Geisel e o Golpe da Banca | Parte 1 de 3

Por Pedro Pinho*, para o Duplo Expresso:

 

Beto Almeida, Geraldo Lino, Romulus Maya e outros amigos, leitores e editores, costumam sugerir que eu apresente maiores informações sobre o que denomino o primeiro golpe da Banca no Brasil – a guerra híbrida na sucessão do presidente Ernesto Geisel.

Banca é a forma abreviada pela qual designo o sistema financeiro internacional. A guerra híbrida, que envolve trapaças, mentiras, ameaças e força, armada ou econômica, é típica ação da Banca.

Atender este pedido possibilita-me ampliar a resposta para uma leitura de nossa história e dos eventos fundamentais dos séculos XX e XXI, que se impõem agressivamente contra a humanidade, contra o Brasil e nossa vida individual.

 

Antecedentes

No British Imperialism 1688-2015, de Peter J. Cain e Antony G. Hopkins (Routledge, NY, 2016, 3ª ed.),[DE 1] lê-se que, em 1939, a “Pax Britanica” foi trocada pela “Pax Americana”.

Em 1930, a dívida pública externa brasileira estava dividida em títulos britânicos (65%), estadunidenses (30%) e franceses (5%), conforme o FGV CPDOC. Ao fim de 1954, a dívida externa de 1,3 bilhões de dólares estadunidenses (USD) era inferior a de 1930, mas, praticamente, toda em moeda dos Estados Unidos da América (EUA).

Em 1941, o então Capitão Severino Sombra de Albuquerque publica As Duas Linhas de Nossa Evolução Política (Zelio Valverde Editor, Rio), quais sejam, nas palavras do autor: “uma Liberal Revolucionária, outra Reação Orgânica Nacional”. Busquemos compreendê-las.

Acrescenta o futuro General Sombra: “Se pudéssemos resumir em duas palavras o sentido de nossa conclusão político histórica, diríamos que substituímos o signo da liberdade pelo da nacionalidade”. Referia-se ao antes e ao depois da Revolução de 1930.

Escrito no Estado Novo de Vargas, de quem Sombra foi ora aliado ora opositor, embora percebendo estas diferenças no comportamento político, não as associou à economia mundial. Esta passava do financismo mercantil inglês (liberal) para o industrialismo estadunidense. Um imperialismo que envolvia toda uma nação, distinto do imperialismo financeiro, de uma aristocracia desvinculada de seu povo; o dinheiro sem pátria, como visto por Marx.

Mas Sombra cuidava apenas da expressão política do poder. O Poder é muitas vezes decomposto para análise, além do político, no poder psicossocial, no poder militar e no poder econômico. Há quem desloque dos poderes psicossocial e econômico, como uma expressão própria, o poder científico-tecnológico.

Volto a Cain e Hopkins, em tradução livre:

As substância e ideologia do Império (britânico) sobreviveram à I Grande Guerra. A elite cavalheiresca permaneceu no comando; atitudes imperiais eram condutoras; políticas coloniais continuaram a ganhar a batalha da missão civilizadora.  A versão britânica do governo liberal unido a um império liberal ainda teve o poder de permanência. O modelo não foi substituído até 1940. Os defensores do estado intervencionista, que o substituiu, se sentiam confiantes de que tinham as ferramentas necessárias para melhorar o império e dar-lhe uma nova vida. O rápido aumento da dominância estadunidense significou que parte do antigo império britânico seria ocupado. A invasão dos amigáveis GIs foi seguida pela flotilha de publicidade, plásticos, sedutoras fantasias hollywoodianas, capturando para o american way of life os desmoralizados consumidores britânicos.

Na Conclusão e no Posfácio da citada obra, Cain e Hopkins, fazendo referência à velha corrupção, com a qual a Inglaterra se assenhoreou das resoluções do Tratado de Viena em 1815, mostram ser este o caminho para reconquista da “missão civilizadora” pela aristocracia financeira. Portanto, a inclusão dos capitais da droga e de todos os ilícitos, é uma consequência do próprio poder financeiro (vide o ópio e o HSBC, na China), e não apenas uma das decorrências das desregulações dos anos 1980.

Seria pedir muito ao Capitão Sombra, em 1940, antever a série de crises que levaria o sistema financeiro internacional – a Banca – a se empoderar, agora com nova estrutura de ação e a ideologia “neoliberal”.

Mas Sombra viu a dualidade nacional/liberal, o que ainda hoje causa perplexidade e pasmo para muitos colegas de profissão e mesmo para a academia e políticos brasileiros. Neste século XXI temos aguçado o antagonismo Soberania (nacionalismo) versus Globalismo (neoliberalismo).

Esta dualidade será usada para aplicar no General Ernesto Geisel, um presidente que prossegue a obra nacionalista de Getúlio Vargas, o golpe que o impede ter como sucessor um presidente da sua mesma linha, e chega ao fim outro ciclo de tentativa do empoderamento do Estado Nacional Brasileiro.

