Íntegra da entrevista de Piero Leirner ao Le Monde Diplomatique Brasil

A série de perguntas a seguir realizou-se no âmbito de uma reportagem maior do Le Monde Diplomatique Brasil, e as respostas foram publicadas na página pessoal de Piero Lairner no Facebook, que autorizou sua republicação por parte do Duplo Expresso.

 

Por Piero Lairner*, da Redação do Duplo Expresso

Como fui avisado pelo grande Paulo Follador, no dia 23 de dezembro saiu a edição do Le Monde Diplomatique Brasil – LMDB com uma matéria que trata da já não-tão-nova-assim estratégia do “firehose of falsehood”, ou “mangueira de falsidades”. Expressão que foi consagrada para, de grosso modo, tratar desse fenômeno de campanhas eleitorais baseadas em fakes, etc.

Na matéria “Firehosing: por que fatos não vão chegar aos bolsonaristas”[1], assinada por Renan Borges Simão, tem uma parte que se baseia em entrevista feita comigo no dia 7 de novembro, mas que no fim achei que ficou – depois da edição –, um pouco estranha a parte que me cabe.

Uma das coisas que tinha pedido ao jornalista é que me submetesse os meus trechos antes de publicá-los. Isso não foi feito, assim como não foi sinalizada a publicação. Além disso, eu mesmo não tive acesso a ela, que me foi também providenciado como texto corrido pelo Paulo.

 

Entrevista Le Monde Diplomatique Brasil

[P/Pergunta; R/Resposta]

[P] Que aproximações e distanciamentos você vê entre os conceitos de “firehosing” e “guerra híbrida”?

[R] O conceito de “guerra híbrida” foi, digamos assim, “inventado” por um norte-americano que reside na Russia, o Andrew Korybko. Sua teoria, a grosso modo, pretende dar conta de entender uma estratégia de guerra indireta (ou “terceirizada”), mas cujo agente provocador é basicamente os EUA. Ela é “híbrida” pois trata de uma junção das [a] chamadas “primaveras” (Argélia, Egito, Jordânia e Iêmen, mas depois Europa central e do leste, e finalmente hoje, depois de rever a teoria, Américas Central e do Sul); e [b] seguidas de intervenções baseadas em “guerras não convencionais” ou “assimétricas”, caso necessário. No primeiro ponto, ele identificou primeiramente o uso de pautas identitárias associadas a bandeiras genéricas (“liberdade”, “democracia”). Boa parte desta teoria nasceu para explicar o tabuleiro geopolítico de duas áreas sensíveis nas tensões entre EUA e Russia, a Síria e a Ucrânia, que foram os desdobramentos dos primeiros movimentos das “revoluções coloridas” anteriores, que foram uma espécie de campo de testes. No final das contas, isso é, em termos de uma “longa duração” das teorias da guerra, um deslocamento dos confrontos diretos cuja matriz poderia ser a grosso modo atribuída a Clausewitz, para uma teoria mais baseada em Sun-Tzu, cuja ideia é maximizar os ganhos com o mínimo de enfrentamento.
Já os pesquisadores que propagaram esse termo, “firehosing of falsehood” ou, como foi traduzido sinteticamente, “mangueira de falsidade” – Christopher Paul e Miriam Mathews –, são cientistas sociais da RAND Corporation, e seu relatório diz respeito à “interferência russa” na eleição norte-americana[2]. Similarmente à “guerra híbrida”, podemos ver nesse “método” um desdobramento de uma série de doutrinas baseadas em “operações psicológicas” que existem de maneira mais consolidada desde a 2ª Guerra Mundial. Trata-se, aqui, de propagar um jogo de informações e contra-informações que desestabilizam os poderes constituídos, para posteriormente reorganizar as forças sociais a partir de um segundo movimento de ordenação cognitiva, apostando que o desdobramento final não necessitará de um desdobramento “direto” (uma “guerra assimétrica), mas se dará dentro de um jogo institucional, como a “justiça” ou as “eleições”. Ao fim podemos dizer que ambos são uma espécie de “espelho” um do outro; na verdade, o conceito da RAND é uma espécie de contra-ataque (acadêmico, conceitual) ao de “guerra-híbrida”.
Por isso mesmo, seria interessante pensar, antes de mais nada, afinal, o que é a RAND? Trata-se de um think tank americano, que tal como outros (como o Wilson Center, por exemplo), que a vida toda produziu conhecimentos e ligações visando criar esferas de influência em processos políticos nos EUA e em outros países. Estão intimamente ligados aos setores do “deep state”[3] que orbitam o Partido Democrata, aos militares, a um setor financeiro que Steve Bannon chama de “clube de Davos” e seus satélites, com órgãos multilaterais como o FMI (veja a entrevista dele à Folha de São Paulo). Perceba então que nessa “guerra conceitual” temos não somente Rússia e EUA, mas também setores opostos dentro do complexo industrial-militar-financeiro mundial e seus diferentes projetos e extensões[4].
Eis que chegamos ao Brasil, e mais especificamente a Bolsonaro. O que podemos dizer, pelo que vimos até aqui? De maneira muito sintética, enxergo o que está havendo nos processos dos últimos anos, culminando nas eleições, um movimento que mescla os dois “métodos” acima. De maneira muito geral, o que começou como “guerra híbrida” em 2013 terminou como “firehose of falsehood” em 2018. Para mim, o mais importante é não dissociar os processos que envolveram protestos, justiça, operações no legislativo, impeachment e, finalmente, eleições. Me parece demais colocar tudo isso nas costas de Bolsonaro. Ele foi a ponta de um processo que começou lá atrás, mas que não se tinha certeza de como iria terminar. Aliás, não se tem ainda, pois estou vendo claramente as duas tendências acima se alojarem no futuro governo.

