USA: ganhar no Quintal o que perde no mundo

Por Mario Maestri

Os Estados Unidos necessitam vergar a vaga expansiva chinesa para manter a hegemonia imperialista mundial. Sem ela, a economia e a sociedades estadunidense mergulham na decadência. Para tal, contam com superioridade militar e diplomática, enquanto a China mantém superioridade econômica, registrada no Cinturão-Nova Rota da Seda, mega projeto de desenvolvimento envolvendo mais de 150, das pouco menos de duzentas nações que conta o mundo.
Há décadas os USA são incapazes de grandes empreendimentos internacionais, capazes de oferecer, mesmo para retirar ainda mais, como o plano Marshall [1947] que enquadrou a sociedade européia aos desígnios estadunidense. Exerce a diplomacia do bastão sem a cenoura, para enquadrar aliados e tributários na operação de desorganização das economias e sociedades chinesas e russas. Ofensiva que se serve de choques militares localizados terceirizados e, se necessário, diretos. O que pode levar a confronto mundial.
Os USA tem pouco tempo para se sobrepor sobretudo à China que se arma e se insinua economicamente nas mais sensíveis áreas de influência estadunidense, sem sequer perdoar o sacrário imperialista, a “Anglosfera”, ou seja, os países de forte população anglo-descendente. Super aliados, os USA, Inglaterra, Canadá, Austrália e Nova Zelândia lutaram lado a lado em quase todas as últimas guerras imperialistas – Guerras Mundiais, Coréia do Norte, Vietnã, Iraque, Afeganistão, etc.

Deus salve a Rainha e sobretudo os Negócios
Após a II Guerra, os serviços de informação da Anglosfera formaram a aliança semi-secreta “Cinco Olhos” [“Five Eyes”], contra a URSS. Desde então, ela serve aos interesses vários do imperialismo. Sua rede de vigilância mundial [Echelon] escuta as comunicações mundiais, à margem de qualquer controle governamental. Ela escutou os governos petistas, participou da montagem da Lava Jato e do golpe, hackeou por longos anos a Petrobrás.
Os batalhões da Anglosfera resistem à ordem de ataque geral contra a China. Há um século, a Inglaterra escuda os Estados Unidos. Rei morto, ou quase, rei posto, ou quase. Em 2016, David Cameron, o primeiro-ministro inglês conservador, de 2010-16, proclamou a “Era de ouro das relações China-Inglaterra”. E com razão. A China investe no país no ramo da energia, nuclear, educação, imobiliário, bancário, esportista, etc. Cem mil chineses estudam no país, que acolhe enorme número de Institutos Confúncio.
A Inglaterra era a ponte chinesa para a Europa. É forte a sinergia das finanças chinesas e inglesas. Uma seguradora chinesa é a maior acionista do HSBC, o mega banco mundial inglês. Os capitais londrinos participam do Banco Internacional de Investimento Asiático [AIIB] e de grandes investimentos chineses, inclusive no Cinturão-Nova Rota da Seda. The City é o centro vendedor mundial de renminbi. A Huawei, parceira privilegiada inglesa, é muito ativa na instalação da Rede 5G no país.

Seguir … até onde? Os Estados Unidos sempre criticaram o namoro entre a China e a Inglaterra, que segue secundando as ofensivas mundiais estadunidense, sobretudo contra a Rússia. A Inglaterra fortalece sua marinha e navega as águas do Mar da China meridional, com as reclamações protocolares de praxe. Agora, os Estados Unidos exigem que fira na carne suas relações com a China. E isso quando o país defronta-se com a conclusão do Brexit e suas eventuais sequelas: secessão da Escócia e Irlanda do Norte; regressão como centro financeiro mundial; queda das exportações, etc. A Inglaterra teme que os Estados Unidos sigam seu exemplo histórico de lutar até o último aliado.
Mesmo vetando a Huawei, a Austrália, país multicultural, vive transformações profundas. O adesismo à Inglaterra reduz-se sobretudo aos australianos anglo-descendentes de mais de sessenta anos, conservadores na política. Desde os anos 1990, a China é o principal parceiro comercial do país, comprando carvão, gás natural, minerais ferrosos. Os estudantes chineses constituem o terceiro ramo das exportações do país. Igualmente contra pressões estadunidenses, o país aderiu à AIIIB. Também a Nova Zelândia vetou a Huawei, mas aderiu sem preconceitos ao Cinturão-Rota da Seda e ao AIIB. Os dois países rompem amarras com o passado e vêem o futuro na Ásia. Dificilmente lutarão a fundo a guerra imperialista estadunidense.
O Canadá é exceção, devido à forte integração aos USA, país para onde enviam 75% das suas exportações e de onde chega 51% das importações. O Canadá acompanhou sempre o irmão maior nas operações imperialista. Sob a pressão de Trump, seu governo prendeu a filha do fundador e diretor da Huawei, maior fornecedor do país de produtos de comunicação. A resposta chinesa foi fraca, a interrupção da importação de gêneros alimentares canadenses A China é o segundo mercado das exportações do Canadá – uns 18 bilhões de dólares, quase nada, diante dos 274 bilhões que seguiram para grande vizinho em 2017.

