Direitos usados para vender shampoo

…ou a Cosmetologia dos Direitos Individualistas

por Marília Costa*, para o Duplo Expresso

Há pouco mais de uma semana, fui surpreendida por um comercial de uma marca de cosméticos capilares que trazia como protagonista a cantora Preta Gil. O comercial capturou minha atenção por, dentre outros motivos, tratar de um tema que me toca especialmente: A tentativa de rompimento com os padrões estéticos impostos às mulheres.

Pode-se dizer que, para esse tipo de proposta, o comercial é bom porque causa o impacto que dele se espera. E mais, captura a atenção de seu potencial público alvo, cumprindo perfeitamente seu objetivo. Ele fala a linguagem que a mulher contemporânea, cansada de rótulos, de imposições estéticas, de se sujeitar a estereótipos que sempre lhe foram impostos, quer ouvir.

Com uma música energética de fundo, o texto forte interpretado pela artista vai sendo deixado frase a frase, cuidadosamente espaçadas no tempo para que aquelas palavras reverberem nos interstícios, amplificando seu significado. Simultaneamente, sucessivas imagens de mulheres das mais diversas estéticas nos são apresentadas, criando uma atmosfera de força, impetuosidade, liberdade, autonomia, enfim, tudo aquilo que se espera que seja o ideal da mulher moderna.

Sou, como muitas de nós, a mulher para quem esse comercial se dirige – e atinge. Por isso, confesso que fiquei entorpecida até quase o final da peça publicitária. Fui tomada de uma quase emoção que eu tentava conter, sobretudo por uma vergonha instintiva, presente mesmo naquele momento solitário. Era a vergonha de saber que, apesar da minha visão política e do conhecimento jurídico sobre as relações de consumo e sobre a evolução dos direitos humanos, eu havia sido vítima do que poderíamos chamar de “apropriação comercial de pautas reivindicatórias dos direitos individualistas pelo mercado”.

O Deus-Mercado, onipresente que é, apresenta-se das mais diversas formas. Às vezes, vem coberto sob o manto da invisibilidade que nos permite apenas sentir o peso de sua mão. Mas em outras, chega de forma mais sorrateira, mimetizando lutas por direitos da contemporaneidade, aproveitando cada “nicho”, cumprindo seu papel divino: Estar em todos os lugares e não estar em nenhum.

O Direito por trás dessa publicidade é o chamado “Direito à Diferença”, tratado há tempos nas universidades por grandes nomes, como o do catedrático professor de Coimbra – Boaventura de Sousa Santos. Ele sintetizou brilhantemente esse conceito na frase[DE1]:

Temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.

É preciso que se reconheça que as peças publicitárias (assim como qualquer produção humana) são um retrato feito sob determinada perspectiva no tempo em que foram produzidas. Contudo, não podemos ignorar que a mercantilização de temas estabelecidos faz com que eles sejam etiquetados com rótulos mais próximos da perfumaria que da política e da luta por direitos, como é o presente caso.

Certamente, essa apropriação pelo mercado da luta por direitos não é um fato novo, muito pelo contrário. Apesar de vivermos em um país cuja população preta e parda constitui a maioria, a indústria de cosméticos capilares só descobriu que cabelos crespos e cacheados precisavam de “cuidados especiais” depois que percebeu na luta pelo direito de usar o cabelo natural uma tendência da moda. O mesmo que aconteceu como as revistas de moda, que começaram a achar pessoas não brancas “estilosas”.

Porém, não foi somente o mercado que percebeu o quanto essas lutas poderiam ser convertidas em dinheiro. Setores da política perceberam que elas poderiam render também um capital… político. De um lado, a Esquerda tomou como prioridade a luta pelas chamadas pautas identitárias, conseguindo eleger boa parte de sua bancada com quadros ligados a essas questões. Por seu turno, a Direita utilizou-se do mesmo discurso, mas em direção oposta, para entreter a Esquerda enquanto dilapidava nossa incipiente democracia.

