Morte na Amazônia brasileira antes da emissão do CO2

Por Marcele Luize

Como é sublime
Saber amar
Com a alma adorar
A terra onde se nasce!
Amor febril
Pelo Brasil
No coração
Nosso que passe

Excerto da Canção do Exército

 

A Amazônia brasileira é do mundo? Alguém parou para pensar que na biodiversidade da floresta existe uma sociedade? Pessoas. Unidas por uma cultura que representa a diversidade do Brasil, que é belamente representada nas fotos da “National Geografic” ou não. E que é repleta de horrores escancarados para quem se aproxima. E o mundo se aproxima numa cortina de fumaça, apenas.

Sobrevoar a floresta e ver clareiras é assustador até para uma criança que vê terra seca no meio do verde. Sempre foi, porque fui uma criança assustada com isso há mais de 30 anos. Passear num barco em qualquer afluente do rio Amazonas e ver a madeira rolando aos montes puxada por barcos menores. Madeira de quem, pra quem, derrubada por quem a que custo? No barco de passeio, a pobreza, não a simplicidade, (a miséria mesmo) se mostra.
Na mãe que carrega crianças nuas e descalças, a criança praticando a mendicância, na prostituição perceptível, no alcoolismo como fuga, histórias trágicas contadas. Fome não é elemento cultural.

O trabalhador da Amazônia é quase escravo. Sobrevive em meio a faltas trazidas na histórica precariedade da exploração da floresta. Essa gente não desfruta do que a Amazônia oferece, nem do ar. O trabalho é pesado, a remuneração é uma piada. E não, a vida ali não é barata. Enquanto uma criança num Boeing descobre os buracos da floresta, outras trabalham ou sujeitam-se a prostituição. Desigualdade feroz. Há quem lucre com a persistência do ciclo da miséria na região. Não é imaginação. A “maldade” do dono da motosserra não começa com a morte da árvore.

A preocupação com a vida que acaba com a queimada e com a vida ameaçada pelas mudanças climáticas trazidas pela exploração destrutiva da floresta estampada nos jornais do mundo todo parece manca e hipócrita. Realmente haveria preocupação com a vida? Ou apenas com a que será atingida futuramente pela morte da floresta? Se não há incômodo nenhum com a morte do povo indígena que restou e a dos ribeirinhos, ou mesmo com os moradores das cidades que nasceram das vilas formadas na beira dos rios ou formada nas primeiras veias abertas na mata desde a invasão dos colonizadores. Se não há visibilidade para isso, não há preocupação real com a vida. Com os moradores de palafitas, já que a “periferia” amazônica não é periférica, é central, entranhada, de difícil acesso, de fácil extinção. Alguém considera?

Que o jornalismo a la David Copperfield continuará existindo é fato. Existirá, mas é preciso duvidar. Trago a dúvida da real preocupação com a vida. Negar a afirmação e negar e negar até que o empírico revele, é método. O não é o primeiro passo para a dialética, do complexo, do racional, diferente de loucura, da crença pela crença. Existem pesquisas, estudos, teorias e existe ciência demonstrando o que vivemos atualmente no âmbito comunicacional, desastrosamente distante dos acadêmicos brasileiros da comunicação, de maneira geral. Que dirá os que a praticam? Eu diria que é a guerra híbrida, onde a granada é o discurso e a bomba atômica a inteligência artificial que já é capaz de descrever, gestar padrões aproximados de seu sentimento por meio dos seus cliques. O buraco é mais embaixo. Salvar o planeta enquanto um povo morre por necessidades triviais. Que tipo de salvação é essa?

E reproduzimos o discurso por ausência de curiosidade, saturação emocional, conduzidos pela ilusão do que somos induzidos a ver, porque nosso cérebro é programado para aceitar o que é sugestionado. Quem questionaria uma preocupação de origem tão pura quanto a proteção à vida, ao meio ambiente, a sustentabilidade necessária. Entretanto, no momento são palavras que justificarão movimentações geopolíticas que já estão acontecendo, ainda que sem clareza para muitos de nós brasileiros.

Antes da emissão de gás carbônico, que escandaliza o mundo, já existem mortos assassinados e enterrados desde o Brasil oficialmente Colônia. Mortos hoje e ontem. População indígena primeiramente dizimada. E vindo dela, a população ribeirinha, isolada, distante de qualquer cidade, separada pela imensidão do rio e pela vida precária ao extremo. Sem acesso ao saneamento básico, à educação ou à saúde. Uma população explorada, escravizada, faminta, que naturalizou a prostituição infantil recebendo como moeda de troca pelo abuso de uma criança de 8 anos, um saco de farinha. Abusadores líderes da derrubada de madeira, os que ali vão de passagem e levam o que podem da floresta e da população local. Exemplos vistos e não contados. É claro que dentro dos últimos anos ocorreu algum progresso na sobrevida desta população, entretanto de maneira sazonal e não permanente. Não pretendo enumerar entrelinhas sobre a floresta ou sobre o povo, para quem é negado o “acesso” à dignidade ou qualquer direito básico constitucional, para quem gosta do palavreado oficial de uma Constituição recente e várias vezes desvalidada, não contem comigo. “Eu mando”, disse o presidente, assim como nos contos monárquicos os reis declaravam-se Lei.

