Sobre as Eleições nos Estados Unidos

Por Rodrigo Souza Alves

Discordo das posições de boa parte da esquerda sobre o evento recente. Acredito ser um equívoco gigantesco comemorar qualquer vitória em um sistema eleitoral que já se provou falido e insuficiente aos problemas atuais. Uma coisa é ser de esquerda e construir de maneira realista um projeto revolucionário por dentro e fora da democracia, pressionando por constantes mudanças e tendo ciência dos limites do momento; outra é comemorar uma vitória estética de um dos maiores reacionários do partido democrata que não vai mudar em nada nossa situação – pelo contrário, acredito que só vai piorar.

Talvez se fosse o Bernie Sanders vocês tivessem um pouco de razão na comemoração, visto seu caráter (pelo menos aparente) mais progressista que qualquer coisa que saiu de Joseph Robinette Biden. Mas essas atitudes vêm se demonstrando como um problema crescente para mim e acredito que para muitos: a completa incapacidade desses quadros de fazer análises com um entendimento da conjuntura nacional e internacional que observe as coisas além da superfície dos fenômenos.

Farei uma análise que exclui vários elementos da equação, mas o texto é para aqueles que buscam argumentos mais relacionados a atuação de Joe Biden (para uma análise mais geral, ver o artigo de Alejandro Acosta sobre o tema publicado no Duplo Expresso).

Para aqueles que acreditam que haverá alguma descontinuidade da política imperialista ou algum progressismo devido a vitória de Joe Biden, talvez seja válido explicar a história desse senhor. Não vou explanar sua história completa, apenas a sua atuação no senado americano e alguns momentos importantes de sua vice presidência. Para uma perspectiva resumida da história dele, recomendo a leitura deste excerto do livro “A Colossal Wreck” de Alexander Cockbur.

Em 1975, durante suas primeiras atividades no senado, Biden falou isso para o Washington Post (tradução livre): “Eu ainda ando nas ruas do lado ‘negro’ da cidade, junto com Ratinho, Costeletas e todos os garotos da 13 – e eu consigo andar pelos salões de bilhar, e honestamente não conheço nenhum homem branco envolvido na política de Delawere que consiga fazer isso. ”Isso pode “fazer parecer” que ele realmente seja um amigo da comunidade negra de Delaware não? A resposta a isso deveria ser óbvia, pois além dos apelidos claramente falsos e da frase em geral ser vergonhosa, ela foi uma resposta a acusações de racismo feitas a ele.

Mas qual acusação seria essa? Em 1974, Biden foi um dos principais opositores no Senado da dessegregação dos ônibus, uma prática na época frequentemente ordenada pela justiça para as escolas segregadas. Biden justificou sua posição afirmando que apoiava o objetivo de dessegregar as escolas, mas não os ônibus.

Ele foi partidário da emenda da oposição feita por Jessie Helms (um notório reacionário racista da era Reagan, amigo de Joe Biden) no senado, que basicamente realizaria um retrocesso a todos os avanços dos movimentos de direitos civis americanos, que acabou sendo rejeitada. Isso não era uma posição comum aos políticos da época, visto que seus eleitores repudiaram suas ações e a própria emenda foi reprovada. Mas ele não parou por aí: fez uma emenda conciliatória que foi aprovada, conservando vários pontos indiretamente racistas do projeto anterior, pois possibilitou uma segregação econômica que é indiretamente racial (a referência deste excerto foi este artigo do Jacobin: Joe Biden President busing racism?).

Em 1989, o ex presidente George H.W. Bush apresentou uma estratégia nacional de controle às drogas, que foi um investimento maciço (1,5 bi $) em políticas de combate e guerra às drogas que ocorre até hoje. Ele demandava mais prisões, mais detenções e menos tolerância a qualquer tipo de infração. Mas Biden acreditava que esse projeto do presidente não era duro o suficiente, fazendo uma aparição pública na televisão para criticar o projeto (Joe Biden criminal justice war on drugs mass incarceration).

Isso mesmo: Biden, um democrata, criticou um republicano por não ser conservador o suficiente. Além de demandar um investimento maior em prisões e na polícia para prender “bandidos violentos” (citando ele aqui), ele ajudou a escrever e pautou várias leis desnecessariamente punitivistas que aumentaram ainda mais a população carcerária, exemplos disso são: O Comprehensive Crime Control Act de 1984 que expandiu penas e criou o Civil Asset Forfiture (confisco de bens civis), que permitiu policiais apreenderem qualquer coisa que eles julgassem como lucros de tráfico de drogas (Isso obviamente é usado de maneira abusiva até hoje); o Anti-Drug Abuse de 1986 que aumentou o encarceiramento dos negros nos Estados Unidos, devido a disparidade da sentença para usuários de crack com a dos usuários de cocaína (uma pessoa com 100 vezes mais cocaína teria a mesma pena que uma com a quantidade mínima de crack para uma sentença); Anti-Drug Abuse de 1988 que aumentou ainda mais as sentenças para posse de drogas por usuários; e o Violent Crime Control and Law Enforcement Act de 1994 que aumentou o financiamento das prisões americanas, contribuindo para o encarceramento em massa.

Até mesmo seu oponente durante os debates apontou esses problemas. Quando ele famosamente usou o termo “super-predadores” para se referir a membros da comunidade negra por exemplo, Donald Trump levantou o ocorrido em um dos debates o criticando ele ao mesmo tempo que avisava a comunidade negra de seu passado como seu carrasco. Ele se desculpou por esses infelizes incidentes, mas nada justifica algo que até mesmo na época era considerado uma política equivocada e desnecessariamente punitivista.