 

[P] Bolsonaro apoia e parece espelhar Trump quando faz falsas afirmações ou desvia atenções de sua plataforma política. No que podemos comparar a comunicação de Bolsonaro com a de Trump? O que há de diferente?

[R] Ele de fato se valeu da tecnologia de Bannon, ligado, como todos sabem, a Trump. Além disso, quer de fato se espelhar em Trump, não há nenhum segredo aí. Como tenho insistido, a estratégia é bem simples: se lança informações contraditórias o tempo todo, se cria um ambiente de dissonância, e depois se vêm com a solução de ordem. De certo modo, é bem mais sofisticado do que simplesmente criar “cortinas de fumaça”, pois é preciso de fato criar a contradição. Para isso é essencial que eles se valham do controle dos meios em que isto vai ocorrer, bombardeando a imprensa (no duplo sentido: botando nela a informação a ser desmentida, e depois, por conta disso mesmo dizer que ela própria produziu a falsidade), e depois bombardeando as redes sociais, com um loop de informações contraditórias e depois pelos canais próprios do twitter, facebook e whatsapp, dar uma “palavra final” – que, aliás, nem sempre é a final.
Agora, o que vimos até aqui foram estratégias de campanha. De certa maneira, o discurso de Trump continuou operando neste mesmo registro depois de eleito, e agora ele se vê ao mesmo tempo sendo pressionado e contra-atacado pela imprensa, pelo “clube de Davos”, por setores do Estado – como o judiciário, os militares, as agências de segurança –, e, também, sendo moderado pelo próprio Partido Republicano. No Brasil, ao contrário, o que aconteceu? Todo movimento de Bolsonaro foi pavimentado por uma aliança entre, justamente, setores do Estado como judiciário e militares, imprensa e partidos no espectro contrário ao PT. Então, o que lá é um freio para Trump, aqui é um acelerador para Bolsonaro. Ao mesmo tempo, há coisas que funcionam em sentidos opostos: se lá o Governo parece estar mais sintonizado nessa linha do “nacionalismo populista” (conforme as palavras de Bannon), aqui as duas tendências se instalam no Governo, esta última na entourage mais próxima (família de Bolsonaro, por exemplo), mas também a do “Clube de Davos”, operando sobretudo através de Sergio Moro – que dezenas de vezes frequentou os circuitos dos think tanks e das organizações que representam uma “finança transnacional”. Teremos uma bela salada aí, só não sei exatamente como se situa o fiel da balança, as três Forças Armadas.

