A Reorganização do Estado Brasileiro (Parte IV)

Da Redação do Duplo Expresso,

Aqui, link para Parte III

Na sequência da série de seis artigos, escritos por Pedro Augusto Pinho, apresentamos neste de número quatro mais uma sugestão para a “Reorganização do Estado Brasileiro”. Você que acompanha estas publicações do Duplo Expresso sabe que estamos a oferecer elementos para um debate propositivo e que pode aprofundar a discussão em torno da atual estrutura do Estado para que possamos encontrar um modelo pensado coletivamente.

A educação, a comunicação social e a importância da consciência crítica do cidadão são partes inseparáveis deste artigo. Recomendamos a leitura atenta e o convite aos amigos que amam a democracia para que o debate seja ampliado. Boa leitura!

Por Pedro Augusto Pinho, para o Duplo Expresso

IV – A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA – FUNDAMENTO DA DEMOCRACIA

Não conheci partido político ou candidato que tivesse como projeto a construção da cidadania. A classe média, formadora em princípio destes partidos, origem da quase totalidade dos candidatos, tem medo do povo?

Remeto-me à obra do constitucionalista, professor na Faculdade de Direito de Heidelberg, Friedrich Müller (1938):

“Quem seria esse povo, que legitima ‘democraticamente’ o poder? Talvez se descubra no curso dessa indagação que não basta um documento invocar o povo; ou ainda, inversamente, que a descoberta sóbria de que o povo, com efeito, não exerce a dominação ainda não deve deslegitimar o poder” (“Quem é o povo? A questão fundamental da democracia”, Editora Revista dos Tribunais).

O povo cidadão, ouso responder ao mestre Friedrich Müller.

O conceito de cidadania variou, e muito, ao correr da história da humanidade. Para o filósofo grego Aristoteles (384 a.C.–322 a.C.), cidadão era o homem, de origem conhecida, com mulher, filhos e escravos que garantissem sua vida de guerreiro, dono das próprias armas, e suas propriedades. E por quantos séculos a expressão da cidadania esteve associada à propriedade?

James Harrington (1611–1677) enunciou que o poder, que resulta da propriedade, pode querer dizer que é a terra a base das armas e, as armas, a base da capacidade cívica, da virtude (in John Pocock, “Cidadania, Historiografia e Res Publica”, Almedina).

Em conhecida e respeitada obra: “Cidadania, Classe Social e Status” (Zahar) o sociólogo britânico Thomas H. Marshall (1893-1981) divide cidadania pelos “direitos conquistados”: os civis – a liberdade em face do Estado, no século XVIII –, os políticos – a participação na formação e decisão do Estado, no século XIX, com o voto – e os sociais – que chegam com as reivindicações do século XX, principalmente após a vitória comunista em 1918. Mas peca pela ausência da compreensão sistêmica. A soma de direitos conquistados não forma o todo do direito cidadão.

Alguém duvidaria que a extensão de direitos sociais, concedida pelo Governo Médici aos trabalhadores rurais, significou um reconhecimento daqueles direitos? No entanto poderíamos tratar tal decisão como aperfeiçoamento contínuo da cidadania?

Para Marshall, a cidadania é nacional por definição. Parece-me óbvio, tanto mais que a cidadania se rege por normas, produzidas por entendimentos oriundos de culturas circunscritas geograficamente.

Tanto Marshall quanto Reinhard Bendix (1916-1991) (“Construção Nacional e Cidadania”, EDUSP) tomam a Inglaterra como referência para suas análises de cidadania. Concluem que houve interesse das elites inglesas, por questão pragmática, de construir alguns consensos, uma espécie de “cidadania regulada” (expressão de Wanderley Guilherme dos Santos, “Cidadania e Justiça”, Campus) onde não se inclui a universalidade de direitos cidadãos.  Isto ocorre a partir do ideal de Estado-Nação, do lugar seguro onde vivem e também viverão seus descendentes; não lhes passa pela cabeça se retirarem do país, com seus bens e famílias, para os colocar em outro lugar.

“Cidadania é paridade”. Adoto o conceito da filósofa estadunidense Nancy Fraser (1947), enunciado em seu ensaio “Reconhecimento sem ética?” (traduzido em “Teoria Crítica no Século XXI”, Jessé Souza e Patrícia Mattos, org., Annablume).

É na cidadania onde todos são pares, iguais, “estão no mesmo nível que os outros, em pé de igualdade” (Fraser), que podemos encontrar a legítima  manifestação popular, o voto, a participação paritária.

