A Dopagem Social
Da Redação do Duplo Expresso,
Em mais uma demonstração de que é possível encontrar na máxima “a vida imita a arte” um paralelo com a história contemporânea, o antropólogo João de Athayde narra com o habitual brilhantismo uma impressionante sequência, combinada e comparada com elementos ligeiramente anteriores, de figuras que foram “infladas socialmente” para que pudessem cumprir um papel de caráter duvidoso em determinados recortes da nossa história.
O texto que segue foi lido no programa matinal Duplo Expresso da sexta-feira, 28 de abril, e denuncia a existência de uma “fábrica de super-heróis”. Como veremos, os “heróis” produzidos nesta “fábrica” acabam por cumprir missões nada éticas. Athayde prefere chamar de “Dopagem Social” o método utilizado para esta produção dos “dopados socialmente”, e sentencia:
A dopagem social é fruto do capitalismo pós-moderno, onde os resultados devem ser conseguidos e inflados de qualquer maneira e onde o real é vendido como simulacro para passar por inofensivo, mas termina por se mostrar cruamente real uma vez recolocado no seu contexto ou posição de força (vide a ascensão de Bolsonaro).
O recorte em vídeo da participação do antropólogo no Duplo Expresso também está disponível neste post:
Boa leitura!
Por João de Athayde*, para o Duplo Expresso
Chamo de dopagem social um fenômeno com o qual nos deparamos nas sociedades contemporâneas à caráter urbano e sobretudo midiático. É um fenômeno que se exprime essencialmente através do perfil de indivíduos que adquiriram certa notoriedade e/ou fortuna. Através desta noção de dopagem social procuro expor a maneira com que um certo perfil de indivíduos apareceu ou consolidou-se perante ao grande público ou em suas respectivas áreas de atuação.
A dopagem social se refere, em princípio, aos inícios de carreiras, ao período ascendente, mais do que aos indivíduos que têm já uma carreira, renome ou presença midiática bem estabelecida. Isto não impede, porém, que o termo possa ser aplicado a alguém que fez ou recebeu uma “dopagem social” para retornar à uma boa posição econômica, política ou à cena midiática depois de um período de relativo ostracismo. A dopagem social é uma força extra que alguém recebe, geralmente de maneira velada — mas às vezes abertamente — para “subir”, se estabelecer ou realizar certas ações. Os interesses econômicos, políticos e midiáticos que “dopam socialmente”, escolhendo um indivíduo que lhes pareça apto e apropriado, o fazem, logicamente, esperando que esse indivíduo cumpra o papel que lhe é designado. Por sua vez, este indivíduo, em geral, aprecia a posição alcançada. O típico dopado social vive em simbiose e colaboração com quem o dopou, mas podem existir situações em que o dopado é ao mesmo tempo colaborador e refém. Em outros casos, a pessoa pode também “dopar a si própria” realizando operações obscuras, antiéticas ou simplesmente se associando oportunisticamente com quem tem os meios ou o poder.
A ideia de definir uma dopagem social me veio a partir da observação, já de boa data, dos desvios do esporte profissional de alta esfera de competição, como as modalidades olímpicas ou o futebol dos grandes e milionários clubes. Porém a dopagem em busca de resultados esportivos não se restringe a esses esportes. Chamo-a de “social” justamente porque o que me interessa definir é uma dopagem que extrapole o âmbito esportivo, embora, que fique bem claro que o “esportivo” é certamente parte integrante do que chamamos “social” também.