 

[P] Você caracteriza a comunicação de Bolsonaro como “uma estratégia de criptografia e controle de categorias, através de um conjunto de informações dissonantes” e não de propaganda. Agora a comunicação será institucionalizada por ser emitida pelo presidente da República e seus ministros. O que muda nessa institucionalização dos discursos da cúpula bolsonarista?
[R] Não sabemos ainda, só podemos ter vagos palpites, até porque ainda estamos sujeitos à criptografia anterior. O que me parece mais relevante até agora? Que Bolsonaro terceirizou o Governo propriamente dito para os tais superministros, e está se colocando cada vez mais numa posição similar a de um monarca. Tudo que ele vai precisar fazer é arbitrar conflitos e ser uma espécie de poder moderador dentro do próprio Poder Executivo. Ao mesmo tempo, ele poderá continuar a operar, em ritmo de campanha, uma operação de comunicação que visa o estabelecimento de uma autoridade carismática com o “rebanho”, isto é, a população. Usei de propósito essa expressão pelo seu cunho religioso, já que estamos vendo que essa indexação é vital para o projeto de poder que ali se instala.
Outra coisa que agora deverá ser alvo de atenção, mas não sabemos ainda exatamente qual vai ser o desenho disso, é que Bolsonaro, com o Decreto 9527 de 15 de outubro de 2018, que “cria a Força-Tarefa de Inteligência para o enfrentamento ao crime organizado no Brasil”, tem agora à disposição um “input” que deixa o antigo SNI parecendo uma rede de fofocas de comadres e compadres. É preciso ter em mente que ele, provavelmente, se os analistas de informações forem bons, vai sempre estar um passo à frente da imprensa. Seus discursos, assim, poderão tender a uma manipulação das informações muito maior. Se este desenho funcionar, a criptografia não precisará mais estar se renovando a cada hora, e ele poderá apenas se centrar na conversa de “fazedor da ordem”, apelando para temas morais e usando ad nauseam os símbolos nacionais e religiosos que tem à disposição. Afinal, tudo que ele não precisa é continuar a estratégia de “guerra híbrida”, pois aí corre o risco dela própria se virar contra e produzir instabilidade para si.

 

[P] A Wired define a comunicação por WhatsApp como um “boca a boca em escala”. Sabemos que essa comunicação dribla a imprensa e outras mediações de mensagem por ser um meio privado e criptografado, dando mais valor a amigos e familiares tidos como mensageiros. A estratégia bolsonarista é muito robusta no WhatsApp. Como a oposição pode ser relevante e interferir nessa dinâmica de comunicação do presidente e aliados no WhatsApp?

[R] Sim, em outra ocasião chamei essa estratégia como um “mecanismo de estação de repetição”, que consiste basicamente em um conjunto de células mais ou menos autônomas, que captam uma mensagem na ponta (isto é, num “núcleo exemplar” que pode bem ser a própria família de Bolsonaro) e replicam entre um grupo determinado de pessoas; algumas pessoas desse grupo espalham para outros grupos, e assim vai. No meio desse processo há uma “adição de criatividade”, e essas “estações” começam elas próprias a fabricar conteúdos e práticas. Em termos militares essa tática foi empregada em guerrilhas, mas também em Comandos (pequenas unidades de Forças Especiais), companhias de “segurança privada” que atuam com mercenários, e também em células terroristas. Agora, é obvio que não estou dizendo que os eleitores de Bolsonaro, muito menos ele e sua entourage, são terroristas. No entanto essas fórmulas produzem “empréstimos”, e vão para exércitos, para empresas, para as finanças, e, por que não, para a política. De fato, se quisermos perceber isto como um movimento maior que engloba o capitalismo do século XXI, poderíamos até de certa maneira enquadrar isto em um enorme fluxograma de terceirizações.

