A grande disputa geopolítica do século XXI: mobilidade, meio ambiente e inteligência artificial – Parte 4

Por Gustavo Galvão*, para o Duplo Expresso

Aqui, link para Parte 3

China começa a ameaçar o núcleo da indústria ocidental, a automobilística

Ninguém jamais ousou imaginar que o governo americano um dia estatizaria a General Motors – GM, como fez em 2009, qualquer que fosse a crise. Primeiramente, porque a GM foi durante a maior parte do século XX a maior empresa do mundo e orgulho do capitalismo americano. A gigante já passou incólume por muitas crises incluindo a grande depressão dos anos 30. Segundo, porque os EUA sempre foram os grandes defensores da livre iniciativa, das privatizações e combateram as estatizações em todo o mundo. Jamais alguém imaginou que o governo americano iria controlar uma empresa industrial. Isso é um abalo absolutamente inusitado em nossas crenças sobre economia e política.

Deixando de lado a questão ideológica, faz-se necessário avaliar o motivo dessa medida tão inesperada. Para tal, vamos buscar entender em que se baseia a riqueza de uma nação. A riqueza de uma nação é normalmente medida pela renda per capita. Dada a população, quanto mais alta a renda per capita, mais rico um país. Entretanto, uma elevada renda per capita significa também um grande consumo per capita.

Para sustentar muito consumo, é necessário muita produção e inevitavelmente muita importação, pois nenhum país pode ser auto-suficiente. As importações precisam ser pagas em moeda internacional. Se o país não emite moeda internacional, só pode obtê-la com exportações ou empréstimos. Como mostra a história brasileira e mundial, grande volume de dívida externa causa dependência e crises cambiaisᴵ. Portanto, uma grande nação precisa ter um elevado nível de exportações per capita e evitar que as importações per capita cresçam muito (Dos Santos, 2005)ᴵᴵ.

Nesse sentido, a importância do setor automobilístico no consumo, nas exportações e no desenvolvimento tecnológico pode explicar o cuidado dedicado pelo governo de Obama, que reelegeu a empresa como ‘Campeã Nacional’ e fez de tudo para garantir a continuidade operacional e mantê-la em mãos nacionaisᴵᴵᴵ.

Essa conclusão parece óbvia, mas não é isenta de polêmica. Os EUA já abriram mão de diversos setores, como têxtil, calçados e eletrônicos de consumo. Por que agora seria diferente?

Indústrias Centrais

O setor automobilístico pertence à metal-mecânica. Os setores metal-mecânico, químico e eletroeletrônico respondem por algo entre 55% e 75% das exportações dos países mais desenvolvidos e dos tigres asiáticos.

Chamo tais setores de Indústrias Centraisᴵᵛ. Segundo meus estudos, a metal-mecânica é o núcleo duro da indústria dos países mais desenvolvidos. Sua importância nas exportações mostra que esses setores são a base do poder e da riqueza dessas nações, pois são eles que permitem o equilíbrio em seus balanços de pagamentos apesar dos altos salários, impostos e lucros.

As Indústrias Centrais constituem a base das inovações e da competitividade dos países mais desenvolvidos. Para se ter apenas uma rápida dimensão, basta mencionar que quase 70% dos gastos globais em pesquisa e desenvolvimento (P&D)ᵛ e mais de dois terços das patentes industriaisᵛᴵ são feitos nesses três setores, que englobam por exemplo a indústria de defesa. Indústrias Centrais são sinônimo de desenvolvimento.

Entre elas, a metal-mecânica tem o maior peso, correspondendo entre 55% e 65% das exportações das Indústrias Centrais nesses países. A automobilística é o principal subsetor dentro da metal-mecânica, mais especificamente um terço das exportações mundiais desse setor. Um país grande não pode ter uma indústria metal-mecânica forte sem a indústria automobilística forte. O gráfico abaixo mostra o peso dessas indústrias nas exportações mundiais de manufaturados.

 

A Civilização do automóvel e a cidade moderna

Sabe-se que no século XX, a indústria automobilística foi uma das maiores difusoras do American way of life. Mas poucas pessoas têm consciência da importância do automóvel na conformação do mundo moderno.

Um breve histórico do papel dos veículos automotores pode ajudar a compreender porque os governos lhe dedicam tanto apoio. Uma das mais incríveis revoluções da modernidade foi a possibilidade da circulação irrestrita advinda dos veículos automotoresᵛᴵᴵ.