A cidadania é um permanente projeto, uma construção do Estado Nacional Democrático. Apenas o Estado tem capacidade, competência institucional e possível interesse em manter tal projeto, ao longo de gerações.

De Fraser, Axel Honneth (1949), filósofo e sociólogo alemão, Charles Taylor (1931), filósofo canadense, e das obras fundamentais de Pierre Bourdieu (1930-2002), sociólogo francês, e Paulo Freire (1921-1997), pedagogo e filósofo brasileiro, me vali para estruturar os eixos da construção da cidadania.

Os eixos, que estão na origem das instituições da Vice-Presidência para Construção da Cidadania, são três: existência, consciência e vocalização. Eles, em conjunto, são os formadores da cidadania.

Existência

Talvez o mais simples de ser percebido e mesmo executado, se excluirmos os mesquinhos interesses políticos. Trata de dar vida digna à pessoa humana.

Fazem parte da esfera da existência: a renda mínima, a habitação em condições saudáveis (aqui já entra a questão ecológica, no saneamento), a assistência à saúde (preventiva e corretiva) e a mobilidade urbana.

A crítica direitista é do custo, do orçamento, que não é colocado quando se trata do pagamento exorbitante dos juros.

Façamos então, nesta fase das reflexões, algumas considerações sobre a questão tributária. O que ocorre atualmente? As grandes receitas tributárias vem da cobrança de impostos gerais, que atingem todos, ricos e pobres, grandes e miseráveis consumidores. Impostos diretos sobre propriedade, receitas, rendas são, quando incidentes, parcelas ridículas. Um iate, um helicóptero particular não são tributados como é um Fiat Uno. Uma propriedade de centenas de metros quadrados, quase certamente, paga menos IPTU do que um apartamento de 70 m² em bairro de classe média do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte.

A reforma tributária, que não aprofundarei nesta série, é também questão de soberania e cidadania.O que propugno é um destaque orçamentário – do modo que hoje se faz com “superavit primário” para pagamento de juros – que seja criado o “orçamento compulsório” para a existência, eixo da cidadania.

O “orçamento compulsório” incluiria o valor para renda mínima (Bolsa Família), para os projetos de saneamento público – fornecimento de água potável e construção de fossas e esgotos sanitários, assim como tratamento dos resíduos, dos lixos – para as edificações habitacionais, para efetiva universalização do Sistema Único de Saúde (SUS) e para gratuidade do transporte urbano.

Em princípio todos os programas seriam mais econômicos e melhor administrados se fossem de execução direta do Estado. Mas admitamos, de início, que parte deles seja executado por empresas privadas, escolhidas por concorrência verdadeiramente pública.

A Existência, como instituição vinculada à Vice-Presidência, congregaria a Saúde, a Habitação, o Saneamento, a Proteção Ambiental, o Transporte Urbano, e a Renda Mínima. Neste nível estas atividades serão desenvolvidas nas fases de pesquisa, estudos, planejamento, coordenação, orientação pois suas execuções estarão a cargo dos Municípios.

Tratemos, então dos Municípios.

Vimos que a área da Soberania Nacional se desenvolve em dois planos. No Governo Federal e nas Coordenações Regionais. A Construção da Cidadania estará afeta aos Municípios.

Esta é outra inovação organizacional. A União cuidando das áreas de pesquisa e desenvolvimento, planejamento, estudos, orientação, coordenação, controle, onde couber a auditoria, e as Coordenações Regionais, os Municípios e os Estados das operações, da execução dos programas e das atividades rotineiras.

A estrutura dos Municípios pode estar calcada nas funções. Neste eixo da Existência com Secretarias de Saúde, de Transporte Urbano, de Habitação, de Proteção Ambiental e Saneamento Urbano, de Assistência Social.

Com este eixo teríamos a pessoa sem dono, sem dever a ninguém a sua existência, com a liberdade física necessária à cidadania. Seria, finalmente, o fim da escravidão. Se dívida houver é com o coletivo do cidadão, o Estado Nacional.

Consciência

Tendo por base a educação para liberdade, estruturada de acordo com as especificidades municipais, voltadas para emancipação, para a consciência de si e dos outros, este eixo avança para as questões culturais e dos reconhecimentos.

Denominamos letramento, num sentido mais amplo do que da alfabetização do idioma, todo ensinamento a ser ministrado. As escolas municipais, num modelo parecido com os CIEPs de Darcy Ribeiro e Brizola, receberiam as crianças a partir de dois anos de idade e promoveriam todo tipo de letramento: idiomas, matemática, ciências (físicas, químicas, naturais), sociologia e política, economia, artes, música, esportes, educação moral e cívica, filosofia, manifestações culturais e, com a integração com as Forças Armadas, o treinamento para defesa da Pátria. Aos 16/18 anos, quando o jovem concluísse sua formação básica, seria um cidadão, com habilitação para o trabalho e consciência pessoal e social..