Em ambos os casos, nós que vivenciamos a necessidade real de mais direitos, tanto os sociais, quantos os identitários, fomos os fregueses que consomem aquilo que determinam os fornecedores. Sem uma real possibilidade de escolha, compramos o que estava à venda, o que estava disponível no momento. Assim como na década de noventa só se comprava shampoo para cabelos cacheados (mesmo que raramente estavam disponíveis nas prateleiras) porque eles ostentavam a “qualidade” de reduzir o volume, hoje estamos entre a Direita que tem como Ministra da Mulher – seja lá o que isso for – uma pastora dizendo que mulheres de Esquerda são feias, e ainda há uma Esquerda que compra esse debate inútil e claramente diversionista.

Como indivíduos inseridos em uma sociedade capitalista baseada na aquisição massiva de bens e serviços, devemos ter em mente que somos consumidores não somente nos momentos em que pagamos determinado valor por um produto ou serviço. Somos consumidores quando compramos abstratamente uma ideia. Consumimos com o nosso modo de vida, nossas convicções filosóficas, políticas e religiosas. Consumimos até quando aderimos, dependendo da forma e da plataforma, a uma campanha de luta por direitos, por mais estranho que isso possa parecer.

Visto isto, precisamos nos questionar o motivo pelo qual esses direitos identitários nos enfeitiçam e nos entorpecem tanto. Mais importante ainda: Por que o mercado reconhece e utiliza esses direitos em suas campanhas publicitárias, enquanto os direitos sociais agonizam no mais absoluto ostracismo mercadológico? Por que alguns direitos são comercializáveis e outros não?

Para tentar responder a essas questões, recorro a Norberto Bobbio, que nos adverte que passamos nos séculos XVII e XVIII, num sentido filosófico-histórico, de uma inversão da perspectiva organicista para individualista de sociedade. Antes, a sociedade era um todo, um grande organismo formado por diversas partes, partes essas que apesar de a constituírem, isoladamente possuíam pouco ou nenhum valor. Com o individualismo, cada uma dessas parte, ou seja, cada indivíduo, passou a ser um valor em si mesma. Esse mesmo individualismo forneceu as bases para o Estado de Direito, para o liberalismo e para o capitalismo, mas também foi o que permitiu que todo o conjunto dos direitos humanos fosse elaborado.

Nesse sentido, Norberto Bobbio afirma em sua obra A Era dos Direitos que a…[DE2]

…característica da formação do Estado Moderno, ocorrida na relação entre Estado e cidadãos: passou-se da prioridade dos deveres dos súditos à prioridade dos direitos do cidadão, emergindo um modo diferente de encarar a relação política, não mais predominantemente do ângulo do soberano, e sim daquele do cidadão, em correspondência com a afirmação da teoria individualista da sociedade em contraposição à concepção organicista tradicional.

Assim, fica claro que os direitos de índole individualista exercem extremo poder sobre as pessoas até hoje porque foi por meio deles que a esfera individual passou a ser entendida como inviolável, como um patrimônio jurídico tutelado pelo Estado. Foi a partir daí que o indivíduo conquistou direitos básicos e mínimos para existir com dignidade, e não apenas como meio para a consecução de um suposto bem comum.

Bobbio descreve essa mudança de perspectiva, mostrando como se refletiu em vários aspectos da sociedade. Diz o autor:[DE3]

A mesma inversão ocorre com relação à finalidade do Estado, a qual, para o organicismo, é a concórdia ciceroniana (a omónoia dos gregos), ou seja, a luta contra as facções que, dilacerando o corpo político, o matam; e, para o individualismo, é o crescimento do indivíduo, tanto quanto possível livre de condicionamentos externos. O mesmo ocorre com relação ao tema da justiça: numa concepção orgânica, a definição mais apropriada do justo é a platônica, para a qual cada uma das partes de que é composto o corpo social deve desempenhar a função que lhe é própria; na concepção individualista, ao contrário, justo é que cada um seja tratado de modo que possa satisfazer as próprias necessidades e atingir os próprios fins, antes de mais nada a felicidade, que é um fim individual por excelência. (…) O individualismo é a base filosófica da democracia: uma cabeça, um voto.

