Geopolítica no Séc. XX: a civilização do automóvel (a gasolina!)

Por Gustavo Galvão,[1] para o Duplo Expresso

A grande disputa geopolítica do século XXI: mobilidade, meio ambiente e inteligência artificial – série em 3 partes

Parte 1: A grande disputa do século XX

Sumário

O controle e a acesso às revoluções tecnológicas e logísticas costuma determinar os países vencedores da disputa hegemônica militar, econômica e política global.

Está iniciando a decadência da civilização do automóvel a gasolina, que há 100 anos levou os EUA à hegemonia do poder mundial. As guerras e disputas geopolíticas normalmente apenas corroboram a posição dos vencedores da disputa geoeconômica e tecnológica.

A civilização do petróleo e do automóvel que produziu a incrível prosperidade material que presenciamos nos últimos 100 anos está entrando no seu fim por razões geopolíticas, ambientais, sociais e tecnológicas. Em seu lugar será colocada a economia de baixo carbono que é uma combinação de produção de energia elétrica de baixo carbono, com carros elétricos autômatos e mobilidade integrada com inteligência artificial. Essa revolução não apenas mudará todo o balanço econômico da energia no mundo, mas mudará todo padrão urbanístico, profissional, cultural, de lazer das sociedades modernas.

A mobilidade e o uso de energia pelas cidades serão geridos de forma integrada como seres vivos inteligentes de forma a otimizar os mais diversos tipos de recursos em prol da qualidade de vida urbana. Isso significa que as diversas formas de liberalismo econômico na gestão das cidades perderão muito espaço nas cidades e países que desejem estar no topo da competitividade, conhecimento e do poder. Abrir mão das cidades inteligentes e da produção de hardware e software para elas será como abrir mão das estradas, das refinarias e das fabricas de automóveis em meados do século passado, ou seja, será como optar pela pobreza e falta de soberania.

E a China é o país que tem mais potencial para se apropriar dessa revolução, destruindo as esperanças dos EUA de manter sua hegemonia econômica.

 

Por outro lado, isso poderá significar (1) um maior risco de se consolidar sociedades totalitárias em razão dos inúmeros tipos de controle e disciplina que devem ser implantados em nome da gestão inteligente das cidades e (2) um fosso ainda maior entre as economias industrializadas e não industrializadas.

História da Revolução industrial e logística

A revolução industrial colocou a minúscula Inglaterra no centro do universo, dominando diretamente metade do Planeta com mão de ferro. Isso tanto na primeira fase, têxtil e máquina a vapor, quanto a segunda, trem e navio a vapor.

Na primeira fase da segunda revolução industrial EUA e Alemanha desbancaram economicamente a Inglaterra ao dominar as indústrias de equipamentos elétricos, veículos automotores, automação e maquinaria, mecânica fina, indústria química e farmacêutica.

O impacto da difusão dos produtos da segunda revolução industrial mudou a humanidade e o Planeta da forma mais rápida na História. A eletricidade mudou completamente a vida das pessoas e permitiu universalizar serviços fundamentais como água e saneamento encanados. Essas tecnologias, mais os veículos automotores, permitiram que as cidades pudessem ser muito maiores sem que a logística de abastecimento de meios básicos de sobrevivência, como alimentos frescos e água, assim como mobilidade e segurança se tornassem inviáveis. E as cidades precisavam ser cada vez maiores para abrigar os trabalhadores de fábricas cada vez maiores e mais aglomeradas em complexas cadeias produtivas e principalmente a extensa rede de serviços que a economia e o homem moderno demandavam.

A segunda fase da segunda revolução industrial, que podemos chamar de fordismo, foi definitivamente dominada pelos EUA. O fordismo inventou produção e adoção em massa a custo acessível de um conjunto de tecnologias derivadas da primeira fase da revolução industrial. Estamos falando dos eletrodomésticos, o rádio, o cinema, a televisão, o automóvel e a super-urbanização, o domínio do setor terciário e, consequentemente, a libertação da mulher e a consequente ampliação da força de trabalho voltada para produção de excedente.

 

A água encanada, os eletrodomésticos, os serviços públicos de saúde e educação, o telefone, o automóvel, o avião, a propaganda e a destruição de velhas tradições através das comunicações em massa foram fundamentais para aumentar a oferta de serviços que antes eram responsabilidade quase exclusiva das mulheres, como cozinhar e servir alimentos, cuidar e educar as crianças, fazer e consertar as roupas, limpar e conservar a casa, produzir, estocar e conservar alimentos processados, cuidar da higiene e da saúde da família, manter o seu equilíbrio emocional e suas relações sociais fundamentais, etc.

 

Os EUA aproveitaram essas tecnologias e revoluções em grande escala mais do que qualquer outro país em razão, principalmente, da produção barata de automóveis em grande escala e da sua capacidade de pagar salários suficientes para viabilizar a aquisição deste produto pelo cidadão comum. Os serviços são supridos na maior parte através do deslocamento que viabilize a presença física do consumidor ou ofertante. Assim, os automóveis permitiram que as empresas privadas e públicas de serviço pudessem ampliar para muitas dezenas de quilômetros quadrados sua área de alcance (ou de mercado), permitindo que se organizassem em escala muito maior e mais eficiente, barateassem muito seu preço, além de criar uma infinidade de novos serviços.

As Autobahn de Hitler
Copiando o modelo alemão das Autobahn públicas alemãs criadas com enorme sucesso pelo governo nazista nos anos 30, os EUA depois da Guerra ligam todas suas grandes cidades com estradas duplicadas. Isso foi fundamental para um dos atributos mais fundamentais da revolução fordista americana e do chamado american way of life: a produção de terrenos urbanos baratos em massa através da popularização do automóvel.

 

A massificação das estradas duplicadas, ampliou em dezenas de quilômetros a distância máxima aceitável de residência pelo trabalhador auto-motorizado, permitindo que fazendas se transformassem em loteamentos e em áreas urbanas. Isso permitiu que o trabalhador médio americano pudesse ter além do carro, uma casa grande como a de um rico da geração anterior à dele, e, ainda por cima, cheia de eletrodomésticos modernos.

A construção de milhões de moradias suburbanas espaçosas foi o principal motor do crescimento americano por décadas. Era um círculo virtuoso de crescimento que começava com a construção de estradas e infraestrutura urbana, loteamento das fazendas, construção de moradias, indústria de material de construção, aquisição de automóveis e eletrodomésticos, indústria de bens duráveis, indústrias pesadas e de petróleo e finalmente a grande ampliação da oferta de serviços privados e públicos.

Esse modelo foi copiado em diversos países com maior ou menor grau de sucesso, mas nenhum país conseguiu escapar. Quem adotou com mais lentidão acabou ficando muito mais pobre. É importante frisar que a adoção inevitável desse modelo de consumo e urbanização tornou diversos países dependentes de petróleo, tecnologia e produção estrangeira, levando a diversos tipos de crises econômicas. Por isso, a grande luta das políticas de desenvolvimento do século XX foi a autonomia sobre a indústria petrolífera e automobilística. Poucos países como Japão e Alemanha conseguiram escapar do atraso exatamente se tornando exímios produtores e exportadores de automóveis.

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  1. Doutor em economia pela UFRJ, economista do BNDES licenciado, assessor parlamentar e comentarista do Duplo Expresso.

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Romulus Maya

Advogado internacionalista. 12 anos exilado do Brasil. Conta na SUÍÇA, sim, mas não numerada e sem numerário! Co-apresentador do @duploexpresso e blogueiro.

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