Pondo Ordem no Quintal
Por ordem no quintal latino-americano transformou-se em questão primordial para o imperialismo USA, ao enfraquecerem-se posições na África e principalmente na Ásia e Oceania. Sobretudo porque nessa região se encontram o Brasil, segundo exportador mundial de alimentos, e a Argentina, quinto exportadora. Ambas nações fornecedoras da China e destino de capitais chineses. A retomada de controle sobre os governos latino-americanos iniciou-se com o governo Obama, que propiciou golpes diretos e eleitorais em Honduras [2009]; no Paraguai [2012]; na Argentina [2015]; no Equador [2017]. A Colômbia e Peru já eram semi-colônias dos Estados Unidos, que possuí múltiplas bases em seus territórios. O Chile jamais superou as sequelas institucionais pinochetista.
O Brasil constituía peça central da estratégia imperialista latino-americana e mundial, pela sua dimensão industrial, geográfica, populacional e produção mineradora e agro-pastoril. O golpe de 2016 se inscreve no longo processo de reversão do status do país de nação semi-colonial em nação neocolonial globalizada. Ou seja, na qual não mais apenas as grandes decisões econômicas do país, mas a própria gestão política geral, passam das classes dominantes locais para o grande capital. Em 2018, o golpe foi acelerado e reorientado pelas necessidades conjunturais e singulares do imperialismo estadunidense, que não são idênticas logicamente às do capital mundial.
Reformatação do Estado e das Instituições
O golpe institucional de 2016 foi preparado pelas internacionalização, desnacionalização, desindustrialização da economia nacional das três últimas décadas, impulsionadas por todos os governos pós-1985. O golpe foi lançado com o apoiado do grande capital financeiro, da grande imprensa, da Justiça, do Parlamento, da Política Federal, do alto comando das forças armadas, preocupado apenas com ganhos pecuniários – com destaque para o “núcleo haitiano” de generais. Foi sustentado pelo empresariado pequeno, médio e grande conquistado pela promessa de submissão dos trabalhadores a relações neo-escravistas assalariadas.
O golpe surfou no movimento social esfacelado e na renúncia das dita burguesia nacional à hegemonia mesmo parcial sobre o país, resultado de sua desossificação geral, engendrada no processo de globalização. Já obedecendo às exigências do imperialismo estadunidense, o golpismo instalou-se através da destruição do pouco que restara do capital monopólico nacional público e privado. As grandes empreiteiras, a Petrobrás, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal, o BNDES foram e estão sendo arrasados. Entregou-se de mão-beijada a EMBRAER e Alcântara. A Vale já está nas mãos do imperialismo. Os irmãos-Friboi garantiram-se a impunidade para seus malfeitos pondo-se sob o guarda-chuva estadunidense.
O programa político da reformatação institucional do país impulsiona a destruição-domesticação dos grandes, médios e pequenos partidos políticos, em prol de partidos e candidatos de ocasião, literalmente saídos das moitas do oportunismo, bancados pelos núcleos que sustentam a fatiamento do parlamento e da política, para além de qualquer sentimento nacional – evangélicos; agro-negócio; transporte inter-municipal; oligopólios educacionais, etc. Condições para a liliputização do Estado e a infinita dispersão de seus poderes, deixados à intervenção quotidiana do capital. Trata-se da construção de nova superestrutura político-jurídica-institucional exigida pela economia globalizada, ensejada pela superação da Era dos Estados-Nações.

