A “Revolta da vacina” pós-moderna
Por Luiz Carlos de Oliveira e Silva
- Deu no jornal: “Já são 22% os que temem vacinação”. O senso comum tende a ver nesse fenômeno apenas burrice, o que dá mostras, a meu ver, de ignorância acerca do que é o ser humano. Minha tese é a seguinte: o problema da suspeita acerca da vacina, antes de dizer respeito a uma pretensa burrice, diz respeito, mais profundamente, isto sim, a uma característica essencial do ser humano, que é a de todos nós estarmos submetidos a um sistema de crenças. É disso que se trata, de sistema de crenças e não de burrice.
- O sistema de crença enforma o que se costuma chamar de concepção de mundo. Não há comunidade humana na qual não haja uma ou várias concepções de mundo. Quanto mais complexa for a formação social, mais concepções de mundo haverá em seu seio; quanto menos complexa, menos concepções de mundo… São as concepções de mundo que nos situam no mundo, já que os seres humanos são essencialmente desorientados. Isto significa dizer que é da “natureza” do ser humano não ter uma determinação natural a orientar a nossa ação. Reside exatamente nessa condição a nossa diferença essencial frente aos demais seres vivos.
- (O fato mesmo de ter havido sobre a Terra uma história humana, distinta da história natural, comprova que os seres humanos agiam livres da determinação natural. Caso a natureza orientasse a nossa ação – como acontece com todos os demais seres vivos – não teria havido uma história humana.)
- O mito do Gênesis dá conta da diferença essencial entre os seres humanos e os demais seres vivos de modo claro e eloquente. Segundo o mito, o fenômeno humano surge com a expulsão do Jardim do Éden – isto é: da expulsão da determinação natural – ao passo que todos os demais seres vivos permaneceram sob a tutela da Natureza. Com a expulsão do Jardim do Éden, da determinação natural, os seres humanos foram condenados a “comer o pão com o o suor do rosto”. Isto significa dizer que nós somos seres que, em alguma medida, mediante o trabalho consciente, se autoproduzem. (O trabalho humano é em tudo distinto da ação “mecânica”, sempre igual a si mesma, dos demais seres vivos – do que resulta termos uma história humana, ao passo que eles têm apenas uma história natural.)
- A natureza é o sujeito da ação dos demais seres vivos, enquanto que a ação dos seres humanos, quase sempre, encontra-se livre da determinação natural. Condenados a comer o pão com o suor do nosso rosto, condenados estamos à liberdade. (Liberdade aqui tem um sentido, digamos, “negativo”, por significar “livre de…” e não necessariamente “livre para…”)
- Somos seres naturais, que vivem na natureza, cuja ação, contudo, não se encontra determinada por ela. Somos seres naturalmente influenciados pela natureza, mas não determinados por ela: reside aqui a nossa essência. Por sermos seres essencialmente livres – isto é: livres da determinação natural –, nós somos seres essencialmente desorientados. Não há nenhuma orientação essencial a nos guiar –, mas como viver sem orientação?
- As concepções de mundo foram a resposta que os seres humanos encontraram para a “expulsão do Paraíso”, para compensar a nossa desorientação essencial. As concepções de mundo foram um dos tantos artefatos provenientes do suor do nosso rosto. Toda e qualquer concepção de mundo está baseada num sistema de crenças, que dá sentido ao mundo e à existência humana e, assim, orienta a nossa ação. Para que as concepções de mundo e os sistemas de crença cumpram a sua função é mandatório que eles sejam tomados como verdade adequada à realidade dos fatos.
- A Pós-modernidade surge, dentre outras coisas, com o fenômeno histórico da perda de prestígio da “ideologia do progresso”. Com isso, abriu-se uma profunda crise de hegemonia na esfera ideológica. A concepção de mundo derivada do prestígio da ciência e da tecnologia – a concepção hegemônica na Modernidade, que se tornou a concepção de mundo das “elites” – voltou a ser contestada como jamais o fora desde o Renascimento.
- Para um contingente expressivo da população brasileira, a concepção de mundo que consagra a vacina-como-um-bem-evidente-em-si é a concepção de mundo das elites depravadas e corruptas, dos inimigos dos “homens de bem”. A crise ideológica da Pós-modernidade, ao incentivar a denúncia do “mundo das elites”, incentiva a suspeita de tudo o que possa estar associado à Modernidade e às suas conquistas.
- A nova “revolta da vacina”, que se anuncia bruta, não é, portanto, obra apenas da burrice, como também não é obra apenas de Bolsonaro, do bolsonarismo ou do ressentimento contra as “elites”. Ela, se acontecer, será obra, sobretudo, da profunda crise ideológica que é a característica mais saliente disso que muitos chamam de Pós-modernidade.
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