Justamente o primeiro exemplo de dopagem social é de alguém que operou uma transposição entre a área estritamente esportiva para a midiática, chegando posteriormente à política. “Esportiva”, digo por assim dizer, se é que os concursos de bodybilding estilo “Mister Músculos“ podem ser considerados como sendo exatamente uma “prática esportiva”. Mas bem, vamos considerar que sim, para fins do desenvolvimento da noção que busco demonstrar. Trata-se de um ator que chegou a ser governador da Califórnia pelo Partido republicano entre 2003 e 2011, Arnold Schwarzenegger. Não é segredo que ele é nascido e criado na Áustria e que seu pai entrou voluntariamente no Partido Nazista, integrou as tropas SA[1], foi sargento do exército alemão e ferido na guerra com os Soviéticos. Posteriormente foi, como a maioria dos nazistas do baixo escalão, perdoado e acabou virando policial na Áustria do pós-guerra[2]. Certo: pai é pai, filho é filho e outra pessoa; mas fica a informação para o registro. O que vem ao caso é que Arnold Schwarzenegger obteve vitórias nos concursos de músculos usando anabolizantes esteroides, prática admitida pelo próprio. Fez então fortuna com revistas e academia de fitness, virou estrela de Hollywood, governador do estado da Califórnia, o mais rico e populoso estado americano. Uma vez bem estabelecido financeiramente, como personalidade pública e modelo para muitos jovens, Schwarzenegger passou a fazer campanha contra o uso de esteroides anabolizantes. Podemos nos perguntar se se trata de pura hipocrisia de quem não precisa mais do tipo de performance que praticava anteriormente. Talvez hipocrisia de quem utilizou as antinaturais e perigosas substâncias sobre a supervisão certamente bem remunerada de especialistas em medicina, coisa que a maioria dos simples cidadãos esportistas jamais terão acesso. No caso de Schwarzenegger a dopagem é literal, ou seja, “injeções na veia” ou nos músculos, mas o resultado é uma “dopagem social”, no sentido de que esta propiciou a ascensão de sua carreira.
Observemos também que, ironicamente, o almejado “Super-homem” da era nazista, que não vingou sob a liderança do também Austríaco Adolf Hitler, encarnou-se hollywoodianamente e arquetipicamente em um outro Austríaco, Schwarzenegger. Corpo e disciplinas (e frieza…) “arianas” como base; química e medicina de ponta como diferencial[3]; veiculação midiática épica e bélica empunhando as mais variadas armas, desde o imaginário heroico-medievalista nórdico em “Conan, o Bárbaro” até armas tecnológicas como em “O Exterminador do Futuro”. Além disso, notemos a convergência deste “super-homem”, do ponto de vista do físico e de seus auxílios tecnológicos (ou seja, associação com um grupo de cientistas ou artistas, produtores, técnicos de ponta que, em geral não são visíveis) com o mito do self-made Man, o homem que “se fez por si próprio”, transformado em símbolo do American Dream e da fantasiosa meritocracia-sem-Estado Norte-Americana. Vemos que quem chega ao governo do estado da Califórnia, (que aliás era parte do México até 1848) não é um dos milhões de imigrantes mexicanos, mas um germânico encarnando o arquétipo revisitado do “super-homem de raça ariana”. E o eleitorado popular votou nele por que seu mito de herói já estava devidamente estabelecido…
A dopagem social é fruto do capitalismo pós-moderno, onde os resultados devem ser conseguidos e inflados de qualquer maneira e onde o real é vendido como simulacro para passar por inofensivo, mas termina por se mostrar cruamente real uma vez recolocado no seu contexto ou posição de força (vide a ascensão de Bolsonaro).
