A salvação está nos abrigos nucleares

Por Carlos Krebs*, para o Duplo Expresso

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Durante a última semana conturbada no Brasil, em meio à combinação de cenas com caminhões enfileirados nas estradas e pessoas enfileiradas nos caixas de supermercados, assisti uma matéria interessante sobre um momento obscuro do período da Guerra Fria – o Project Iceworm (Projeto Minhoca de Gelo).

Com o pretexto de estabelecer uma base científica próxima ao Polo Ártico, o governo estadunidense estabeleceu um projeto de cooperação científica com o governo dinamarquês. Nesse acordo, os dinamarqueses ofereciam um local no território da Groenlândia, e os estadunidenses ofereciam… segredo!

Assim, os USA enviaram um Corpo de Engenheiros à Groenlândia para a construção de uma pequena cidade para 200 soldados sob o gelo, que seria chamada de Camp Century. Esta base contaria com hospital de campo, cinema, restaurante, capela e… sua própria usina nuclear. Apesar de realmente estabelecerem um núcleo para pesquisa polar e criarem o primeiro centro avançado para o estudo do clima no planeta, a “cidade sob o gelo” destinaria-se à armazenagem de até 600 mísseis nucleares. O real interesse dos USA estava na construção de locais de lançamento de mísseis de forma a obter uma posição mais segura no jogo de forças com a União Soviética. O U.S. Army planejava a instalação de uma rede de túneis no gelo interligando esses locais específicos de lançamentos, dentro de uma área de aproximadamente 13.500 Hectares.

Camp Century serviria como uma espécie de “almoxarifado da OTAN” (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Esse sistema de defesa coletiva fora estabelecido dez anos antes, após a II Grande Guerra. Começara como mera associação política, mas após a deflagração da Guerra da Coreia, consolidou uma estrutura militar de forma a integrar seus Estados-membros. O advento do Pacto de Varsóvia (1955) entre os países aliados da União Soviética ampliaria esta ideia de “escudo do Ocidente”.

Imagem 1: “Uma visão da rampa de acesso principal para o acampamento permanente Century Camp” por © Pictorial Parade_Archive Photos_Getty Images | Imagem 2: “Um transportador logístico de carga deixa suprimentos no Camp Century na Groenlândia em 1959″ por © Keystone Press Agency via ZUMA | Imagem 3: “Vista cortada da cidade sob o gelo” por CC Robert Magis para a National Geographic Magazine (mai/1962)  |  clique na imagem para acessar a revista com a matéria original.

Este projeto foi abandonado em 1967 porque observaram instabilidade  no local, e o risco de colapso no sistema de túneis, devido a movimentação do maciço gelado da Groenlândia. O U. S. Army deixou para trás 9.200 toneladas de material físico e 53.000 galões de diesel, além de resíduos radioativos e bifenilos policlorados (PCBs), que são toxinas presentes em tintas e vernizes causadoras de câncer. Hoje isso ainda está enterrado no gelo, mas com o fenômeno do aquecimento global, é provável que em menos de 100 anos – com maior derretimento de gelo derretendo do que neve caindo – isso esteja exposto ao meio ambiente. Uma sentença de morte por envenenamento em uma importante área de caça marinha para as comunidades Inuítes* da região.

Mas por que pensar nisso? O que uma base quase secreta de lançamento de mísseis, abandonada nos confins do planeta, tem a ver com o Brasil de hoje?

O mundo da época da Guerra Fria também proporcionava um interessante mercado de consumo baseado na “ameaça vermelha”. Dentro da mesma cultura que estimulava o abandono das cidades em direção às novas áreas suburbanas, crescia a oferta de abrigos nucleares. Eram habitáculos oferecidos por empresas quase artesanais, preparados para uma eventual hecatombe atômica, e projetados para adaptarem-se aos jardins e mobiliário dos quintais da classe média da época.

Sob o pretexto de que as cidades tornariam-se um amontoado de cinzas, o Escritório de Defesa Civil do Departamento de Defesa do governo estadunidense criado em 1950 oferecia material preparando os cidadãos para a eventualidade de um ataque. O “Family Shelter Series” (Série de Abrigos Familiares) pregava que essas construções seriam suficientemente seguras em caso de uma tragédia.

Imagem 1: “Can Russia Defeat Us With Atom Bombs?” (Pode a Russia derrotar-nos com bombas atômicas) por © Revista Modern Mechanics (fev/1950) | Imagem 2 “Capa sobre abrigos de aço para sobrevivência” por © Revista Life (set/1961), clique aqui para descarregar a carta do presidente Kennedy | Imagem 3: “You Can Survive Atomic Fallout” (Você pode sobreviver à radiação atômica) por © General Merchandise Co. (sem data) | Imagem 4: “Capa sobre orientações para abrigos coletivos” por © Revista Life (jan/1962)

A própria Revista Life publicara uma longa matéria sobre o assunto em setembro de 1961. Como abertura, havia um chamamento do presidente Kennedy incentivando aos cidadãos estadunidenses que instalassem esses abrigos. Lembrando que em abril daquele ano, os Estados Unidos tiveram frustrada a invasão patrocinada de Cuba – o episódio da Baía dos Porcos, e em 1962 envolveram-se na Crise dos Mísseis com a União Soviética como consequência disso.

Imagem com legenda de uma “trincheira doméstica”, recortada de página dupla em  © Popular Science (mar/1951) – clique na imagem para acessar a revista com a matéria original.

É óbvio que aquelas estruturas subterrâneas seriam pouco melhor que nada no caso de um ataque atômico. Mas não seria isso que a Guerra Fria oferecia? Uma mescla de percepção e erro. A mentira era justamente aquilo que muitas pessoas de então estavam mais do que felizes em acreditar.

