Inquisição na Europa – que de santa não tinha nada –, fazia arder em fogueiras pessoas e livros.

A primeira versão de que se tem notícia de “Os Prolegômenos” traduzida do árabe direto para o francês, foi realizada no período compreendido entre 1862-1868, por William McGuckin – Barão de Slane –, em três volumes. Apesar de sua origem irlandesa, viveu boa parte da vida na França; por isso a tradução para o francês. Essa obra saiu com o título Discours sur L’istoire Universelle. Já a tradução para o inglês foi publicada somente em 1958 (em New York), realizada por Frank Rosenthal também em três volumes (Bollingen Series, 43).

Estátua de Ibn Khaldoun

 

Aspectos gerais de seu pensamento

É inegável para todos os estudiosos da obra khalduniana que seu pensamento é amplamente multifacético. Ele se baseia em diversos campos das ciências humanas, tendo sido um precursor de várias dessas ciências modernas que estudam a sociedade.

Khaldun analisa os diferentes tipos de trabalho, exatos 596 anos antes que Émile Durkheim publicasse seus estudos sobre isso em 1893. Ele estabeleceu o caráter produtivo dos serviços em geral 399 anos antes de Smith ter apresentado as suas teorias em 1776, ao publicar a magistral A Riqueza das Nações. Khaldun teorizou pela primeira vez sobre o valor das coisas 490 anos antes de Karl Marx ter publicado o volume “O Capital” em 1867. Por fim, Khaldun também “dá” conselhos aos sultões que serviu, com base na sua obra, exatos 136 anos antes de Maquiavel publicar a sua obra-prima O Príncipe em 1513.

 

Outras traduções ocidentais da obra de Khaldun

Publico a seguir uma lista de obras traduzidas, com as respectivas datas em que foram escritas no original, e com dados de suas traduções e de tradutores. São as seguintes:

1351Gist of the Compendium on the Principles of Religion e publicada no Marrocos com o título de Lubáb Al-Muhassal fí Usúl Al-Dín, Tetuan, Editora Marroqui, 1952.

1373-1375 – A Guide for Those Who Try to Clarify Problems e publicada em Istambul, na Turquia com o título Shifá il Li-Tahdhíb Al-Masá il, editor Osman Yalin Matbaasi, 1957-58.

1377 – An Arab Philosophy of History: Selection from the Prolegomena of Ibn Khaldun of Tunis, Londres, editado pela Murray em 1950, da obra original incluindo a auto-biografia do escritor.

1377-1382aKitáb Al-‘Ibar (The Universal History), em sete volumes, pela editora Bulak, Egypt, 1867.

1377-1382b – Histoire des Berbères et des Dynasties Musulmanes de l’Afrique Septentrionale, cujo título original em árabe é Kitáb al-Duwal al-Islámiyya bi-Maghrib, em dois volumes, editada na Argélia pela Imprimerie Gouvernement em 1847-1851; em 1925-1956, surge a edição francesa dessa mesma obra, publicada pela editora Geuthner, Paris.

1377-1406Al-Ta’ríf (autobiografia), publicado no Cairo em 1951, por Lajnát al-Ta’líf.

O francês Vincent Mansour Monteil, convertido ao islã, fez uma tradução direta do árabe, intitulada Ibn Khaldun: Discours sur l´histoirie universelle, em três volumes, Beirute-Paris, 1967-1968. O alemão Franz Rosenthal fez uma tradução para o inglês, intitulada Ibn Khaldun: The Muqaddimah, an introduction to History, em três volumes, pela Princeton, 1958 e 1967.

O livro El Mukhadima foi descoberto pelos eruditos franceses Barthélemy d´Herbelot (1625-1695), pelo barão Antoine-Isaac Silvestre de Sacy (1758-1838) e pelo austríaco Josef von Hammer-Purgstail (1774-1856). Posteriormente, outro acadêmico, chamado Etienne-Marc Quatremère (1782-1857), fez a primeira tradução completa em 1868, quando nessa mesma época apareceu no Cairo uma outra edição de Nasr al-Hurini.[LM4]

No Brasil, existe apenas uma versão da magnífica obra “Os Prolegômenos”, traduzida direta do árabe. Essa tradução, foi feita por José Khoury, então membro do Instituto Brasileiro de Filosofia (ainda hoje existente e presidido pelo jurista Miguel Reale) e por Angelina Bierrenbach Khoury, então professora de Ciências da Escola Normal Alexandre de Gusmão em São Paulo. A obra foi impressa pela Editora Comercial Safady (Organização Jamil Safady), vol. I, impresso em 1954.

