Trump, OTAN e a ‘agressão russa’

Da Redação do Duplo Expresso

13/8/2018, Pepe Escobar, Asia Times, em The Vineyard of the Saker

Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu


A guerra-relâmpago [orig. blitzkrieg] que o presidente dos EUA faz na reunião de cúpula em Bruxelas, ao dizer que a OTAN é obsoleta e que os estados-membros tratem de gastar mais e se autodefender, está correta.

A histeria está no auge. Depois da cúpula da OTAN em Bruxelas, a definitiva Decadência do Ocidente é favas contadas, enquanto o presidente Trump prepara-se para se reunir com o presidente Putin em Helsinki.

O próprio Trump estipulou que conversará com Putin com portas fechadas, cara a cara, sem assessores e, em teoria, com sinceridade, depois do que a reunião preparatória entre o secretário de Estado Mike Pompeo e o ministro de Relações Exteriores da Rússia Sergey Lavrov foi cancelada. A reunião acontecerá no Palácio Presidencial em Helsinki, construção do início do século 19 e ex-residência de imperadores russos.

Como preâmbulo para Helsinki, a espetacular guerra relâmpago de Trump contra a OTAN foi espetáculo que os séculos reverenciarão; sortimento variado de “líderes” em Bruxelas nem viram o trem que os atropelou. Trump sequer se deu o trabalho de chegar com pontualidade às sessões matinais que discutiram o possível ingresso de Ucrânia e Geórgia. Diplomatas confirmaram para Asia Times que, depois da tirada certeira do “paguem, senão…”, Ucrânia e Geórgia foram mandadas para fora da sala, porque a questão a ser discutida passava a ser questão estritamente interna da OTAN.

Antes da reunião, os eurocratas refestelaram-se carpindo interminavelmente a retomada do “iliberalismo”, de Viktor Orban na Hungria, ao Sultão Erdogan na Turquia, além de elaborarem o luto da “destruição da unidade europeia” (sim, sim, tudo culpa de Putin). Não Trump, que atropelou tudo isso. O presidente dos EUA vê União Europeia e OTAN como convergentes, e a União Europeia como rival, como a China, só que muito mais fraca. Quanto ao “acordo” de EUA e OTAN, como o NAFTA, é mau negócio.



A OTAN é ‘obsoleta’

Trump acerta ao dizer que, sem os EUA, a OTAN é “obsoleta” – no sentido de não existente. Assim, essencialmente, o que ele fez em Bruxelas expôs a nu a conversa oca de a OTAN ser algum tipo de rede de proteção. E pôs Washington na posição perfeita para subir os preços da tal dita “proteção”.

Mas “proteção” contra o quê?

Desde o desmembramento da Iugoslávia, quando a OTAN foi reposicionada para o novo papel de Robocop humanitário imperialista global, o currículo da aliança é absolutamente patético.

Lá se encontra continuar a perder miseravelmente uma guerra sem fim no Afeganistão contra um punhado de guerreiros pashtuns armados com Kalashnikov falsificadas; ter convertido a Líbia funcional e bem-sucedida numa terra de ninguém de milícias armadas e quartel-general para refugiados que a Europa rejeite; e ter conseguido fazer a OTAN-CCG [Conselho de Cooperação do Golfo] perder tudo que apostou numa galáxia de jihadistas e criptojihadistas na Síria, que o ocidente conhece como “rebeldes moderados”.

A OTAN lançou uma nova missão não de combate, mas de treinamento, no Iraque; 15 anos depois de Choque & Pavor, grupos sunitas, xiitas, iazidis e até curdos nem deram bola.

E tem também a Iniciativa Prontidão da OTAN; a capacidade, em 2020, para dispor 30 batalhões, 30 navios de combate e 30 esquadrilhas aéreas no período de 30 (ou menos dias), em qualquer ponto da Europa. Se não for para criar total caos em todo o sul global, espera-se que a tal iniciativa detenha a “agressão russa”.

Assim sendo, depois da Guerra Global ao Terror, a OTAN volta essencialmente a velha “ameaça” de sempre: a iminente invasão russa que destruirá a Europa Ocidental – e não pode haver noção mais cômica, em todos os tempos. Está tudo lá, na declaração final de Bruxelas, com ênfase nos itens 6 e 7.

Os PIBs somados de todos os membros da OTAN é 12 vezes maior que o da Rússia. A OTAN gasta, em defesa, seis vezes mais que a Rússia. Diferente do que prega a histeria non-stop de poloneses e bálticos, a Rússia não precisa “invadir” coisa alguma; o que preocupa o Kremlin, no longo prazo, é o bem-estar de russos étnicos que vivem nas repúblicas ex-soviéticas.