A facilidade para que se encontre a informação hoje em dia permite a percepção da nova modalidade de exploração do medo. É assim que se pode entender como hoje em dia isso é manipulado no seio direito da sociedade brasileira através da Guerra Híbrida. Para essa parcela intoxicada, aliás, eis um nicho alternativo de mercado, perfeito para as dezenas de milhares de engenheiros (e arquitetos) que perderam seus empregos pelo desmonte do setor da construção civil no país. Poderão buscar inspiração na empresa Underground Shelters, que ainda hoje oferece a construção de abrigos garantidos contra o pulso térmico, a radiação inicial, precipitação radioativa, explosão e pulso eletromagnético.

 

O real, o simbólico e o imaginário

Há um filósofo e crítico social esloveno chamado Slavoj Žižek*** (pronuncia-se “Zla-vói Gi-gek”). Ele é nascido na capital eslovena Ljubljana (que pertencia à antiga Iuguslávia) em 1949. Hoje ele é tido como o “Elvis Presley da Filosofia” – certamente não pelo seu inglês, ou pelo movimento de quadris. Seu mérito está em comunicar seu pensamento de forma muito acessível a quem assiste suas apresentações. Dentre os temas recorrentes que aborda, há a discussão sobre o real, o simbólico e o imaginário.

O real não é a “realidade”. Nossa realidade estaria baseada em interpretações, em simbologias. O real não poderia ser simbolizado, não haveria palavras para isso. Então, a realidade que vivemos é uma ficção – uma visão parcial, uma visão limitada (ou de-limitada) do real.

O simbólico vem da linguagem (falada ou expressa pelo comportamento). Por exemplo, para ele, Temer seria presidente apenas porque existe gente que se comporta como se ele fosse. É uma imposição de leis e regras. Nesse caso, a questão é que há alguns com muito mais poder para essa “falsa representação da realidade” que a maioria da população brasileira.

O imaginário é quase o simbólico, mas ao invés de tratar da estrutura (leis e regras), ele trabalha com as sensações e memórias (visão, audição, olfato, tato ou gosto). Dessa forma, deve-se admitir Lula como “o” ícone político nacional. Somente ele transita no imaginário de TODOS os brasileiros, mesmo com significações distintas: desde o maior ladrão do mundo, até o maior líder da nossa história.

imagem esq: “Supermercado em Porto Alegre com as Prateleiras Vazias” por © Davi Magalhães (2018)  | Imagem dir: “Abastecimento de combustível no Distrito Federal começa a normalizar-se” por CC Marcello Casal Jr/Agência Brasil (2018)

Por isso não interessa o lado com que se enxerga, entende-se, ou sente-se ele. A sua força irrefutável está justamente em povoar não o simbólico, mas sim o imaginário do povo brasileiro. De todo o povo. De qualquer habitante do país, desde aquele que sobrevive na área mais remota da Amazônia alagadiça, até o hedonista que sonha com a paz e segurança de seu abrigo nuclear entupido por rolos e rolos e rolos de papel higiênico****.

Temos um grave problema. E ele se vincula a esta dificuldade de entender a diferença entre o simbólico e o imaginário. Quando professores reivindicam melhores condições de trabalho e salários mais justos, uma parte barulhenta da sociedade manifesta repúdio, recrimina os trabalhadores chamando-os de baderneiros, e pede intervenção militar. Quando caminhoneiros – incitados por seus empregadores – reivindicam melhores condições de trabalho e salários mais justos, a mesma parte barulhenta da sociedade manifesta apoio e simpatia, se vê espelhada em sua pauta, e pede intervenção militar.

Afinal, parece que para as pessoas dessa parte da sociedade, em vez de cérebro, há um tanque de gasolina verde-oliva na cabeça…

 


* Carlos Krebs é arquiteto, cinéfilo, explorador de sinapses, conector de pontinhos, e mais um que acredita que o Brasil ainda tem tudo para dar certo.

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* Para saber mais sobre os Inuítes da Groenlândia, acesse aqui.

**  Como curiosidade, segundo matéria publicada em novembro de 2017 pelo Washington Post, a “Suécia tem 65 mil abrigos nucleares, o que daria espaço para até 7 milhões de pessoas, mas isso deixa cerca de 3 milhões de habitantes sem proteção.” Estas obras de proteção foram financiadas com dinheiro público. Em contraste, na “Suíça todas as casas acima de uma certa área devem incluir abrigos no porão, colocando o ônus financeiro sobre os próprios cidadãos. A legislação foi abolida em 2011 pelo parlamento suíço, mas reintroduzida meses depois do acidente nuclear de Fukushima no Japão”, ocorrido em março de 2011.

*** Há um vídeo aqui onde Slavoj Žižek conta (em inglês-esloveno) um breve “causo” sobre papel higiênico.

**** Sobre o uso de papel higiênico no Brasil, com base em uma relação de que cada rolo tenha 70g, em 1997 (segundo mandato de FFHH), consumiam-se 3,50kg/hab/ano – ou 50 rolos de papel para cada brasileiro. Segundo dados divulgados pelo BNDES em 2008, cada brasileiro passara a consumir 4kg por ano – ou 57 rolos de papel por brasileiro. Em 2017, segundo dados da indústria de papel sanitário, atingiu-se 5,4kg/hab/ano – ou 77 rolos de papel por brasileiro. Se fôssemos cachorros, isso equivaleria a arrastar a bunda no chão para limpá-la por quase uma milha por ano… Para efeitos de comparação, os estadunidenses estão consumindo 25kg/hab/ano e não fazem filas para isso.

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