Aqui registro um parênteses importante sobre esse trabalho: tentei entrar em contato com ambos, mas não consegui, provavelmente já sejam falecidos. Tenho um projeto de fazer uma atualização dessa tradução, inserindo, sempre que possível, notas técnicas e comentários de esclarecimentos. Até fiquei sabendo que a biblioteca com acervo pessoal do sociólogo Gilberto Freyre possui esses livros da edição brasileira, e todo ele com anotações. Um dia pretendo tomar contato com essas anotações para aprofundar as minhas pesquisas sobre Khaldun e a Sociologia árabe.

Selo

 

Aspectos de seu pensamento

Tem posições na linha do determinismo geográfico:

“Se prosseguirmos nestas observações nos outros climas e países, acharemos em toda parte, que as qualidades do ar exercem uma grande influência sobre as qualidades do homem” (Livro I, pág. 135).

Divaga sobre aspectos psicossociais e físicos nos seres humanos, em função da abundância ou penúria por que passam as pessoas:

“Não possuindo bastante dinheiro [as tribos árabes nômades do deserto] para fazerem grandes compras, podendo apenas adquirir o estritamente necessário, estão longe de ter com que viver na abundância. Quase sempre vêmo-las adstritas ao uso do leite, alimento que, para elas, substitui perfeitamente o trigo; estes homens, habitantes do deserto, a quem faltam inteiramente os cereais e os condimentos, superam, em qualidades físicas e morais, os habitantes do Tell, que vivem na abundância. O excesso de alimentação e os princípios úmidos, que existem nos alimentos, provocam no corpo, secreções supérfluas e perniciosas que produzem gordura excessiva e uma abundância de humores nocivos e corrompidos, o que provoca uma alteração da tez e tira às formas do corpo sua beleza, sobrecarregando-o de carnes” (Livro I, pág. 136-7).

Sobre a suscetibilidade de corrupção nos povos das cidades e do campo:

“Os habitantes das cidades, ocupados habitualmente com seus prazeres e entregues aos hábitos do luxo, procuram os bens deste mundo transitório e abandonam-se às paixões. Sua alma corrompe-se pelas qualidades mas que adquire em grande número, e, à medida que vai se pervertendo, mais ela, na mesma proporção, se afasta da estrada da virtude” (Livro I, pág. 209).

Fala da coragem dos camponeses:

“Os habitantes das cidades, recostados no leito da tranquilidade e do repouso, mergulham nas delícias da opulência a saborear os prazeres da vida, deixando a seu governador ou a seu comandante o cuidado de lhes proteger a vida e os bens. Os que vivem no nomadismo… jamais confiam a outrem o cuidado de os defender, e, sempre de armas em punho, demonstram, nas expedições, uma vigilância extrema” (Livro I, pág. 213).

Aqui, Khaldun antecipa de alguma forma as teorias de ciclos de poder, desenvolvidas por Pareto no final do século XIX e início do XX. Se aplicarmos algumas de suas ideias na atualidade, especialmente na tentativa de explicar as quatro eleições sucessivas das candidaturas do campo progressista (Lula e Dilma, duas vezes cada um), veremos que houve um nítido, um claro acomodamento das lideranças populares por se sentirem governo e de outras centenas de líderes que – alçados ao poder – acomodaram-se nos cargos, usufruindo das benesses deste, perdendo todos os vínculos com as amplas massas populares.

Khaldun trata de conceitos sobre a pureza de raças:

“Nenhum indivíduo pertencente a outra raça deseja compartilhar a sua sorte e sujeitar-se a semelhante vida. Mesmo que pudessem fazê-lo, os nômades não trocariam de estado para fugir à miserável sorte, mesmo que achassem uma ocasião propícia. Seu isolamento é, pois, uma garantia contra a corrupção do sangue que resulta das alianças contraídas com estrangeiros. Entre eles a raça se conserva na pureza. Toda a gente conhece as controvérsias havidas relativamente à nobreza das suas grandes famílias e que foram motivadas por casamentos com estrangeiras e pelo pouco cuidado que demonstraram em conservar suas listas genealógicas” (Livro I, pág. 222-3).