Acelerando o Passo
O golpe institucional de 2016 interpretou no geral o grande capital e conheceu flexibilização pró-imperialista estadunidense incondicional, em 2018. Os governos Temer e Bolsonaro são farinhas diversas, saídas do mesmo saco. Irmãos gêmeos, mas não univitelinos. Com os bolso-boys, Guedes e os generais-bananeiras bolsonarianos no comando do governo, o imperialismo avançou o programa de enquadramento direto do país à sua operação sobretudo contra a China, mas também contra a Rússia, o Irã, a Venezuela, Cuba. Além de organizar a rapinagem radical e despudorada das riquezas nacionais.
Em fevereiro-março de 2018, Bolso e filhos visitaram Japão, Coréia do Sul, Taiwan, mas não a China. O novo governo bateu continência não apenas simbólica à bandeira estadunidense e ajoelhou-se diante de atual agressivo timoneiro yankee. Enquadrou-se bovina à política internacional do imperialismo, como prometera durante a campanha. Protestou quando deputados do PSL visitaram a China, em janeiro de 2019, à convite da embaixada chinesa no Brasil. Fez cara feia para o Pacto Global por uma Migração Segura e para o Acordo de Paris sobre o Clima, subscritos sem restrições por Temer. Abraçou a campanha contra a Venezuela e reconheceu o governo-opereta Guaidó.
Passou a apoiar Israel contra os Palestinos na ONU, parte da superação dos propostos antiamericanismo e terceiromundismo que dominariam a diplomacia brasileira. Afagando Trump, prometeu transferir a embaixada do Brasil de Tel Aviv a Jerusalém, juntando-se a nações destacadas como a Guatemala, Honduras, Islas Marshall, Micronesia, Nauru, Palau e Togo, algumas delas pagas para mudarem a mobília de endereço. A transferência seria feita quando da viagem de Bolsonaro e troupe a Jerusalém, para o gáudio do imperialismo, dos sionistas, dos evangélicos…

Matar de Fome
Com o arrasamento dos bancos públicos, a substituição plena do financiamento público da safra, pelo privado, permitiria a cooptação ainda maior da renda do agro-negócio nacional pelo imperialismo. Já nesse ano, acresceu-se um ponto mais ao “juro máximo” dos grande produtores. Um dinheirão. Controlaria-se assim a comercialização, o preço do produto, cortaria-se o fornecimento da China, se a operação exigir, no futuro. Esse controle é estratégico, já que a soja brasileira compete com a estadunidense no mercado internacional;
No início de 2018, Rex Tillerson, ex-secretário de Estado dos USA, ao iniciar visita ao México, Argentina, Peru e Colômbia, atacou as “novas potências imperialistas” que avançariam sobre a América Latina, recebendo a pronta resposta do Ministério de Assuntos Exteriores chinês. Bolsonaro apresentou durante a campanha a China como “predador que busca dominar setores-chave da economia brasileira”. A China advertiu-lhe que, se o governo brasileiro se submetesse às exigências estadunidenses, o “custo econômico pode ser duro para a economia brasileira, que acaba de sair de sua pior recessão na história”. [G1, 01/11/2018]
Em 12 de março de 2019, em aula magna no Itamaraty, o chanceler Ernesto Araújo disparou chumbo grosso contra a China. “Nós queremos vender soja e minério de ferro, mas não vamos vender nossa alma. Isso é um princípio muito claro.” A China é o maior comprador de soja e de minério de ferro do Brasil. A mensagem era clara. Venderemos o que quisermos e fecharemos as portas para os investimentos diretos chineses que importam. Já navegando no reino da fantasia, Araújo arrematou: “De fato, a China passou a ser o grande parceiro comercial do Brasil e, coincidência ou não, tem sido um período de estagnação do Brasil.” Segundo ele, a aliança prioritária com os USA seria sinônimo de progresso!
Trata-se de inversão geral da orientação do governo Temer que, em visita à China em 2016, ofereceu acesso a tudo o que fosse privatizado e ainda mais, ensejando que 2017 se transformasse no ano magnífico das inversões chinesas no país. De agosto 2016 a agosto de 2017, os chineses investiram 21 bilhões de dólares em aquisições no Brasil, transformando o país no nono maior destino de investimentos diretos. De 2003 a dezembro de 2018, os investimentos foram de 69,2 bilhões, com destaque para São Paulo [mais de 40%] – máquinas e equipamentos, eletrodomésticos, automotivos, energia, plástico, mineração, siderurgia, serviços, financeiro, bancos, etc.