Essa invenção permitiu aos seres humanos ultrapassar os limites dos contatos sociais limitados às vizinhanças da urbe antiga, ou seja, a distância que se pode deslocar a pé ou a cavalo. Viagens a distâncias um pouco “maiores” – como 30 quilômetros de distância – precisavam ser feitas com escoltas de guardas privados, ou com disposição para se assumir todos os tipos de riscos em trilhas e estradas rurais, como por exemplo, problemas climáticos, impossibilidade de socorro médico, ausência de comunicação e principalmente a presença de salteadores, que abundavam. Além disso, as viagens poderiam durar dias ou meses. O custo do transporte humano ou de carga era enormeᵛᴵᴵᴵ.

O rompimento dessas limitações necessariamente exige o veículo individual para o exercício da liberdade de locomoção. A inexistência de opção individual de transporte condenaria a circulação apenas ao entorno das ferrovias, único meio de transporte terrestre de longa distância. Isso limitaria a própria modernidadeᴵˣ.

O automóvel e seus congêneres para cargas e passageiros revolucionaram a vida e a geografia do planeta. Permitiram a liberação da capacidade de auto-realização, expansão e experimentação individual e social dos humanos, foi altamente positiva, apesar de todas as contradições emergentesˣ.

O automóvel viabilizou uma grande e quase completa colonização humana do território habitável, unificou os continentes em grandes artérias para sua circulação e criou as megacidades mundiais. O mundo antes era algo inexpugnável, só acessível aos grandes aventureiros ou herdeiros de grandes fortunas. Hoje um cidadão médio pode experimentar praticamente qualquer lugar habitável, com conforto e segurança.

O século XX começou com a grande maioria da população morando em áreas rurais e terminou com a maioria morando em cidades, sendo que em muitos países mais de 90% dos cidadãos são urbanos. O que seria o mundo hoje sem as grandes cidades?

Todo o dinamismo da vida na cidade moderna, da economia baseada nos serviços e nas grandes empresas seria impossível sem o automóvel. As grandes empresas são a base do desenvolvimento tecnológico e da própria prosperidade moderna, pois, além das inovações, viabilizaram a imensa produtividade alcançada hoje pelo trabalho humano. Elas obtiveram isso em decorrência das enormes economias de escala e escopo na produção e no desenvolvimento de novos produtos que só podem ser obtidas em grandes concentrações de trabalhadores altamente qualificados dentro das empresas e em seus fornecedores próximos. Essas concentrações de trabalhadores especializados envolvidos em objetivos comuns só são possíveis em decorrência das grandes cidades. E eles só são facilmente disponíveis em grande quantidade em decorrência do automóvel e do ônibus, pois o transporte sobre trilhos tem uma extensão naturalmente limitadaˣᴵ.

Ao viabilizar a mobilidade a longa distância, o automóvel também permitiu a produção em massa de moradias sem uma conseqüente explosão dos preços dos terrenos, mantendo a renda fundiária urbana e os custos trabalhistas relativamente estáveis e viabilizando a expansão da larga estrutura econômica dos centros urbanos com aumento da qualidade de vidaˣᴵᴵ.

Os veículos automotores permitiram as grandes aglomerações humanas com muitos quilômetros quadrados de extensão e com uma área de influência muito maior capaz de abastecê-las de insumos e trabalho especializado. Isso sem falar na diversidade de formas de lazer, convívio social e cultura disponível a minutos de distância e que tornam a vida urbana não apenas minimamente agradável, como capaz de ser considerada pela maioria das pessoas como mais atraente do que a vida no campoˣᴵᴵᴵ.

A Redenção do Desenvolvimento

O automóvel é também a base da grande revolução industrial do século XX que é a indústria automobilística, do petróleo e todos os avanços tecnológicos decorrentes dessas indústrias. Boa parte do comércio e da inovação mundial se deve a elas. A Indústria automobilística sempre foi sinônimo de desenvolvimento, porque ela era o passaporte para as Indústrias Centrais em particular a metal-mecânica e a petroquímica.

Ter uma indústria automobilística em seu território foi um dos objetivos máximos dos grandes estadistas, como Juscelino Kubitschek. Mas os países melhor sucedidos foram aqueles que buscaram campeões com marcas nacionais.

O Japão e os grandes países europeus investiram muito pesadamente nos anos 50 para construírem suas campeãs nacionais de automóveis. Nos anos 70 e 80 foi a vez do governo coreano. Grandes marcas como a Kia e a Hyundai foram construídas com orientação e recursos do governo. Nos anos 90 os chineses começaram a investir em marcas nacionais, a maioria das quais de capital estatal. Hoje há centenas de marcas nacionais de veículos automotores na China. Até mesmo os indianos investiram em automóveis com marcas nacionais e que hoje acabaram se mostrando vencedoras no planetaˣᴵᵛ.