Khaldun nos oferece o seu conceito da tribo:

“Ele compreende grupos cujos componentes se mantém mais fortemente coesos do que aqueles cuja agremiação forma a tribo. Tais são os parentes próximos, a gente da mesma casa, os irmãos nascidos dos mesmos pais” (Livro I, pág. 225).

Todos esses conceitos, são fundados em aspectos que são sociológicos, ainda que de forma rudimentar, mas que o tornam, segundo nosso ponto de vista um dos primeiros sociólogos, estudiosos da sociedade humanas de forma científica. Nas minhas aulas de Sociologia na Universidade Metodista de Piracicaba onde lecionei por mais de 20 anos, sempre falava dele como um sociólogo árabe, apesar de ignorado pela maioria dos meus colegas e pesquisadores de universidades brasileiras. Quando contamos a história e a origem da Sociologia moderna, na maioria das vezes não lembramos de Khaldun.

Mas eu procuro fazer justiça a seu pensamento, bastante avançado para a sua época.

Moeda de prata em homenagem a Ibn Khaldun

 

Uma possível comparação com Maquiavel

Gosto também de fazer pequenas comparações entre as obras de Maquiavel, em O Príncipe e a obra de Khaldun, em “Os Prolegômenos”. A seguir, pequenas citações, que reforçam essa comparação. A pergunta que fica é a seguinte: teria Maquiavel lido a obra khalduniana?

Existem muitos autores que afirmam que sim, tamanha as semelhanças entre os textos dos dois pensadores. Mas, salvo se Maquiavel falasse ou lesse o árabe, isso talvez fosse improvável, na medida que as traduções direto do árabe para o francês, inglês e espanhol só começaram a nos chegar a partir de meados do século XIX.

Diz que estrangeiros não governarão:

“Para alcançar o comando, é preciso ser poderoso; para ser poderoso, é necessário ter o apoio de um partido forte e coeso; portanto, para fazer prevalecer a sua autoridade, é absolutamente imprescindível a decidida cooperação de um corpo devotado de correligionários para vencer sucessivamente todos os partidos que tentassem resistir” (Livro I, pág. 227).

Ao lermos este pequeno trecho é quase que impossível não adotarmos essa passagem para os dias atuais com profunda crise política e de representação com a qual vivemos no país.

Para manter o poder, só com o apoio do povo, Khaldun nos ensina:

“Um povo não poderia efetivar conquistas, nem mesmo defender-se, a não ser unido sob o impulso de um espírito de grupo. A dignidade do soberano é tão nobre como atraente. Graças a ela, procuram-se os prazeres mundanos, tudo o que pode satisfazer os sentidos e encantar o espírito. Quem se colocar tão alto é quase sempre objeto de inveja; ele, por sua vez raramente abre mão de posição tão cobiçada, exceto quando obri­gado pela força” (Livro I, pág. 271).

Comparamos sempre essas passagens com os conselhos que Maquiavel dá ao príncipe. Khaldun também foi, de certa forma, conselheiro de pelo menos quatro sultões magrebinos.

Também os soberanos devem ter virtudes, diz Khaldun:

“É óbvio que as belas qualidades existentes no homem têm grande relação com a faculdade de governar e de administrar, porque existe uma relação intima entre o bem e o direito de comandar” (pág. 250).

“Se um homem tiver por sustentáculo um partido muito poderoso, as nobres qualidades de que der prova demonstrarão sua aptidão para fundar um império” (pág. 251).

Khaldun dá extrema importância à arte da escrita:

“A espada e a pena são os dois instrumentos de que necessita o soberano para ajudá-lo em seus negócios de Estado. Todos os Impérios na fase inicial de sua existência, e tanto quanto durem os preparatórios de seu estabelecimento definitivo, tem mais necessidade da espada do que da pena” (pág. 49).

Aqui a coincidência com o pensamento maquiavélico é impressionante. O pensador florentino diz em O Príncipe, que “há momento do uso da pena e outros do uso da espada”, como que querendo indicar que as correlações de forças em certas situações não permitem ao povo pegar em armas para as suas lutas e que o mais adequado seria a escrita, a arte da palavra. Na atualidade, isso quer dizer que devemos travar de forma intensa a luta de ideias. Isso está tão atual nestes tempos de pós-verdade, tempos de fake news e, inclusive, tempos negacionistas e revisionistas de nossa história.