Na minha leitura, tivemos como projeto ou como ação, quatro oportunidades (ou átimos) de deixarmos a gestão colonizada por um Estado Soberano:

A primeira, que é objeto de recente livro O homem que inventou o Brasil: Um retrato de José Bonifácio de Andrada e Silva de Geraldo Luís Lino (Capax Dei, RJ, 2019) e dos pertinentes comentários do doutorando Felipe Quintas no Duplo Expresso (17/03/2019), coube a José Bonifácio de Andrada e Silva (ver J.B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, Companhia das Letras/Editora Schwarcz, SP, 2005).

A segunda, que está aguardando uma obra que articule o positivismo gaúcho, o tenentismo dos anos 1920, e desague e faça água com os acordos políticos da Revolução de 1930, mas chega a nossos dias pelos Manuais da Escola Superior de Guerra (ESG), denominaria da permanência do positivismo na política nacionalista brasileira.

A terceira, quando Getúlio Vargas consegue usar a fragilidade dos Impérios no advento da II Guerra Mundial, para implementar, ainda antes da deposição de 1945 e em seu mandato eletivo encerrado com o suicídio (1954), o mais completo Estado Nacional Brasileiro até então formalizado.

O quarto e último, surge no golpe de Costa e Silva em 1967, e vai aproveitar a fragilidade do modelo colonial estadunidense, o industrialismo dependente, para criar novos elementos formadores do Estado Nacional, com Emílio Garrastazu Médici (30/10/1969 a 15/03/1974) e Ernesto Geisel.

Iniciava com a sucessão de Geisel o desmonte, a desconstrução[DE2] do Estado Nacional Brasileiro. E se impõe, como também assinalam J. W. Bautista Vidal e Gilberto Felisberto Vasconcellos (Ocaso dos Combustíveis Fósseis e o Novo Colonialismo, in Brasil Civilização Suicida, Editora Nação do Sol, Brasília, 2000):

…a implantação no Brasil do Novo Colonialismo (que) começou em 1979 e fundamenta-se no predomínio absoluto do dinheiro de controle externo e na desvalorização dos recursos naturais locais e do mundo físico.

Para que entendamos o projeto nacional e a oposição, o golpe, que o inviabiliza, é preciso juntar as quatro vertentes que compõe tal projeto: a construção da cidadania, a projeção internacional, o projeto cultural e o domínio tecnológico industrial. E, como é óbvio, a estrutura organizacional do Estado que impeça seu domínio por um único e eventualmente antagônico segmento.

Nas duas ações para o Brasil Soberano, personalizadas por Getúlio Vargas e Médici-Geisel, houve falhas. Quer nos componentes do projeto, quer na forma de suas implementações. As forças que o destruíram agiram nestas falhas.

As forças opostas em 1945/1954 eram do industrialismo estadunidense e, em 1979, do financismo. Este, fortemente inglês, desvinculado de qualquer Estado Nacional, como a autonomia de Bancos Centrais e de instituições financeiras nacionais e internacionais.

Se a II Grande Guerra facilitou o projeto Vargas, a disputa pelo poder no mundo capitalista entre o industrialismo e o financismo, com clímax nos anos 1970, possibilitou as ações de Emílio Médici e de Ernesto Geisel.

Além da expressão política, descrita pelo General Sombra, há a expressão psicossocial, de enorme importância.

A Banca procurou desconstruir qualquer discurso que a colocasse como protagonista do golpe de 1979. Para tanto fez uso, entre outros, de dois jornalistas – André Gustavo Stumpf e Merval Pereira Filho. Ambos, ainda em dezembro de 1978, envolvendo e manipulando o jornalista Mino Carta, publicaram pela Editora Brasiliense (RJ, 1979), a obra de ficção “A Segunda Guerra: Sucessão de Geisel“, trazendo para a questão da abertura política a única luta desta sucessão.

Ao buscar confundir a candidatura de Costa e Silva, como Primeira Guerra, tentam colocar na mente do leitor que Figueiredo – o coronel que só foi a general-de-brigada com as promoções de março de 1969 –, já estava fadado a ser presidente desde a escolha de Médici.

Toda mídia, a comunicação de massa nas múltiplas manifestações, só apresentaram a abertura, o retorno dos cassados e a anistia “ampla, geral e irrestrita” como temas do embate sucessório. E interessava às partes – oposição e governo – esta polaridade. Ou por já estarem envolvidos com a Banca, ou pela ingenuidade do que ocorria no mundo, com repercussões inclusive no Brasil.

 

Os anos 1970

Esta década foi de fundamental importância para a derrota do industrialismo na luta que travava com o financismo.

A jugular do industrialismo atingida pela Banca foi o petróleo. Extremamente vulnerável, tanto pela ampla gama de usos, ou por estar presente na civilização do consumo de massa, ou pela indisfarçável poluição ambiental. Em 1973, o petróleo cru dispara de US$ 2,00 para US$ 13,00 o barril, e chega em 1979 ao valor de até US$ 52,00. O mundo inteiro se curva a nova realidade. Uns tentando a volta ao passado, outros investindo no futuro.