Em sua carreira como vice presidente do criminoso de guerra Barack Obama , Biden não apenas foi complacente, mas ajudou a realizar golpes de estado na América Latina, incluindo o de 2016 no Brasil (“Prism Program”). A atuação da embaixada americana para o recrutamento do judiciário brasileiro por via do Projeto Pontes foi muito bem exposta em um artigo de Gabriel Kanaan chamado Imperialismo e Guerra Híbrida. Sem dó, (o bombardeamento de um hospital sírio, o assasinato de um jovem de 15 anos, e várias outras atrocidades cometidas por Obama, da qual Biden foi não apenas conivente, mas peça de apoio integral em muitos casos.

Isso sem contar a carreira da “top cop” Kamala Harris (mais importante que Biden por sinal), que foi forçada a soltar prisioneiros não violentos que ela prendeu por eles serem uma fonte de trabalho escravo do sistema prisional americano. Algo que por sinal foi apenas possível devido às leis aprovadas e redigidas por Biden entre os anos 80 – 90. Mas acho que pessoas mais capacitadas que eu já falaram sobre os problemas da Kamala de maneira mais qualitativa (Leia aqui no Duplo Expresso).

O imperialismo e o capital transnacional simplesmente colocaram uma “nova” (que de nova não tem nada) máscara visto o aprofundamento da crise de nosso sistema. A vitória não foi do povo, foi na verdade do sistema capitalista que vai continuar a se perpetuar com isso, amenizando parcialmente – pois a cisão ajuda a ilusão de que existe algo diferente no sistema – a pressão existente (posso estar errado, e gostaria da opinião de quem teve paciência de ler esse texto sobre isso). Pior de tudo, quem deu aval a isso foi um povo ainda afogado na ideologia liberal do atual bloco histórico, onde os mais radicais não vão ter uma correlação de forças suficiente para reforçar suas pautas visto o forte centrismo e reacionarismo existente nos EUA.

A derrota do Trump não é boa nem ruim, pois o mesmo vale para a vitória do Biden. Vou recuperar um trecho de Hegel da Filosofia do Direito que acho cabível para posição que busco incentivar: a coruja de Minerva abre suas asas somente com o início do crepúsculo. Não acho que devemos realizar qualquer julgamento em relação ao governo do Biden ser ou não um avanço da nossa causa, isso é alimentar uma ilusão perigosa ao meu ver.

O processo precisa se concretizar primeiro, mas com as indicações que veremos durante sua concretização poderemos ter uma noção do que foi eleito. O que sabemos agora é que ele mobilizou certas massas para se eleger, mas se ele vai cumprir suas promessas tendo um diálogo maior com elas é algo que não sabemos ainda. Visto tudo isso que ilustrei, acredito que essas massas foram manipuladas pelo deep state.

Biden não vai trazer nada de novo, ele só vai perpetuar a própria lógica do realismo capitalista que não aceita qualquer alternativa se não um liberalismo de esquerda ou de direita dentro de uma democracia limitada, com uma possível abertura a algumas pautas progressistas – a famosa festa da democracia, que sempre traz algumas “melhorias” que logo depois regridem no governo de reação. Não foi uma vitória do Black Lives Matter e muito menos da esquerda, foi uma vitória do partido democrata e do deep state que até agora manipulou (e continua manipulando) esse movimento a favor deles.

Também acho que não há garantias que a derrota do trumpismo implica necessariamente na queda do bolsonarismo (menos ainda dos militares). Isso é um equívoco de quem não compreende a história dos dois países, a história dos quadros políticos, nem a posição subimperialista do nosso país que atua de forma paralela – mas ainda alinhada em pontos cruciais – com a do o imperialismo dos EUA. O próprio Biden já está buscando um diálogo com o Bolsonaro, e os militares já estavam se preparando para vitória dele com Mourão descreditando as afirmações do Bolsonaro sobre as eleições.

Muita coisa ruim pode acontecer. Pode rolar outra guerra no Oriente Médio (visto o gabinete de segurança dele explicado pelo artigo do Pepe Escobar previamente citado), é evidente que as tensões com a China continuem, e com uma suprema corte republicana e um (possível) senado republicano pode ser que nada de fato mude lá.

Pode acontecer qualquer coisa na verdade, mas a última coisa que a gente devia fazer é uma comemoração infantil desse resultado como uma vitória ou derrota para o nossos objetivos. De qualquer modo, estamos em maus lençóis, e não vai mudar nada pra gente o Trump ou o Biden na presidência. Continuamos dependentes e subdesenvolvidos, e nossos quadros parecem continuamente se refletir e se pautar em um país que nos vê apenas como seu quintal.

____________________________________

Siga o Duplo Expresso em várias plataformas:

Canal do DE no Telegram

Grupo de discussão no Telegram

Canal Duplo Expresso no YouTube

Romulus Maya no Twitter

Duplo Expresso no Twitter

Romulus Maya no Facebook

Duplo Expresso no Facebook

Romulus Maya no Linkedin

Romulus Maya no Mastodon

Grupo da Página do DE no Facebook

Romulus Maya no Instagram

Romulus Maya no VK

Duplo Expresso no Twitch

Áudios do programa no Soundcloud

Áudios no Spotify

Áudios na Rádio Expressa

Link para doação pelo Patreon

Link para doação pela Vakinha

https://twitter.com/romulusmaya

Facebook Comments

Redação D.E.

Redação do Duplo Expresso - onde "a verdade chega primeiro". Bem... às vezes primeiro, segundo, terceiro e... último! Único! rs

Redação D.E. tem 1649 posts e contando. Ver todos os posts de Redação D.E.