Khaldun sai em defesa de um governo forte que mantenha a ordem:

“Há para os homens necessidade absoluta de se reunirem em sociedade, como temos repetido várias vezes. A reunião dos homens em sociedade é o que se designa pelo termo umran (organização social, civilização). Ao adotarem a vida social, os homens não podem prescindir de um moderador ou magistrado a quem devem recorrer” (pág. 133).

Khaldun estuda e define o poder absoluto e o absolutismo Magrebino:

“Como a altivez e a arrogância são sentimentos naturais à espécie humana, o chefe de um povo não consente nunca em repartir seu poder com um outro, nem lhe permite comandar ou administrar. O chefe, por exemplo, deve ser único, porque se fossem muitos, criar-se-iam condições muito prejudiciais à sociedade. Um chefe supremo reprime a ambição das famílias colocadas sob suas ordens; dobra a audácia e a petulância dos outros chefes, tirando-lhes qualquer esperança de compartilhar o poder (Livro I, pág. 297).

É como se Khaldun estivesse dando conselhos aos sultões da sua época, ao qual ele tão bem serviu, orientando-os sobre a questão do compartilhamento do poder. Ao mesmo tempo, como cientista da sociedade e sociólogo, ele estaria também constatando a realidade do absolutismo do poder, que viria a assolar praticamente toda a Europa na Idade Média.

O autor vai mostrar as cinco etapas do desenvolvimento político de um império qualquer, na medida que, segundo ele, todos os impérios passariam por elas. É como se fosse uma espécie de lei universal do poder político nos impérios. Alguns autores chamam isso de Teoria dos Ciclos de Poder. Vejamos:

  1. A ascensão e queda de um império

“Na primeira [etapa], a tribo entrou na posse do que mais desejava, resistiu aos ataques, repeliu os inimigos, conquistou um império e apoderou-se do poder da dinastia que o tinha nas mãos antes dela” (1ª etapa, pág. 313).

  1. Etapa da Usurpação

“Na segunda fase, o soberano usurpa toda a autoridade, tirando-a do povo e repelindo as tentativas dos que querem compartilhar com ele do poder” [também aqui são análises que mostram uma etapa absolutista de poder] (2ª etapa, pág. 314).

  1. Etapa do Ócio

“A terceira fase se caracteriza pelo ócio e a vida tranquila. O soberano desfruta agora da recompensa de seus esforços; dono do império, pode com toda a liberdade, entregar-se à paixão que leva os homens à procura das riquezas, à ânsia de eternizar a própria existência por monumentos duradouros e criam para si alta reputação” (3ª etapa, pág. 314).

  1. Etapa da Tranquilidade

“A quarta fase é um período de contentamento e de tranquilidade. O soberano mostra-se satisfeito com a glória que lhe foi transmitida; vive em paz com os príncipes dignos de igualá-lo ou capazes de rivalizar com ele em poderio” (4ª etapa, pág. 315).

  1. Etapa da Dissipação

“A quinta fase caracteriza-se pela prodigalidade e pelo esbanjamento. Gasta o soberano, em festas e em prazeres, os tesouros amontoados por seus predecessores; grande parte dessas riquezas é distribuída a seus cortesãos a título de honorários, empregando o restante em manter o brilho de suas recepções e em cercar-se de falsos amigos e de intrigantes” (5ª etapa, pág. 315).

Todas estas fases aparecem no Capítulo XV, Terceira Parte, Livro I, intitulado “Indicações das fases por que passam os impérios; das modificações que se produzem nos costumes e nos caracteres da população, pág. 313-31). Alguma semelhança com relação à acomodação que vivemos nos 13 anos de governos progressistas do Partido dos Trabalhadores e seus aliados?

Capa de Livro “A História de Ibn Khaldun”, também conhecido como “The Book of Lessons and the Diwan of the Beginner and the Scholar in the days of the Arabs, the Ajam and the Berbers, and their contemporaries among the Sultan’s great men”

Seria possível falar em rudimentos de marxismos antes de Marx?