O ser humano vale nada na floresta, antes do valor da árvore, do bicho, da biodiversidade e do pasto posterior. A morte é anterior aos problemas climáticos e ambientais postos a todo momento, e considerados com razão. Mas como escreveu o poeta Luís Fontana e cantou Nilson Chaves, é “o Tio Sam tirando casca do Brasil”. O imperialismo, a dependência econômica e a falência da social democracia inconclusa, parecem aceitar com naturalidade a assinatura do chefe de estado (aqui propositalmente posto em letras minúsculas) para que “ladrões de terra”, grandes senhores do setor agropecuário, partidários da bancada do boi, possam faturar ainda mais por meio da exploração, da abertura de mais clareiras para pastos, do rolar da madeira e do fogo em conseqüência disso. E o que fazemos perante a situação além de pedir para que se reze pela Amazônia, fazendo da hashtag no Twitter uma bandeira de luta. Apenas para ver, indignados paneleiros, “o circo pegar fogo”. Não posso nesse contexto deixar de citar Fontana e Chaves novamente, para quem conhece a música Tango Amazônico, “o Tio Sam que vá pra pqp…” E cantado por Nilson em outra canção, aqui transcrevo “Eu olho o futuro e pergunto pra insônia/ Será que o Brasil nunca viu a Amazônia?”. Ah, Nilson! Não, nunca viu.

Talvez por essas e outras eu não tenha me espantado com a publicação de uma atriz norte-americana, filha de atores e ícone juvenil, explicitando a situação do desflorestamento acelerado da Amazônia brasileira e elencando no formato de itens práticos o que fazer pela floresta. Entre as colocações, além de colaborar com ONGs que trabalham no local, votar (no momento oportuno) em candidatos que se importem com o desmantelamento do Planeta Terra, claro que em palavras ecologicamente corretas. Em inglês. O discurso é deles. O recado não é para os brasileiros. “A América é para os americanos” e a floresta para qualquer outro senhor de engenho na disputa da própria sobrevivência como senhor, no capitalismo.

Incapacidade declarada
O líder brasileiro posto, assim como o discurso oficial dos ministérios e o próprio parlamento têm declarado em alto e bom som que o país é incapaz de cuidar do problema ambiental em foco. Em contrapartida, é possível ter em conta versões diferentes de militares nacionalistas que ainda defendem a função da instituição militar brasileira como pacífica e de caráter exclusivamente protetivo. Durante anos o Exército Brasileiro preparou seus pertencentes não somente para guerra, já que esta não é ou não era o propósito das forças armadas. Preparando-se sempre para a defesa.

A ridicularização da instituição armada feita pelo atual presidente, segundo alguns militares que trabalharam na região da “selva” (como o grito de guerra), é a mostra de uma visão entreguista constituída no interior das forças armadas, com os arremedos de preconceitos e raciocínio raso. O caso recente do suposto embate contra a Venezuela faria parte de um discurso de demonstração de fracasso e incapacidade, fruto de movimentos que não possuem como estratégia o que é exposto ao público. Propõe confundir.

Acontece que as Forças Armadas trabalham em defesa da floresta, além da defesa territorial. Demarcação territorial presencial, acompanhada de guias nativos são narradas por tais militares que realizaram este trabalho. Relatórios ao estilo Pero Vaz de Caminha eram escritos no caminho percorrido, de ponta a ponta. Não à toa o treinamento era de sobrevivência na selva. Descrição de espécies de árvores nobres e plantas diversas, sua utilidade, localização, os animais, as sensações e barulhos da mata eram colocados, além do relatado pelo guia. Fossem tiros ouvidos na fronteira, movimentação na mata, barulho de motosserra. O relatório dos fatos e a denúncia iam parar em mãos do general responsável pela missão local.

Ocorre que contam os que serviram na selva que já há vinte anos ou mais, que havia uma ala militar contrariada com a execução desse trabalho, que internamente pediam a extinção ou a “simplificação” dos relatos e suas minúcias, alegando falta de necessidade de tanto ou preciosismo. Os discursos de chacota: “lá vem o Caxias (perfeccionista chato)” combina perfeitamente com o daquele que diz ser nacionalista e na verdade não defende interesses nacionais de fato, diz amar ao país, mas por vezes se confunde de bandeira.

Para os que trabalharam in loco, as declarações da parte do presidente da República e as atitudes em relação ao Exercício são pela desmoralização da instituição e do próprio país, em razão de uma atitude entreguista, privatista, inconstitucional e contra qualquer princípio. É por esta razão que “um militar sem formação política e ideológica é um criminoso em potencial”, como declarou o líder africano Thomas Sankara. Militar e revolucionário que chegou à presidência de Burquina Fasso, logo após a libertação do jugo francês. Assassinado após beneficiar a população com políticas de melhoria social.

Existem homens no Exército brasileiro que acreditam na democracia e em uma nação socialmente justa e lutam por ela, aliás com mais veemência do que certos partidários ditos sociais democratas. Uma ala que talvez não deva ser ignorada. São cidadãos que possuem em seu discurso e ações a busca pela justiça social, pela paz, pelos direitos universais. Pelo amor e emoção pela pátria sem gritos de gol. Quem sabe não seria uma força, ainda ignorada, com potencial para se aglutinar à luta da conscientização das estratégias do poderio econômico pela continuidade da exploração do chamado terceiro mundo. Contra os agentes externos e internos, fardados ou não, que conflagram a miséria e humilhação de nosso povo.

No Brasil fragilizado e crente na história contada,replicada e irreal, é preciso duvidar do discurso oficial e das histórias reproduzidas nas redes sociais. A “informação ao alcance” também é perigosa. Fácil alcance, quase como um costume. É preciso indagar-se a respeito da intenção de cada jogada, cada notícia, cada fala “irracional”. Não é assim também nas disputas no mundo do trabalho, nos problemas de família, nas relações interpessoais? Que o diferencial seja a racionalidade dentro da guerra de comunicação na qual estamos inseridos em formato de entretenimento nas redes sociais frente a verdades absolutas proclamadas de maneira acalorada.

Marcele Luize, jornalista e escritora.

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