O fim há muito desejado do Ministério do Trabalho

Segue, abaixo, o resumo escrito do comentário do cientista político Felipe Quintas no Programa Duplo Expresso de 11/dez/2018, com o tema “O fim há muito desejado do Ministério do Trabalho”. O início da fala de Quintas já está marcado na janela de vídeo abaixo, bastando clicar play para inicia-la.

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O fim há muito desejado do Ministério do Trabalho

Por Felipe Maruf Quintas, para o Duplo Expresso

A extinção do Ministério do Trabalho, anunciada pelo presidente eleito Jair Bolsonaro, não significa apenas a hostilização ao fator trabalho em seu governo, já que, à exceção dos setores contemplados na tríade BBB – Boi, Bala e Bíblia – e Bancos, todos os demais também são combatidos. A extinção do ministério é ocasionada também pela falta de organização social, política e institucional para defendê-lo (ao contrário do Ministério do Meio Ambiente, defendido por ong’s ambientalistas patrocinadas pelo alto capital estrangeiro), o que por sua vez é a consequência de toda uma mobilização, pela direita e pela esquerda, contrária a ele desde que foi fundado em 1930 como Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, uma das primeiras medidas do governo revolucionário de Getúlio Vargas.

A criação desse ministério significou o reconhecimento institucional do trabalho como questão social e política, concernente à base material da sociedade nacional a ser desenvolvida em bases nacionalistas, resguardando a sua soberania e a fortalecendo pela inclusão dos trabalhadores no pacto sociopolítico e político-institucional então emergente. Através da liderança do governo em democratizar a representação social no âmago do Estado e, assim, ampliar a cidadania e o bem-estar dos operários, poderiam ser conciliados em um mesmo projeto nacional os setores sociais envolvidos na produção e distribuição de riquezas materiais, ou seja, os trabalhadores, industriais e comerciantes – nessa ordem, expressa no nome do ministério. Essa harmonização interclassista por vias institucionais significou, então, um movimento de desprivatização da sociedade, conferindo ao trabalho e aos trabalhadores um estatuto político de primeira grandeza, dotando o primeiro de caráter público e os segundos das condições de obterem uma dignidade básica em sua inserção na produção moderna.

Isso, evidentemente, contrariou os interesses oligárquicos estabelecidos na República Velha, cujo viés para o trabalho foi sintetizada por Washington Luís, último presidente dessa época: “a questão operária interessa mais à ordem pública que à ordem social”, ou, trocando em miúdos, “a questão social é um caso de polícia”. A reação contrária ao Ministério do Trabalho é radicalizada na revolta de 1932, que inicia então uma corrente política e ideológica “paulistocêntrica” (isto é, afim aos interesses da oligarquia paulista, sócia nº1 do imperialismo norte-atlântico no Brasil) que, com alas à direita e à esquerda, se empenha em desconstruir a Era Vargas para retomar o pacto oligárquico da República Velha em nome das “liberdades civis e democráticas” e do primado da “sociedade civil” pluralista e cosmopolita sobre o Estado, o Povo e a Nação. Um representante muito influente dessa corrente, o jurista Raymundo Faoro – parâmetro intelectual do pensamento uspiano, leitura de cabeceira de Luís Roberto Barroso e Olavo de Carvalho e que chegou a ser convidado por Lula para ser seu vice em 1989 – em seu livro Os Donos do Poder, afirma, sobre o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e as primeiras leis trabalhistas, que “sob a cor do amparo e proteção ao capital e ao trabalho […] o alvo seria o controle estatal, para a eventual direção, do industrial e do operário” (p. 719 da edição de 1975 da USP/Editora Globo), afirmando, logo depois, que a oficialização dos sindicatos transformava o sindicalista em “pelego, substituto urbano do coronel”. Ou seja, para Faoro, a ampliação da cidadania pela Revolução de 1930 não passou de um retrocesso patrimonialista que ampliou o poder pessoal do “populista” Getúlio Vargas e interrompeu – para lamento do autor – a “sampaulização” e a “ianquização” do país (nesses termos), em curso desde a 1ª Guerra Mundial e apoiadas por Washington Luís, presidente que o autor enaltece de cara lavada (p. 711-712). Em uma interpretação histórica bizarra, Vargas era visto por Faoro como uma continuação de Dom João I, rei de Portugal no século XIV. De maneira que deixaria horrorizado o sociólogo alemão Max Weber, ele falsifica o conceito de patrimonialismo para nele enquadrar qualquer ação estatal social e produtiva, como o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e as leis trabalhistas, fantasiando, por contraste, um capitalismo anglo-saxão formado no princípio de self-government e na autonomia das empresas e da sociedade ante o Estado, que supostamente existiria em São Paulo e teria sido sufocado por Vargas (capitalismo esse que, vale dizer, nunca existiu em lugar algum mas que serve para Faoro justificar o paulistocentrismo e seu anti-trabalhismo). Soma-se a isso a obsessão política explícita de FHC em por fim à Era Vargas, o que significa, entre outras coisas, acabar com o Ministério do Trabalho, uma das primeiras e principais realizações desse período. Além de, obviamente, toda a parafernália retórica politiqueira e pseudo-científica produzida pelo liberalismo brasileiro, de Eugenio Gudin a Paulo Guedes, demonizando o Estado social e desenvolvimentista cuja construção foi iniciada na Era Vargas, por esse não caber nos planos da oligarquia financeira norte-atlântica (a quem esses liberais servem) de espoliação da nação brasileira.

Assim, com Bolsonaro extinguindo o Ministério do Trabalho e realizando um projeto oligárquico de longa data, avança-se ainda mais no processo de demolição da Era Vargas e de restauração da República Velha em uma versão ainda mais financeirizada. Não à toa, boa parte das funções do ministério extinto passará ao Ministério da Economia e ao da Justiça. Ou seja, o Estado é reformulado para que o trabalho, base da produção da realidade material coletiva, fenômeno social por natureza, volte a ser submetido a relações econômicas, individualistas e aparentemente abstratas de “mercado”, de oferta e de procura, na prática definidas pelas decisões das grandes corporações capitalistas de dentro e, sobretudo, de fora do país. Pela privatização do fator trabalho, a sociedade passa a ser vista como uma empresa, voltada exclusivamente para o lucro, passando por cima da complexidade inerente à condição humana e às experiências nas quais as pessoas coexistem e modelam suas trajetórias de vida, irredutíveis à panaceia ultraliberal do “mercado”. Qualquer desvio desse modelo antissocial de sociedade, qualquer demanda que não se enquadre no poder político corporativo travestido de “racionalidade econômica”, será tratado no âmbito do Ministério da Justiça, ou seja, como questão de lei e de ordem. Em suma, a questão social volta a ser um caso de polícia, e Washington Luís, Raymundo Faoro e FHC, através de Bolsonaro, vingam-se de Getúlio Vargas. Bem vindos de volta à modernidade subdesenvolvida em estado puro.

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