Também em meus estudos e pesquisas sobre Khaldun, selecionei diversos trechos onde é possível tecer comparações com a obra monumental de Karl Marx – talvez o último grande filósofo conhecido pela humanidade. Entendendo por filósofo aquele pensador que conheceu e estudou toda a sua época e todas as épocas históricas passadas. Também aqui indagamos: teria Marx lido e travado contato com a obra de Khaldun? 450 anos antes de Marx, Khaldun usa um forte tom “marxista” em sua obra. Poderíamos falar em marxismo antes de Marx?

Khaldun trata do trabalho como fonte de riqueza:

“Impõem-se aos que exercem profissões e aos artesãos corveias que, além de lhes causar perda de tempo, são consideradas pelos mandantes, como sem valor, não merecendo nenhuma retribuição. Ora, o exercício das artes e dos ofícios é a verdadeira fonte de riqueza [grifos nossos]… Se as profissões manuais encontram empecilhos e deixam de ser protegidas e aproveitadas, perde-se a esperança do lucro e renuncia-se ao trabalho; a ordem estabelecida perturba-se e a civilização recua” (Livro I, pág. 263).

Aqui o conceito de lucro em plena fase de feudalismo e mercantilismo ainda primário em termos mundiais.

Khaldun aborda com maestria a questão do lucro:

“Mas é necessário o trabalho do homem para tudo que é aquisição e tudo que é riqueza… O lucro que resulta da criação de gado, do cultivo das plantas e da exploração das minas não pode também se obter, senão mediante o trabalho do homem [grifos nossos]… Sem trabalho, estas ocupações não forneceriam proveito algum e não seriam de nenhuma vantagem” (pág. 279-280).

“Estabelecidos estes princípios, diremos que, se as mercadorias das quais se retira proveito ou vantagem forem o produto de uma arte especial, esta vantagem e este proveito representam o preço do trabalho do operário ou do artífice e é isto que designa pelo termo lucro; o trabalho ali é tudo [grifos nossos]… Existem certas artes que compreendem em si outros ofícios: o de carpinteiro, por exemplo, está ligado ao de marceneiro e a arte do tecelão acompanha a da fiação. Mas há mais mão de obra no ofício de marceneiro e no de tecelão, o que faz que o trabalho deles deva ser melhor remunerado [aqui trata do valor do trabalho diferenciado]. Se o fundo ou reserva que se possui não é produto de uma arte, nem por isso se deve deixar de incluir no preço do produto obtido e adquirido o valor do trabalho que se levou para executá-lo. Porque sem o trabalho nada se adquire… Quando se fixa o preço dos cereais, tem-se em conta certamente o trabalho e os gastos exigidos pela produção” (pág. 277-281).

Aqui faço novo parênteses. A discussão histórica sobre o valor das coisas é milenar. Aristóteles foi o primeiro filósofo que tocou nesse assunto em seu livro V de Ética à Nicômano. Ele teoriza como um arquiteto poderia adquirir de um artesão/sapateiro uma sandália. Qual equivalência isso teria que ter. Tomas de Aquino, mais de mil anos após também teoriza sobre esse assunto. Depois veio Khaldun. Mas apenas a genialidade de Marx, em 1867, com “O Capital” que ele vai estabelecer o valor de todas as coisas, guardando uma relação direta da quantidade de trabalho nela empregada para ser produzida (inclusive no setor de serviços).

Khaldun trata da especulação imobiliária e da riqueza obtida sem o trabalho:

“O resultado é que os proprietários se desfazem de suas terras a preço vil e se comprarem propriedades quase a troco de nada. Quando estes imóveis passam mais tarde por herança à mão de outros senhores a cidade já recuperou a sua mocidade em consequência do triunfo de uma nova dinastia e este estabelecimento da prosperidade leva os homens a procurar novamente a posse de imóveis por causa dos grandes lucros que poderiam lhes auferir. Daí resulta uma grande alta no valor das propriedades; elas adquirem uma importância que não tinham antes e eis porque então tinham sido compradas por especulação. O indivíduo que delas tinha se tornado proprietário ficou agora o homem mais rico da cidade, riqueza que lhe chegou às mãos sem ter trabalhado para ganhar o que possui; aliás teria sido incapaz de adquirir tamanha fortuna por seu trabalho” (pág. 251-2).

Também outro parênteses necessário. Vejam a profundidade – para a época, claro – com que ele já anuncia a especulação urbana. Marx chamará a isso e a classe dos que vivem disso de rentistas. Hoje, mais do que nunca, essa especulação ocorre em vários aspectos da economia. Em especial e principalmente, na financeira, ou seja, o dinheiro fazendo cada dia mais dinheiro sem que seja necessário passar pelo processo produtivo do trabalho.