Mas essa noção de Dopagem Social veio à tona no caso de José Padilha, diretor dos filmes “Tropa de Elite”, e sobretudo da série Netflix “O Mecanismo”. Padilha veio recentemente a público dizer que se arrependeu de ter realizado a série e feito a apologia de Moro. A série O Mecanismo, que é pura canalhada lava-jatista da mais ignóbil manipulação, em seu trailer diz que é “inspirada no maior escândalo de corrupção de todos os tempos”… ao que nós respondemos: tá bem… sob a égide de Tem-que-manter isso aí-Temer, Sérgio Banestado Moro e do capitão capitaneado das Fakenews, Bolso-milícia-naro, esses fantoches desescondidos que só agora o gênio muderno José Padilha descobriu que eram feios e “pró-milicianos”. Mas se arrepender a essa altura tudo bem, por que a matilha fascistóide já está no poder, metade da economia Brasileira foi destruída e Lula está bem trancadinho e envelhecendo na cadeia. Aliás, a série O Mecanismo manteve oculta seus principais produtores financeiros; e por que será? Que verdadeiros “mecanismos” estão em jogo? Triste é constatar a participação na série de alguns excelentes atores que tinham suas imagens associadas às personagens populares que interpretaram anteriormente. Não tem outro nome: a isto chamamos cooptação. Não eram pobres novos atores desconhecidos que tiveram aí suas primeiras oportunidades; são estrelas confirmadas da TV e do Cinema. Não tenho dúvidas quanto as qualidades técnicas de Padilha como diretor e isto aqui não vem ao caso. Questiono é a ideologia que transpassa essas suas obras e a conveniência de seu arrependimento retardatário. Um arrependimento que me parece mais um oportunismo, uma vez que percebeu que o barco moralista do Bolsonarismo está afundando e que a lava jato já mostrou, até para muitos dos direitistas e isentões que a apoiaram, sua verdadeira face de terrível alien. Sim, o alien do filme hollywoodiano, um monstro que vem de fora da Terrinha e que semeia os ovos da serpente nos incautos passageiros, destruindo-os a partir de seus próprios interiores, rompendo seus órgãos ou devorando-os, deixando a espaçonave-Brasil a vagar sem rumo.
Padilha usufruiu da Dopagem Social. Ou seja, agora que já recebeu subvenções para obras custosas que obtiveram grande repercussão midiática permitindo que seu nome se consolidasse como diretor, chora lágrimas de crocodilo clamando que não gosta mais de quem injetou seu doping. Ora, avaliando com a distância temporal que o contexto agora nos permite, vemos que já o empolgante filme e o até-então-inovador Tropa de elite I (2007) e mesmo o II (2010) são uma preparação de terreno para a mitologia bolsonarista, sobretudo para os que os absorveram sem um olhar crítico. Os filmes passam a ideia de que somente um grupo de quadros especiais da polícia, homens endurecidos por um rígido treinamento, bem armados, violentos ao ponto de cometer torturas, mas “incorruptíveis”, podem dar cabo aos grupos ligados ao tráfico no Rio, principalmente enfrentando a “bandidagem de morro”, para mostrar na sequência que os políticos também são bandidos. Eis outra forma que toma o arquétipo do épico herói nazi-fascista ao qual me referi anteriormente. Os “super-homens” aqui são esse super-policiais da Tropa de Elite, única solução para acabar ou controlar uma sub-raça de bandidos e favelados…
Porém como de praxe, no Brasil a realidade supera a ficção e agora, na idade do ferro e da ferradura do bárbaro conje Moro-Conan, ser híbrido de medievalismo e distopia, o UDNista da espada midiática, o campeão dos músculos da dopagem social e real exterminador do futuro, aquele que recebeu injeção de velocidade acadêmica para poder bater o recorde de conclusão de mestrado e doutorado juntos em 3 anos, proeza que nem o homem The Flash olímpico, o anabolizadíssimo Ben Johnson jamais conseguiu.
Moro, líder no Declathon[4] da malvadeza, aquele que desenvolveu um braço anabolizado tão longo que estando no Paraná alcançava São Paulo e até Rio de Janeiro e pernas tão longas que o levaram num salto triplo até Brasilia. Pois bem, sob a égide de sua “moral da águia”, do modelo chileno e do fascio littorio[5], todos os policiais foram empoderados com superpoderes jurídicos ganhando “licença para matar” com até oitenta balas qualquer não-pessoa, igualando-os assim a Bond, James Bond. Como no caso do agente 007, a licença foi concedida diretamente pela realeza para que se preste serviços relevantes para a coroa. Atentem para o detalhe de que, apesar da elegância e dos caros carros, o agente Bond ganhou de seu criador um eloquente nome de mordomo: James, aquele que mata para servir. E o que mais é um mordomo, senão o fiel servidor dos oligarcas?