Pela dimensão que possui o individualismo e pela forma como ele moldou nosso mundo ocidental, é fácil compreender o fascínio exercido pelas pautas intimamente ligadas a ele. Agora, sobre o reconhecimento desses direitos pelo mercado e sua apropriação como material publicitário, é preciso lembrar que os outros direitos que são por ele deixados de lado – os direitos que não podem ser usados nas propagandas –, são os direitos sociais. Ou seja, aqueles que, para serem reivindicados, necessitam de uma amálgama social, de laços unindo indivíduos em uma coletividade. Necessita de união entre as pessoas que compõem a sociedade, de um reconhecimento mútuo de pertencimento.

Além disso, os direitos sociais são aqueles que têm o poder de abalar as estruturas do capitalismo e do mercado. Os direitos sociais são aqueles que limitam a voracidade do capitalismo, protegendo a sociedade do vilipêndio das riquezas e da exploração sem limites do trabalhador. A função desses direitos é tentar, mesmo que minimamente, amenizar a extrema desigualdade de forças entre os setores, de um lado detentores de poder e capital, e de outro as massas.

Assim, diante de direitos que têm o potencial de criar na consciência dos indivíduos vínculos sociais, tornando o grupo como um todo mais forte, e diante de direitos que podem questionar e abalar os pilares de exploração e lesão de direitos sobre os quais está assentado, jamais o mercado admitiria que tais direitos fossem usados como atrativos para o consumidor. Basta imaginar como seria contraditório uma empresa utilizar os direitos trabalhistas conquistados recentemente pelas domésticas como exemplo de empoderamento feminino. Despertar esse tipo de consciência colide com os próprios interesses empresarias e da elite que comanda o mercado.

No documentário Requiem for the American Dream (“O Fim do Sonho Americano”, de Peter D. Hutchinson, Kelly Nyks e Jared P. Scott, USA, 2015)[DE4] sobre os dez princípios de acumulação de riqueza e poder, Noam Chomsky afirma que uma das formas de viabilizar essa acumulação absurda que vemos hoje é a quebra da solidariedade social.

Por não mais nos percebermos como integrantes do tecido social e nos fundarmos em um individualismo perverso, passamos a nos ver como uma ilha, onde o indivíduo se basta, pois ele é o empresário de si mesmo, como ensina Marilena Chauí. Ele sozinho, o indivíduo munido do único combustível necessário – sua força de vontade –, pode conquistar o mundo. E é nesse ponto que o reforço e o reconhecimento das pautas individualistas ganham espaço, pois funcionam como um ciclo que se retroalimenta. E o reforço aos direitos sociais, pela sua estrutura coletiva, fragilizam esse ciclo.

Dessa forma, é impossível deixar de destacar que o mesmo fenômeno que permitiu o florescimento dos direitos humanos e, como salienta Bobbio, viabilizou a transformação das relações soberano/súditos para Estado/cidadãos, tem feito com que, em nossos dias, o cidadão perca essa condição. Hoje passemos por uma nova transformação dessas relações: De Estado/cidadãos para mercado/consumidores.

Essa nova mudança de perspectiva retira do indivíduo sua importância na produção de riquezas e o coloca apenas como mero expectador que consome os produtos e serviços colocados para ele no mercado. Não somos mais os operários nem trabalhadores, que geravam riquezas com sua força de trabalho, e possuíam direitos sociais capazes de lhes proteger da exploração. Somos autônomos, CNPJ’s, somos pequenos empresários, colaboradores, somos terceirizados. Somos todos aqueles que o capitalismo quer convencer que não participam do jogo, apenas lutam para ganhar o suficiente para consumir o que a sua faixa de renda permitir. Inclusive, a ilusão de ter direitos, mas somente aqueles que o mercado permita e reconheça.

O resto é perfumaria socialista.

 


* Marília Costa é advogada, especialista em direito civil e processo civil.

DE1 – Citação encontrada na pág. 53 de SANTOS, B. S.; Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2003.

DE2 – Citação encontrada na pág. 7 de BOBBIO, N.; A Era dos Direitos; Rio de Janeiro: Ed Campus/Elsevier; 2004.

DE3 – Citação encontrada nas págs. 30 e 31 de BOBBIO, N.; A Era dos Direitos; Rio de Janeiro: Ed Campus/Elsevier; 2004.

DE4 – Documentário legendado disponível em:

 

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