Khaldun aponta sobre quem pode se dedicar ao comércio:

“Temos definido o comércio como a arte de fazer crescer seu capital comprando mercadorias e procurando vendê-las mais caro do que custaram. Isso se pratica quer guardando as mercadorias até que seu preço no mercado alcance uma alta, quer transportando-as para um país em que são muito procuradas, vendendo-se muito caro” (pág. 305).

Notem aqui novamente a especulação, mas também aquilo que Smith tratou em primeiro lugar, que é a chamada Lei da Oferta e da Procura. Mas não é impressionante tudo isso? Escrito e desenvolvido no ano de 1377!

Com simplicidade, Khaldun define o significado de comércio e, ao mesmo tempo, descreve movimentos especulativos feitos pelos comerciantes para aumentarem seus lucros. Segundo Marx, o comerciante realiza a mais-valia ao vender as mercadorias produzidos pelos seus empregados. Isso pode ser comprovado com a afirmação de Khaldun: “O que produz o lucro e fornece os meios de viver, são os ofícios e o comércio” (pág. 311). Não é impressionante? O operário produz a mais-valia no fabrico das coisas e o patrão a realiza quando vende essa mercadoria por um valor muito maior do que custou. As artes e ofícios descritos mais importantes na época: marcenaria, alvenaria, tecelagem, alfaiate, agricultor, parteira, medicina, escritor, livreiro, cantor e matemático (pág. 325-377).

Khaldun discute aspectos sobre preços das mercadorias:

“Cada um faz provisão de uma quantidade de cereais bem acima de suas necessidades e das de sua família, quantidade que bastaria para um grande número de habitantes desta localidade. Tem-se, pois, certeza de que haverá muito maior quantidade de cereais que a exigida para a alimentação da população. Os cereais serão aí por um preço baixo, exceto nos anos em que as influências climáticas prejudicam a produção e se os habitantes, por receio de semelhante desgraça, fizerem compras antecipadas” (pág. 243).

Vejam esta outra passagem:

“Se a cidade é muito grande e contém muita população, de modo que as exigências do luxo sejam muito numerosas, estas comodidades [alguns gêneros, como especiarias] serão muito procuradas e cada indivíduo tentará possuí-las na medida que seus meios lho permitem. A quantidade que existe delas na cidade será de todo insuficiente; os compradores serão numerosos e o gênero tornar-se-á muito escasso. Então haverá concorrência, lutar-se-á para possuí-las e as pessoas que vivem na abastança e no luxo, tendo mais necessidades delas que o restante dos habitantes, as compram por um preço muito acima de seu valor. Eis aí a causa da carestia” (pág. 244).

“Quanto aos outros artigos menos necessários, a procura é muito menos forte, visto os habitantes serem poucos e se contentarem com pouco; assim os gêneros dessa espécie são de pouca procura em tais cidades e se vendem a preço baixo” (pág. 245).

Impressionante! Aqui temos de forma inequívoca a primeira formulação da Lei da Oferta e da Procura, que é a base da teoria econômica liberal, formulada posteriormente por Ricardo e por Smith, economistas ingleses, anteriores mesmo a Karl Marx. Deve-se assim, a Ibn Khaldun, uma teoria do valor e da formulação dos preços dos produtos.

“Os vendedores, ao estabelecerem o preço dos gêneros, tomam em consideração as taxas e impostos pagos sobre estas mercadorias no mercado e nas estradas das cidades, como direitos do Sultão” (pág. 245).

Aqui apresenta-se um dos componentes da formulação de preços (matéria prima, impostos e taxas, salários e lucro – págs. 243-246).