O salvamento do velho campeão

Esse é o cenário em que queremos analisar a decisão estratégica de Obama de estatizar a GM. Apesar de se manter até 2008 como a maior do mundo, ela nunca se recuperou plenamente da invasão japonesa. A proteção do Estado desde a década de 1980 e a corrida para copiar tudo o que podia do paradigma toyotista não salvou a empresa. Na década passada, achava-se que a GM estava cada vez mais robusta. Apesar do constante avanço da Toyota e da Honda, a GM também crescia e investia nas tecnologias mais modernas. Suas vendas EUA não estavam mal e nos emergentes crescia como nunca. Mas a crise mostrou que ela apenas sobrevivia.

Porém, isso ainda não explica a nacionalização da empresa. Compreendemos que os países em desenvolvimento consideram a indústria automobilística um passaporte para o Primeiro Mundo. Mas por que a principal potência industrial e tecnológica que domina indústrias e tecnologias muito mais vanguardistas que o automóvel?

Por que seria necessário ao Estado americano romper uma tradição de séculos e enveredar na produção de bens, quando se sabe que são estadunidenses a maioria das grandes empresas e de bilionários do planeta? Não seria mais fácil o governo induzir outras empresas a adquirir a GMˣᵛ?

Acreditamos que a solução estatal se deveu menos à crise do que a dois desafios que poderiam varrer a indústria automobilística tradicional e boa parte do setor metal-mecânico do território norte-americano.

O primeiro deles é a emergência da indústria metal-mecânica na China e Índia. A Toyota é um estilingue comparado ao canhão que representa o poder de destruição dos baixos custos de manufatura chineses e indianos. Os gráficos e tabelas abaixo mostram a crescente produção e poder competitivo dos chineses no setor automobilístico. Ela só está começando.

 

 

 

 

 

Fábricas de automóveis de passeio na China e a produção delas em 2014

Rank

Marca

Fabricante

Vendas em 2014

1

Volkswagen

FAW, Shanghai

2,710,504

2

Wuling

SAIC-GM-Wuling

1,404,797

3

Hyundai

Beijing

1,120,048

4

Changan

Changan

975,431

5

Toyota

FAW, GAC

956,282

6

Buick

Shanghai GM

917,017

7

Nissan

Dongfeng, Zhengzhou

859,490

8

Ford

Changan

801,603

9

Honda

GAC, Dongfeng

795,408

10

Chevrolet

Shanghai

767,001

11

Kia

Dongfeng Yueda

646,036

12

Dongfeng

Dongfeng

555,390

13

Audi

FAW

513,000

14

Chery

Chery

476,162

15

BYD

BYD

437,857

17

Geely

Geely

425,773

18

Peugeot

Dongfeng PSA

384,005

19

Citroen

Dongfeng PSA

320,011

20

BAIC

BAIC

299,184

21

Skoda

Shanghai Volkswagen

282,390

22

BMW

BMW Brilliance

278,195

23

Suzuki

Changan

263,232

24

Mazda

Changan, FAW

204,652

25

JAC

JAC

195,799

26

Great Wall

Great Wall

183,158

27

Baojun

SAIC-GM-Wuling

181,586

28

Haima

FAW Haima, Haima Car

180,843

29

Besturn

FAW Car

178,047

30

Lifan

Lifan

174,013

31

Zotye

Zotye

166,252

32

Mercedes -Benz

Beijing Benz, Fujian Benz

139,508

33

Zhonghua (Brilliance)

Brilliance

137,939

34

Roewe

SAIC

127,801

35

Trumpchi

GAC

116,758

36

Venucia

Dongfeng Nissan

114,035

37

Huansu

BAIC Yinxiang

84,696

38

Mitsubishi

GAC Mitsubishi, Soueast Mitsubishi

73,257

39

Fiat

GAC Fiat

68,090

40

Youngman Lotus

Youngman Lotus

64,311

41

JMC

JMC

60,857

42

Gonow

GAC Gonow

57,002

43

Soueast

Soueast

55,551

44

FAW

FAW Tianjin, FAW Jilin

53,894

45

Xiali

FAW Tianjin

53,857

46

Hawtai

Hawtai

53,017

47

MG

SAIC

52,217

48

Luxgen

Dongfeng Yulon

52,203

49

Cadillac

Shanghai GM

39,922

50

Volvo

Volvo Asia Pacific, Changan Ford

37,285

51

Citroen DS

Changan PSA

26,008

52

Changhe

Changhe

22,182

53

Changfeng

Changfeng

21,160

54

Jinbei

Brilliance

15,729

55

Yema

Sichuan Auto

12,326

56

Ciimo

Dongfeng Honda

11,014

57

Zhongxing

Zhongxing (ZXAUTO)