“Peperit monte mus”
A montanha pariu um rato. Bolsonaro prometeu embaixada em Jerusalém e entregou um mísero “escritório de representação comercial”. Sua diplomacia e a de Trump foram dobradas pela admoestação da Liga Árabe, do Egito, da Turquia, do Irã. Em 2017, Brasil teve um superávit de US$ 7,1 bilhões no comércio com essas nações e um déficit de US$ 419 milhões nas trocas miseráveis com Israel. Empreendeu-se retirada inglória diante dos batalhões cerrados de criadores tupiniquins de frango.
O mesmo ocorreu em relação à China, até agora. Em concorrência com a produção estadunidense, as exportações da sojicultura nacional são sustentadas pelas compras milionárias chinesas. Ao contrário do Canadá, a China é desde 2009, ano em que superou os USA, o primeiro parceiro comercial do Brasil, que obteve um superavit de quase 59 bilhões de dólares sobretudo com a venda de grãos e minérios, em 2018. Não há para onde redirecionar essas exportações, que dependem da bonança de economia chinesa.
Em maio de 2019, o general Hamilton Mourão partiu correndo em viagem para o Império do Meio para tranquilizar governo e investidores, em desautorização explícita das declarações de Bolsonaro durante a campanha, reafirmadas pelo bolso-chanceler dois meses antes. Mas a guerra da China é estratégica. Apresenta-se agora a questão de inibir a participação chinesa em compra de empresas, processos licitatórios e privatizações, com destaque para o leilão da rede 5G, prevista para março de 2020. A proibição dessa última participação é fácil. O problema é sobretudo o agro-negócio suportar as represálias.
Encontra-se na mesa também a decisão de aderir à proposta chinesa de extensão à América Latina do mega-projeto Cinturão-Nova Rota da Seda, com fortes investimentos no sistema portuário e nos transportes, o que rentabilizaria as exportações nacionais de commodities. A proposta já foi avançada quando da visita do vice-presidente à China e será possivelmente durante o G20, agora, em junho-julho, e decidida quando da visita de Bolsonaro à China, em agosto. Vai ter sobre ele os olhos de milhares de bolso-coxinhas, angustiados com seus negócios. Vai ter que escolher entre bater a continência à bandeira USA ou aos dólares rinminbi.

Ninguém Aguenta
As oposições internas entre o capital prejudicado pela orientação imperialista se expressam, mais e mais, ainda que timidamente. Em 17 de junho, Johnny Saad, proprietário da Rede Bandeirante, diante de empresários, realizou duro ataque à ação da Lava Jato e à destruição da indústria nacional, no qual citou a Odebrecht, que acaba de pedir “recuperação judicial” – “Nenhuma das empresas internacionais que se envolveu no escândalo da Petrobrás ou em outros escândalos foi destruída. Penalize quem fez, mas não se penalize a empresa”. A revelação dos malfeitos Moro-Dallagnol não tem ainda assinatura.
As divergências entre o presidente e o vice se estende para as forças armadas, solidária entretanto na agressão ao mundo do trabalho no Brasil. É ainda difícil saber as eventuais fraturas castrenses sobre as grandes questões econômico-diplomáticas. A crise se instala no governo e enfraquece o próprio golpe. Generais, empresários, banqueiros apenas esperam que seja aprovado o arrasamento do sistema público e privado de pensões. O movimento social voltou às ruas, com vontade, revelando decisão de luta. As direções da chamada oposição olham para o outro lado, apontam como solução os acordos de gabinete e as eleições viciadas em 2020 e 2022. Procuram retirar suas castanhas do fogo enquanto o programa de aniquilação nacional avança a passos de gigante. Duplo Expresso, 27/06

* Mário Maestri, 71, historiador, é autor de Revolução e contra: revolução no Brasil. 1530-2018. https://clubedeautores.com.br/livro/revolucao-e-contra-revolucao-no-brasil#.XW2RdS3Oogt

 

 

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