Na minha terra tem mordomos
socialmente dopados.
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Notas:
1 SA: abreviação de Sturmabteilung (“Seção de Tempestade” ou “Seção de Assalto”), a violenta milícia paramilitar do partido nazista. A SA foi essencial na ascensão do nazismo, até o episódio conhecido como a Noite das Longas Facas (30/06/1934), onde mais de duzentos de seus líderes foram assassinados a mando de outra ala do Partido Nazista já bem estabelecida no governo alemão.
Foi um golpe dentro do golpe nazista, dando início ao verdadeiro período generalizado de terror que se estendeu até 1945. A matança executada pelas SS, a Gestapo e até a pela polícia urbana foi comandada para eliminar a concorrência interna com o chefe da SA, Ernst Röhm e seus próximos que ainda almejavam fazer algo, digamos, como “uma revolução nazista na sociedade”. Também foi feita para angariar o apoio do exército, que se sentia ameaçado pela força e influência crescentes da SA. O grupo mandatário, de Himmler e de Hitler, justificou o ato dizendo que se tratavam de decadentes morais e homossexuais e, sobretudo, numa falsa acusação de que a SA preparava um golpe de Estado. À partir deste evento, o numeroso contingente da SA foi incorporado como um corpo regular no exército alemão, perdendo sua autonomia. É nessa segunda fase que o pai de Schwarzenegger vai integrá-la, já que a Áustria só será incorporada a Alemanha em 1938 (Anchluss).
O ocorrido na Noite das Longas Facas é muito significativo porque nele a ala elitista da extrema-direita se desvencilha das forças populares brutalizadas que ela tinha manobrado para se alavancar ao poder, revelando toda sua verdadeira face.
O episódio é importante como exemplo comparativo e como alerta para o Brasil, que já experimentou anteriormente o recrudescimento de um golpe dentro do golpe (1964/1968) e corre atualmente o risco de viver novamente este gênero de situação.
2 https://usatoday30.usatoday.com/news/politicselections/2003-08-24-arnold-father_x.htm e também
https://en.wikipedia.org/wiki/Gustav_Schwarzenegger
3 Interessante notar que no inicio da carreira de campeonatos de músculos de Schwarzenegger o grande campeão — o qual Arnold admirava e não media esforços para ultrapassa-lo — era o Afro-Cubano Sérgio Oliva, apelidado de “O Mito” (https://en.wikipedia.org/wiki/Sergio_Oliva), que preciso, era anticastrista. A carreira de Schwarzenegger só deslanchou quando conseguiu vencer o Cubano. Não digo que exista um elemento da mitologia nazista neste caso, mas não posso deixar de observar que, raciocinando em termos de arquétipos, podemos dizer que o Schwarzenegger obteve nessa ocasião a revanche da “derrota Ariana” sofrida nos Jogos Olímpicos de 1936 em Berlim, no célebre confronto dos atletas germânicos com o Afro-Americano Jesse Owens.
4 Declathon ou Decatlo é uma competição olímpica de atletismo composta por dez provas.
5 Fascio Littorio ou Fasces, antigo símbolo Romano, reapropriado por Mussolini como símbolo fascista. https://pt.wikipedia.org/wiki/Fasces
* João de Athayde é antropólogo carioca residente na França (Aix en Provence). É doutor na Universidade de Aix-Marselha, França e vinculado ao IMAF (Institut des Mondes Africains/ Instituto dos Mundos Africanos) com pesquisa sobre as heranças culturais ligadas ao tráfico de escravos no contexto do Atlântico Negro, em especial sobre identidade, religião e festa popular entre os Agudàs, descendentes dos escravos retornados do Brasil ao Benim e Togo, numa perspectiva comparativa entre a África e o Nordeste Brasileiro. Ele participa e comenta no Duplo Expresso às sextas-feiras.
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