10,670

58

Beijing

BAW

9,884

59

Huanghai

Huanghai

7,616

60

Foton

Foton

7,197

61

Jonway

Jonway

7,106

62

Qoros

Qoros

6,967

63

BAIC Electric Vehicle

BAIC Electric Vehicle

5,234

64

Everus

GAC Honda

4,547

65

Oley

FAW Car

4,260

66

Maxus

SAIC Maxus

3,380

67

Infiniti

Dongfeng Infiniti

2,440

68

Hongqi (Red Flag)

FAW Car

2,341

69

Hafei

Hafei

1,971

70

Meiya

Tianjin Meiya

101

 

Notas

I Ver Bresser-Pereira, Luiz Carlos, Gala, Paulo (2007); Santos, Fabricio Marques (2008) e Santos, Antonio Tiago Loureiro Araújo dos; Lima, Gilberto Tadeu; Carvalho, Veridiana Ramos da Silva (2005) e Paulo Nogueira Batista Jr. (2002).

II Freitas, Fábio (2003).

III O Brasil tem o único Estado e elite política que não acredita em campeões nacionais. A Globo é a única campeã nacional permitida pela Miriam Leitão.

IV Dos Santos, Gustavo Antônio Galvão, Silva, José Francisco Sanches da, Medeiros, Rodrigo Loureiro, Barbosa, Eduardo Kaplan, Dos Santos, Bruno Galvão (2009).

V As solicitações de patentes são extremamente concentradas. Em 2001, França, Alemanha, Japão, Reino Unido e Estados Unidos respondiam por 83,6% de todas as famílias triádicas de patentes (registradas em simultâneo nos Estados Unidos, Europa e Japão).

VI O trabalho de Robson et al. (1988) identifica que um pequeno núcleo setorial concentrou aproximadamente 64% das inovações na indústria inglesa entre 1945 e 1983. Tais inovações demonstravam repercussão em quase todos os demais setores. Este núcleo, altamente inovativo, mantém forte correspondência com os setores baseados na ciência, sendo representado pelas indústrias química, mecânica, eletrônica e de instrumentos. Para Malerba e Orsenigo (1995), um inovador conta com uma maior oportunidade tecnológica quando registra uma maior facilidade de inovar a partir de uma mesma dedicação de recursos que, por sua vez, deriva do potencial de inovação da tecnologia que está sendo empregada. Segundo os mesmos autores, as maiores oportunidades tecnológicas são detectadas nos setores químicos, elétricos e eletrônicos. Segundo o excelente trabalho de Campos (2005) esse padrão também se mantém no caso brasileiro.

VII Giucci, Guillermo (2004).

VIII Sávio, Marco Antônio Cornacioni (2002).

IX Baseados em conversas com o economista do BNDES Eriksom Teixeira Lima.

X Não podemos esquecer que ele foi e é a principal força motriz de destruição ambiental nos últimos 100 anos

XI CUNHA, Maria Soares da; SILVA. Maria Geane Bezerra da (2007).

XII Abramo, Pedro (1995)

XIII Fani Ana Alessandri Carlos (2005)

XIV Propor uma marca nacional no Brasil é comprar uma briga definitiva com a Dona Miriam Leitão. Quem teria coragem para isso? Por enquanto, ninguém…

XV O maior mercado de capitais do planeta poderia reciclar as dívidas e absorver uma nova GM com uma recuperação judicial seguida com troca de controle e aumento de capital pela bolsa. Isso é uma operação corriqueira que acontece em todo lugar. Com juros tão baixos, isso não seria algo difícil, especialmente com os investidores conscientes de que teriam todo apoio do governo. De fato, havia muitos pretendentes ao valioso espólio da empresa que estava para ser vendido a preço de liquidação. A GM tem marcas, tecnologia, prestígio, sistemas de produção, logística, sistemas administrativos, fábricas que valem muito mais do que o valor de mercado vigente no início de 2009.

*Doutor em economia pela UFRJ, economista do BNDES licenciado, assessor parlamentar e comentarista do Duplo Expresso.

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