Os Conceitos de Fulanização e Coitadismo na Política Brasileira

Por Niobe Cunha para o Duplo Expresso

 

Apesar de sermos o país do samba, somos secretamente chegados a um tango, uma ópera bufa. Gostamos dos heróis trágicos e de seu percurso dramático. O herói é aquele ser iluminado que um dia virá pra nos salvar dos bandidos maus. Isso hoje está bem popularizado nas longas novelas em que o bem sempre é tolo, fala coisas sem certificar-se de que não tem ninguém ouvindo atrás da porta, mostra-se ingênuo diante do malandro manipulador e entrega suas estratégias e desejos com a pureza do sabão que lava mais branco.

Para alimentar os capítulos entremeados da venda de detergentes, liquidação de supermercado, e tantas quinquilharias, cria-se um calvário ao heróis. Passam meses em sofrimento, perdas, traições, desvios, derrotas. Quando o público começa a se exaurir, deus ex machina*: “Paulo Roberto! A sua mãe na verdade é sua irmã, que fugiu com seu melhor amigo na infância, mas agora voltou arrependida”. Fecham-se as cortinas, vende-se mais um creme rejuvenescedor enquanto o público mastiga um bocado de alguma coisa antes de dormir até o próximo capítulo revelador.

Assim estamos. Exaustos e perdidos, outorgamos aos outros as responsabilidades das nossas vidas. Nosso herói, o fulano, há de nos salvar das maldades do bandido. E para ser nosso herói, latino, tem que necessariamente passar pelo calvário dos sacrifícios (feito em nosso nome), enquanto mastigamos o pão murcho sem nos darmos conta de que essa farsa não tem gosto algum. A manteiga está rançosa. Nos perdemos nos intervalos comprando o último modelo de celular porque, de alguma forma, sabemos que aquele ser imolado em sacrifício, vencerá a batalha por nós.

Engraçado que me dei conta que sempre faço um paralelo com o cristianismo e o conceito de sacrifício. De como a gente deturpou o conceito de amor pelo próximo como a ti mesmo, para uma coisa do tipo sofra agora e herde o reino dos céus amanhã”.

Tive uma terapeuta que sempre me dizia que as pessoas só se lembravam de Jesus sofrendo na cruz, se esqueciam dele enfurecido com a venda de badulaques na porta do templo, dele comendo o pão, bebendo o vinho e dançando alegre com os discípulos, dele enternecido pelo sofrimento de Madalena. Não sou teóloga nem religiosa, embora esse tema me seja recorrente. Talvez porque seja tão representativo na sociedade ocidental. Estranhamente nunca senti essa presença ameaçadora de um deus desumano, que nos valoriza quanto mais a gente sofre, que se regozija com figuras atormentadas arrastando-se com o mundo nas costas ladeira acima.

Temos essa desculpa de culpar alguém pelas nossas desventuras: os militares, o governo, os políticos, a mãe freudiana, a dor de cabeça, o patrão, o partido. Assim, nos sentimos reféns e pobres vítimas de um futuro que se impõe completamente alheio aos nossos movimentos. Nós – os coitados – herdaremos alguma coisa nessa bagaceira, só pode ser esse nosso destino.

Colocamos uma culpa qualquer em alguém qualquer, e assim fulanizamos nosso destino incerto. Até o fim repetimos o mantra de que “tudo irá dar certo; se ainda não deu é porque não chegou ao fim” como nos best-sellers de autoajuda, nós – os coitados. Assim fica fácil assistir o mundo desmoronando na nossa cabeça: “aguenta firme, ainda não é o fim, lembre-se!” Nossos fulanos-heróis sendo desmembrados fibra por fibra em praça pública, em nome de nossa suposta salvação. Saiba: “ainda não chegamos ao fundo do poço; confia nas instituições!” Oferecemos nossas esperanças em troca daquela cena tocante de entrega – do outro, é claro – e desprendimento em nome do bem maior: “um dia a história há de nos redimir“.

Chega desse dramalhão mexicano! Os atores principais somos nós, e ainda não nos demos conta. Viajamos na maionese que sorteia um carro por semana, durante o intervalo, enquanto achamos que vivemos um script alheio, sem nossa ingerência.

Não dou a ninguém uma procuração para entregar o país ou minha história a um roteiro mambembe, mal escrito, cheio de lacunas e personagens bufões ou canastrões. Se a novela chega ao fim, outra se inicia e ninguém quer assistir mais essa dramaturgia previsível. Hora de assumir o roteiro, escrever muitas laudas, enfrentar os bandidos, desmascará-los não em postagens e comentários nas redes sociais, mas em horário nobre. Somos os atores e espectadores. Se a coisa vai mal, não temos que dar audiência. Danem-se o lançamento do carro mais-mais, ou a operadora que me dá mais minutos e me cobra as calças.

Não existe revelação no final: “Paulo Roberto, eu sou sua mãe“. Cai o pano. Entra o comercial. Estamos assinando como autores nosso próprio teatro do absurdo. Esse pastelão tem nossas digitais, mas não desligue ainda. Podemos reescrevê-lo.

 

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* Deus ex machina é a expressão latina para “Deus surgido da máquina”. Isso refere-se uma solução inverossímil, inesperada e completamente fantasiosa dentro do enredo para concluir uma história de ficção. Esse termo surgiu no teatro grego quando, fazendo uso de metáforas, um deus descia no palco (trazido por um guindaste) para oferecer uma revelação completamente fora da lógica do que fora contado até ali.

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