Cidades Invisíveis, Passagens Secretas, Tribunais Medievais

Por Carlos Krebs*, para o Duplo Expresso

Ordália é uma prática da Idade Média onde submetia-se o acusado pela prática de um crime a um desafio por uma força da natureza. Assim, para afirmar sua inocência, ele passava por uma prova envolvendo dor ou perigo – andar sobre uma trilha em brasa, mergulhar a mão em água fervente, submergir o corpo em uma fonte d’água quase congelante. Se inocente, o juízo de Deus (judicium Dei) intercederia como se um milagre ocorresse; se culpado, as consequências e aflições já estavam impostas pela força suprema.

“Austrian National Library” por Stefan Steinbauer | Wien AUT (2017), sob licença Creative Commons

 

Minha memória mais antiga envolvendo Arquitetura talvez seja a compulsão por desenhar passagens secretas. Elas estavam presentes em uma série de desenhos, filmes de suspense, livros de mistério. Ainda criança, apaixonei-me pela ideia de fazer projetos delas nos cantos de cadernos.

Aqueles quadros enormes de pessoas com os olhos removíveis, onde no corredor detrás da parede podia observar-se quem estava na sala. Uma estante repleta de livros em que, puxando-se um, uma passagem era aberta. A tocha em um túnel, que acionada como alavanca, permitia um desvio no caminho. Escadas secretas sob o piso, acessos a cavernas dezenas de metros abaixo de castelos e mansões.

O fascínio estava muito longe da existência física destes lugares. O que desejava era a possibilidade de driblar o previsível. Sonhava com o escape da realidade, a insubordinação com as regras da vida.

Mas a gente cresce, a razão pisa firme sobre as fantasias da infância e sobra pouco espaço para sair da linha. Quando cheguei na Faculdade de Arquitetura e, de repente, ganhei a oportunidade de ler um manual inteirinho de passagens secretas: “As Cidades Invisíveis“, de Ítalo Calvino (1972).

Este escritor cubano/italiano fez uso do mítico comerciante e explorador veneziano Marco Polo como um contador de histórias descrevendo cidades que jamais encontraríamos em um mapa convencional. Com um registro peculiar, seu narrador percorre o vasto império de Kublai Khan – o Rei dos Tártaros – até a corte na atual Beijing, capital da China. Ao mesmo tempo que dominava a imensidão da Ásia, o imperador era recluso na sua cidade. A visão de seus domínios vinha do olhar de muitos correspondentes espalhados. E todos estes falavam de cidades como nós estamos habituados a ouvir: localização, geografia, etnia, atividades, interesses, linhas cruzadas.

“O Grande Khan possui um atlas em que estão reunidos os mapas de todas as cidades: as que repousam as suas muralhas sobre bases sólidas, as que caíram em ruínas e foram tragadas pela areia, as que existirão um dia e em cujos lugares hoje não há nada além de tocas de lebres.”

Menos Marco Polo. Ele prendia a atenção do rei porque suas cidades fantásticas não poderiam ser localizadas, assinaladas, povoadas. Elas estiveram lá ao longo da sua passagem, mas não existiriam senão pelo seu testemunho. Sua descrição de 55 cidades usa como mapa, como cartografia da narrativa, elementos etéreos como a memória, o desejo, a visão, o contínuo ou o oculto.

São essas passagens secretas que levavam o rei mongol da dinastia Yuan para muito além de seus muros. Ou trouxeram para sua corte a riqueza que nenhum coletor de impostos seria capaz de oferecer. A simbologia para a abstração, o afeto e o amor que devemos perceber sempre ao percorremos nossa trilha. Ao menos este foi o acionamento secreto que me permiti ao folhear cada página do livro.

E como seria a Porto Alegre se cada um dos brasileiros que presenciaram in loco o julgamento do ex-presidente na semana passada tivesse um rei a corresponder? O que eles teriam a dizer de lá? Será que o lugar da véspera era o mesmo da lembrança do dia? Como os olhos da legalidade poderiam perder-se do calendário, dos nomes, da folha timbrada? Como destacavam-se em nomes e olhos?

A minha Porto Alegre seria como a delgada Sophronia de Calvino, a cidade dividida em duas. Uma metade que sempre esteve lá, no conjunto de prédios do Alto da Bronze, no granito da Catedral e na estatuária dos cemitérios, nos vidros dos poderes públicos, desde muito antes das gentes ocuparem estes lugares. E a outra metade, aquela do monta e desmonta. A construída na memória do mais lindo pôr-do-sol , a dos vendedores de algodão doce cor-de-rosa-e-azul-anil no Parque da Redenção, a de um espetáculo na beira do rio.

“Cidade de Sophronia” (esq) pelo arquiteto © David Fleck SCO (2015), da série ilustrada de “Invisible Cities” e “Cidade de Zária” (dir) pela arquiteta © Karina Puente Frantzen, PER (2016), de seu projeto pessoal de ilustrar todas as cidades do livro

 

Uma parte que é o muro do Cais e os frontões neoclássicos, e a outra que dura o tempo de um Gre-Nal e depois vai embora. E como seria a sua descrição? Como seria a Porto Alegre de você que observou pela janela permitida nas imagens da televisão ou internet? Você que transpôs o país e ficou algumas horas encaixotado naquele julgamento, o que viu ou descreve?

No final da Antiguidade o Direito Romano estava consolidado, e era ponto comum a necessidade da apresentação de provas ao se acusar alguém por um crime. Mas, de repente, por um lapso-tempo, fomos jogados em uma corte da Idade Média. Assistimos – em silêncio perplexo – uma tríade empilhar palavras e frases e elegias e odaras ao republicanismo jurídico nacional.

Um discurso monocórdio que distorceu tanto a palavra para ela tornar-se prova, que isso passou a ser a verdadeira ordália: somente uma intervenção clara da manifestação divina – um raio fulminante, ou uma profusão de bolinhas de gude na boca dos julgadores – seria capaz de inocentar Lula.

Ilustração de “A King Dictating The Law” (esq) e detalhe da página no The British Library | London GBR (entre1275 e 1325), sob licença Creative Commons

 

Lançando mão de realmente avaliarem o caso sob a luz da técnica penal, o que tinha nome de julgamento transformou-se em comício político sobre uma sentença-decreto. Uma sentença com fundo falso. A ratificação do lugar-comum dos corredores da República, onde a cada tanto corta-se a cabeça do povo para deixar claro: as instituições não estão ali para funcionar, apenas para garantir o sistema. O rito, as togas e o extrapolar da Carta Magna são apenas o loteamento de um lugar invisível dentro do mapa das cidades contínuas. A das torres de plumas, que se erguem tocando nuvens para que o vento lhes desmanchem. Pensamos que suas ruas e meandros estão lá, mas desaparecem ao menor sinal da verdade.

Ingenuidade a minha pensar que as cidades possam ser justas quando sentimos temor naquilo que deveríamos depositar respeito. Para projetar passagens secretas eu deveria ter estudado o Direito, não Arquitetura!

 


* Carlos Krebs é arquiteto, cinéfilo, explorador de sinapses, conector de pontinhos, e mais um que acredita que o Brasil ainda tem tudo para dar certo.

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Romulus Maya

Advogado internacionalista. 12 anos exilado do Brasil. Conta na SUÍÇA, sim, mas não numerada e sem numerário! Co-apresentador do @duploexpresso e blogueiro.

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