Excessos de luxo, impedem povos de fundarem impérios:

“Uma tribo que logrou certa potência por seu espírito de grupo chega sempre a atingir certo grau de abastança correspondente ao progresso de sua autoridade, chegando ao mesmo nível que os povos que vivem no desafogo e bem estar, como ele goza também das comodidades da vida, entra ao serviço do império e à medida que adquire mais poderio, mais cresce seu apetite dos prazeres materiais. (…) Desde então, não mais nutrem a veleidade de lutar contra a dinastia ou de munir-se de meios para derrubá-la. Sua única preocupação é manter-se na abastança, ganhar dinheiro e levar uma vida agradável e de sossego à sombra da dinastia. Ostentam atitudes de grandeza, edificam palácios, trajam vestimentas riquíssimas e de grande variedade. À medida que se lhes avolumam as riquezas e aumenta o bem estar, com mais afinco procuram o luxo e com mais ardor se entregam aos gozos que a fortuna proporciona. Perdem assim, os hábitos de austeridade da vida nômade, não conservando nem o espírito tribal nem a bravura que os distinguia outrora, pensando somente em saciar-se dos bens com que Deus os cumulou. Seus filhos e netos criam-se e crescem no seio da opulência” (Livro I, pág. 245).

Khaldun estabelece uma ligação entre os impérios e as religiões:

“Quando, desaparecendo o impulso religioso com o enfraquecimento da fé, a nação se acha também enfraquecida e perturbada em seus negó­cios, tornando-se incapaz de enfrentar qualquer outra dotada do duplo espírito de grupo e de fervor religioso. Uma dinastia pode manter na obediência povos tão fortes como ela, e mesmo mais fortes, contanto que os tenha subjugado depois de duplicar as próprias forças com o espírito e o impulso religioso [grifos nossos]” (Livro I, pág. 280).

Lombadas de Livros

 

Algumas conclusões

De forma resumida, podemos dizer que Khaldun trata em sua magistral obra do poder (antes de Maquiavel). Trata da solidariedade, como conceito de assabyya muito antes de Durkheim ter estudado o tema. Trata dos ciclos de poder muito antes de Vilfreto Pareto. Trata do valor das coisas e as relaciona com trabalho muito antes de Marx (Smith trata disso também, mas não consegue enxergar a diferença entre trabalho produtivo e improdutivo, segredo que só Marx desvendaria). Por fim, Khaldun trata até sobre o “estado natural”, muito antes de Hobbes. O maior historiador inglês – Arnold Toynbee (1889-1975) – disse sobre ele: “Ibn Khaldun é o mais inteligente intérprete da morfologia da história que já surgiu em qualquer lugar do mundo até hoje”.[LM5]

Quiçá nos dias atuais pudéssemos ter pelo menos um Khaldun que nos iluminasse os caminhos tão difíceis e tortuosos que temos tido a necessidade de trilhar. Somente pelo estudo de pensadores como esse e de todos os grandes que os sucederam, citados neste artigo de forma suscinta, é que poderemos desenvolver uma reflexão mais avançada e evoluída sobre a organização de nossa sociedade, que concentra renda e riqueza nas mãos de tão poucos.

 


* Lejeune Mirhan é sociólogo, escritor e analista internacional. Foi professor de Sociologia da Unimep (por 20 anos). Presidiu a Federação Nacional dos Sociólogos do Brasil (1996-2002).  É colaborador dos portais Fundação Grabois, Vermelho, do Duplo Expresso, B247, entre outros, e da revista Sociologia, da Editora Escala.

* * *

LM1 Pesquisa realizada em textos em português, francês, espanhol, inglês e o italiano. Quanto ao árabe, apesar de dois anos de estudos particulares e dois anos na USP, ainda não domino esse idioma.

LM2 Este resumo aqui publicado origina-se na própria autobiografia do autor, pág. 479-546, vol. I da obra “Os Prolegômenos”. Todas as citações feitas neste trabalho têm como referência a edição brasileira de 1958, traduzida direto do árabe por José Khouri e Angelina Khouri, editado pela Safady Comercial. A obra está fora de catálogo, sendo encontrada apenas em sebos.

LM3 Para maiores informações, sugiro a consulta à página Ibn Khaldun na versão em inglês da Wikipédia ou Ibne Caldune na versão em português de Portugal. Acessos em 4 de abril de 2019, às 12h32.

LM4 Os dados destes “descobridores” de Khaldun, foram obtidos no artigo intitulado Ibn Khaldun: el primer sociólogo de la história, de autoria de R. H. Shamsuddin Elía, professor do Instituto argentino de Cultura Islâmica.

LM5 Esta citação pode ser encontrada em sua obra mais importante que é “Um Estudo de História”, de Arnold Toynbee, publicado no Brasil pela Editora Martins Fontes. A minha edição é a segunda, de 1987, e essa passagem é encontrada na página 512.

 

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