 

[P] Christopher Paul diz que a persuasão funciona melhor com o volume de mensagens (não importa se verdadeiras ou não) de amigos e familiares do que com a credibilidade de um jornal. A credibilidade é mais poderosa se vier de alguém próximo da pessoa. Para você, em vez de descreditar o WhatsApp como meio propício para a disseminação de informações falsas, imprensa e oposição devem aderir ainda mais (aumentar o volume) à comunicação por WhatsApp?
[R] Esta é uma queda de braço interessante. Pois como se mede o “volume” de informação passada pela imprensa? Ela tem um limite de horas, então tudo o que estamos vendo é que ela cada vez mais se vale dos mesmos dispositivos: uso de blogs, aumento considerável da importância dos colunistas, mensagens através de redes, etc. Então virou apenas uma “guerra de posição”. Na campanha Bolsonaro lançava uma ofensiva, e o que se via do lado contrário? O lado petista cada vez mais disseminar nas redes sociais as informações de jornais e revistas e opiniões de colunistas como se agora estes mesmos fossem “críveis”. Veja o caso do Reinaldo Azevedo, para mim o mais sintomático de todos. De repente o legalismo dele serviu de âncora para as informações da esquerda, uma vez que ela própria já não conseguia ser produtora de informação. Precisou terceirizar fazendo o uso da “autoridade tradicional” da imprensa, o que obviamente não funcionou frente à “autoridade carismática” de Bolsonaro. Finalmente, uns poucos dias antes do 2º turno, parece que a campanha de Haddad resolveu adotar o uso mais intensivo do WhatsApp, e este, por incrível que pareça, pelo que percebo aumentou ainda mais depois das eleições. Mas eu acho que não se trata apenas de volume: é a qualidade da informação, o que ela mobiliza. Falo isso não em termos de credibilidade, mas em termos de que símbolos e estruturas de linguagem vão ser utilizados. E como. Pois até onde percebo a imprensa resolveu finalmente entrar de avalista do novo Governo, então o “normal anterior” pode se reestabelecer. Já a oposição…Cabe lembrar que o Decreto que mencionei acima vai visar também “ideologias” e “informações” passadas por redes sociais, portanto essas coisas (agora) terão um limite, que, diga-se de passagem, ficou como “promessa de campanha” do TSE.

 

[P] Jornalista da BBC Evan Davis diz que governos populistas (ele coloca Bolsonaro nessa categoria) tendem a perder influência na população se não apresentarem resultados no longo prazo. Numa eventual crise do governo Bolsonaro, o discurso “restaurador do poder” pode ser desestabilizado por maus resultados? Como pode ser descreditado?

[R] É simples, talvez aqui seja a única resposta mais direta que imagino entre tudo que você me perguntou. Enquanto o Governo continuar com o Judiciário e a grande imprensa colocando todos os problemas do Brasil na conta do PT, isso cria uma zona de conforto até para levar 4 anos cambaleando (como, aliás, foi o Governo Temer). Se no meio do processo o PT estiver liquidado pela via judicial ou jogado na clandestinidade, fica mais difícil sustentar, por exemplo, um fracasso na área econômica, ainda que o bode expiatório funcione por um tempo.

 


* Piero Camargo Leirner – Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Centro de Educação e Ciências Humanas (CECH). Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1991), mestrado em Ciência Social (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo (1995) e doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (2001). Atualmente é professor associado IV da Universidade Federal de São Carlos. Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em antropologia da guerra e em sistemas hierárquicos, atuando principalmente nos seguintes temas: hierarquia, individualismo, estado, guerra e militares. Desde 2013 também realiza pesquisa no alto rio Negro, sobre hierarquia em sistemas tukano (Fonte: Currículo Lattes).

 

[1] Para ler a matéria original, se você não for assinante do Le Monde Diplomatique Brasil, basta cadastrar-se no website e realizar login.

[2] Para descarregar e ler o relatório original de Christopher Paul e Miriam Mathews (versão PDF) que diz respeito à “interferência russa” na eleição norte-americana, intitulado The Russian “Firehose of Falsehood” Propaganda Model – Why It Might Work and Options to Counter It (“O modelo de propaganda russo ‘Mangueira de Falsidades’ – Por que pode funcionar e opções para contê-lo”), basta clicar aqui.

[3] O “Monstro do Estado Profundo”, em cartum de © Ben Garrison livremente inspirado na antítese do personagem de história em quadrinhos “Monstro do Pântano”, criação de Len Wein e Berni Wrightson para a editora norte-americana DC Comics (Vertigo), em 1971.

[4] Sob outra forma, o “complexo industrial-militar-financeiro mundial” pode inserir-se dentro da ideia do “globalismo” apresentada no gráfico abaixo. Para descarregar a imagem ampliada (formato PNG), clique aqui.

 

 

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