O Brasil optara pelo modelo clássico de desenvolvimento industrial com a chegada de Costa e Silva ao poder, em 1967. Este modelo se repetiria no I Plano Nacional de Desenvolvimento (I PND), com Médici, Reis Veloso  e Delfim. Prosseguiria no II PND de Geisel. A “ilha de prosperidade no oceano revolto” era o desconhecimento das novas forças emergentes.

Para mim, é impossível não lembrar a advertência que Oswaldo Aranha escreve como Prefácio ao Ásia Maior – O Planeta China, da escultora Maria Martins (Edição Civilização Brasileira, RJ, 1958), “a China foi transformada em terra de todos e cada vez menos dos chineses”. E, assim, a artista plástica não descreveria uma “revolução”, mas faria uma “revelação”, “na China, viste, observaste e amaste o Brasil”, esclarece Aranha.

Médici, olimpicamente, mantinha o projeto de industrialização brasileira, com as mesmas pessoas que serviriam a Geisel: João Paulo dos Reis Veloso e Marcos Pereira Vianna (presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico).

Devemos a eles o projeto e a execução competente do Programa de Substituição das Importações, base do desenvolvimento industrial brasileiro.

Já que mencionei Mino Carta, permitam-me citá-lo: “…é do conhecimento até do mundo mineral, que…” as indústrias de ponta incentivam o surgimento de outras indústrias e prestadoras de serviço, num saudável desenvolvimento que, a partir da economia, aumenta a demanda de mão de obra e gera empregos bem pagos e amplia o comércio local, nacional. Muda a sociedade.

Esta era a ideia que norteava os PNDs, mas a qual se opunha a Banca. Para esta, todos os ganhos deveriam fluir para o sistema financeiro, quer pela poderosa e corruptora arma da dívida, quer pela apropriação de todos meios de produção unicamente pelo capital financeiro. Denomino este conjunto de primeiro objetivo da Banca; o segundo é promover a permanente concentração de renda, objetivo autofágico e malthusiano.

É importante entender os objetivos da Banca e suas estratégias: criar e manter a dívida (veja que nenhum governo depois de Vargas se empenhou na auditoria da dívida), corromper todo sistema jurídico e político (obtido em elevado grau no Brasil, desde a Constituição de 1988), para que possamos entender, em parte, alguns eventos de pouca nitidez.

Enfatizo o domínio dos capitais oriundos de ações ilícitas – produção e distribuição de drogas, contrabando de armas e órgãos humanos – que estão cada vez mais se apossando do controle da Banca.

Desde o início dos anos 2000, vínhamos observando transformações no controle e direcionamento dos capitais da Banca. Estes saíram de Fundações, escritórios jurídicos e de contabilidade, para empresas captadoras de recursos e gestoras de fundos financeiros. Os gestores passam a ser profissionais e não ficam nas famílias bilionárias. Os conselhos também se profissionalizam e, assim, os capitais ilícitos empoderam-se.

Já nos parece bastante nítido atualmente, o que o percuciente analista Romulus Maya, co-fundador do Duplo Expresso, chamou “narco-evangelistão”. Recomendo enfaticamente que se leia “Geopolítica da droga, os EUA e os golpes na América Latina” , que está nesta atualíssima esfera da Banca e de suas ações no Brasil.

Muitas vezes as menções aos Estados – EUA, Israel – e não ao sistema, revelam uma realidade passada. Como o perigo comunista, sobrevivendo à forjada crise de 2008, ou os inquisidores medievais (nesta cópia protestante rediviva de 1553 ressuscitada por Olavo Carvalho – os neopentecostais, buscando cientistas e outros Miguel Servet para fazerem arder nas fogueiras. A dualidade que temos, como pontos extremos, são a Nação, a cultura e a soberania dos Estados, de um lado, e, de outro, a Globalização, a pasteurização, a homogeneização universal, o neoliberalismo. A seguir, publicaremos mais reflexões e melhores informações sobre o Governo Geisel.

 


* Pedro Augusto Pinho é avô, administrador aposentado.

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DE1 – Quem se interessar pelo livro British Imperialism 1688-2015, de Peter J. Cain e Antony G. Hopkins, poderá descarregar a versão inglesa na íntegra aqui.

DE2 – “Desconstrução” é uma palavra roubada por Jair Bolsonaro da corrente desconstrutivista apresentada pelo filósofo francês Jacques Derrida, mas que ele provavelmente a aplique apenas em um sentido literal de desmanche. O desconstrutivismo foi um movimento crítico que questionou o pós-estruturalismo de Michel Foucalt, e tornou-se conhecido depois da leitura por Derrida do ensaio “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas” em uma conferência na Johns Hopkins University, em 1966.

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