A ideologia totalitária da “escola sem partido” é, na verdade, a escola do partido único. Também a educação adestradora, que se limita a formar mão de obra para o capital, não é a formadora de cidadania.

Ao denominar Consciência entendemos que esta área da construção da cidadania ministrará saberes e os valorizará, explicitará gêneros e etnias e os respeitará, entenderá a necessidade cultural, afetiva e transcendente em cada ser humano e os colocará livres para agir e reconhecer idêntico direito aos outros.

Programas educacionais, culturais, de valorização nacional e de costumes regionais, são exemplos abrigados pelo orçamento da Consciência, que terá execução em todos os Municípios. Do ponto de vista organizacional uma Secretaria de Educação e Culturas poderia responder pelo encargo.

Fica evidente a necessidade permanente da discussão sobre a pedagogia e seus instrumentos para nos livrarmos dos cinco séculos de dominação por ideologias colonizadoras e vira-latismo. Nesta esfera libertaríamos os brasileiros da escravidão intelectual, do pensamento colonizado.

As despesas com o eixo da consciência também estariam no “orçamento compulsório”

Vocalização

Vocalização é a expressão de cada cidadão. Suas críticas, suas reivindicações, suas ideias, suas opiniões. É um diálogo dos cidadãos com as instituições e com seus pares. Vocalização exige hardware e software nacionais. Está intimamente vinculada ao projeto Soberania Nacional, sem o qual as Forças Armadas são meras forças repressoras de manifestações populares ou agentes policiais dos interesses do capital.

É impossível, não apenas para a vocalização, para construção da Cidadania, mas para a própria Soberania Nacional a existência de mídia privada, comercial, hegemônica; principalmente sob controle de seis famílias.

Poderemos ter alguns avanços, reduzindo a expressão monopolista da comunicação de massa. Minha proposta, nada original, é que tenhamos – com definição precisa dos limites de cada um – três níveis, também com os orçamentos compulsórios para dois deles, de comunicação de massa.

O nível da comunicação estatal, quer nacional, regional, estadual quer municipal. Assim a TV e/ou rádio e/ou jornal e/ou revista do Município de Petrópolis, do Estado do Acre, da Coordenação da Nordeste Meridional, da Assembleia do Estado do Piauí, do Congresso Nacional. Primordialmente estes veículos transmitirão notícias de interesse da população atingida e programas culturais.

O nível da comunicação pública, pelas redes públicas, com mesmos veículos da comunicação estatal, conforme foi constituída a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC). Os alcances e as sedes seriam definidos pelas demandas e condições de atendimento. As televisões e rádios comunitários estariam qualificados neste nível.

Mas o fundamental seria a introdução, pela disponibilidade de sistemas e equipamentos nacionais, da comunicação virtual em todo Brasil. O diálogo do cidadão com o Detran para solucionar uma questão de emplacamento; a reclamação da conta de água ou de energia,  cobrança de um voto do Vereador, do Deputado, enfim a conexão do cidadão com o País.

Como menor alcance, o nível da comunicação comercial. Sendo aplicadas as restrições que limitem o domínio, ainda que local, da comunicação de massa.

É um projeto onde a interseção das instituições avulta. Teríamos um País integrado por seus meios, seus recursos, suas instituições e não pelo capital.

Uma palavra sobre o legislativo municipal. Como o Município cuida do cidadão, serão as demandas da cidadania, suas disciplinas, suas prioridades as principais ocupações das Câmaras de Vereadores. Mas será também o local do surgimento das vocações políticas. Vejo aí o grande desafio dos vereadores. Penso até que, no Município, além dos seis partidos nacionais, poderia ser dada mais flexibilidade para questões muitas vezes cruciais, como as ambientais nos municípios amazonenses, constituírem partidos municipais.

Por fim, os limites dos municípios e seu número, para que pudessem realizar este trabalho fundamental da construção da cidadania, deveriam ser revistos. Suponho que um grupo de representantes do IBGE, do IPEA, da SUDENE, da SUDAM, da FGV, de institutos/departamentos de pesquisa social, econômica, demográfica associados a universidades seriam capazes de redimensionar e dar mais força política e econômica aos Municípios.

Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado

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Romulus Maya

Advogado internacionalista. 12 anos exilado do Brasil. Conta na SUÍÇA, sim, mas não numerada e sem numerário! Co-apresentador do @duploexpresso e blogueiro.

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