A Rússia não pode ser, ao mesmo tempo, ameaça e parceiro no fornecimento de energia

Vem então a política de energia da Europa – que é história completamente diferente.

Trump descreveu o gasoduto Ramo Norte 2 como “inapropriado”, mas é fácil desmentir o que ele diz sobre a Alemanha obter da Rússia (via importação de gás natural) 70% da energia que consome. A Alemanha obtém da Rússia, no máximo, 9% de sua energia. Em termos das fontes de energia da Alemanha, o gás natural não passa de 20%. E menos de 40% do gás natural na Alemanha vem da Rússia. A Alemanha está em transição rápida para fontes alternativas de energia, eólia, solar, biomassa e hidroenergia, que em 2018 alcançaram 41% do total. E o alvo é chegar a 50% em 2030.

Seja como for, Trump tem um ponto irrespondível, quando diz que “a Alemanha é país rico”. E quer saber por que os EUA teriam de “proteger vocês contra a Rússia“, se estão com vários negócios de energia em andamento? “Explique, se puder! Você não consegue! Não há como explicar isso!” – como circula que Trump teria dito ao secretário-geral da OTAN Jens Stoltenberg, na 4ª-feira.

No fim, claro, tudo é business, sempre business. O que Trump realmente quer é que a Alemanha passe a importar gás de xisto dos EUA, três vezes mais caro que o gás russo entregue por gasoduto.

O aspecto energia está diretamente ligado ao novelão infindável dos 2% do PIB para defesa. A Alemanha atualmente gasta na OTAN 1,2% do PIB. Até 2024, pode alcançar, no máximo, 1,5%. E pronto. A maioria dos eleitores alemães, na verdade, querem que os soldados norte-americanos saiam de lá.

Significa que a exigência de Trump, de gasto de 4% do PIB para defesa, para todos os membros da OTAN, jamais decolará. O chamariz de vendas tem de ser visto pelo que é: tentativa de “convidar” UE e OTAN para um surto reforçado de compras de equipamento militar norte-americano.

Em resumo, o fator chave é que a guerra-relâmpago de Trump em Bruxelas mostrou a que veio. A Rússia não pode ser simultaneamente “ameaça” e confiável parceiro fornecedor de energia. Por mais que os poodles da OTAN tremam de medo da “agressão russa”, os fatos indicam claramente que não porão dinheiro no mesmo local onde põem a histeria retórica.

Ouviram bem?

A “agressão russa” deve ser um dos principais itens discutidos em Helsinki. Na possibilidade – remota – de que Trump saia de lá com um acordo firmado com Putin, o absurdo da raison d’être da OTAN estará mais exposta e escancarada que nunca.

Mas não é a agenda do “estado-profundo” dos EUA, claro, daí a demonização 27 horas/dia, 7 dias/semana da reunião dos presidentes de EUA e Rússia mesmo antes de acontecer. Além disso, para Trump, do ponto de vista “Fazer a América Grande Outra Vez” desse homem da jogatina transacional, o resultado final ótimo seria conseguir mais e mais negócios de armas, na Europa, para o complexo industrial-militar-de inteligência.

Aterrorizados por Trump, diplomatas em Bruxelas ao longo dos últimos dias transmitiram ao jornal Asia Times seus temores relacionados ao fim da OTAN, da Organização Mundial do Comércio e até da União Europeia. Em todos os casos permanece o fato de que a Europa é absolutamente periferia do Grande Quadro.

Em seu novo livro Losing Military Supremacy, sensacional, um marco na análise dos anos que estamos vivendo, o analista militar-naval russo, e craque, Andrei Martyanov desconstrói detalhadamente o modo como “os EUA enfrentam duas superpotências nucleares e industriais: uma das quais conta com forças armadas de categoria mundial. Se a aliança militar-política, além de meramente econômica, entre Rússia e China for algum dia formalizada – estará decidido o fim dos EUA como potência global.”

O estado profundo nos EUA (os burocratas influentes a serviço do estado profundo) pode espernear o quanto queira em negação perpétua, mas Trump – depois de várias conversas a portas fechadas com Henry Kissinger – pode, sim, ter compreendido que a “estratégia” de Washington, de antagonizar simultaneamente Rússia e China, é suicidária.

O discurso histórico de Putin, de 1º de março, como Martyanov destaca, foi um esforço para “empurrar as elites norte-americanas, se não para a paz, pelo menos para algum tipo de sanidade, dado que hoje aquelas elites vivem completamente alienadas das realidades geopolíticas, militares e econômicas das novas recentemente emergentes configurações do poder do mundo”. As tais elites podem não estar ouvindo. Mas Trump parece indicar que sim, ele ouve bem.

Quanto aos poodles da OTAN, só lhes resta assistir calados.*******

 

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