Registro físico do voto: uma imposição republicana e constitucional

Por Samuel Gomes, para o Duplo Expresso

1- Desde que fui convidado pelo senador Paulo Paim para debater na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal o sistema de voto eletrônico vigente no país sob o prisma dos direitos políticos do cidadão (https://duploexpresso.com/?p=92852 ), passei a ser um soldado da luta pelo direito do eleitor brasileiro de ter a garantia de que o seu voto foi computado da maneira como ele o expressou: para um determinado candidato ou sigla partidária, nulo ou em branco.

2- Eu já acompanhava o assunto desde as primeiras denúncias do Brizola e das iniciativas democráticas do senador Requião, na década de 90, em seu primeiro mandato de senador (https://www.folhadelondrina.com.br/politica/projeto-de-requiao-que-impoe-contrafe-e-aprovado-em-ccj-201318.html), mas sou agora um militante da causa do voto impresso como contrafé do voto eletrônico.

3- Quanto mais estudo a matéria, mais me convenço da iniquidade, irracionalidade e inconstitucionalidade do sistema de votação e apuração exclusivamente eletrônica do voto. O sistema atual é incompatível com a República e sua Constituição. Trata-se de uma vergonhosa jabuticaba brasileira, que somente se mantém em pé pela tirania do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal e pela pusilanimidade do Congresso Nacional e dos partidos políticos.

4- O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, dentre tantos outros países, considerou inconstitucional o uso de urnas eletrônicas nas eleições de 2005, uma vez que “a eleição como fato público é o pressuposto básico para a formação democrática e política”. E em que implica o conceito da eleição como fato público? Implica que “qualquer cidadão possa dispor de meios para averiguar a contagem de votos, bem como a regularidade do decorrer do pleito, sem possuir, para isso, conhecimentos especiais”. (http://www.dw.com/pt-br/tribunal-alem%C3%A3o-considera-urnas-eletr%C3%B4nicas-inconstitucionais/a-4070568)

5- Dizer que a eleição é fato público significa afirmar que o único ato secreto do processo de captação e apuração dos votos é o momento da manifestação da vontade do eleitor. O voto é secreto. Todo o restante, todos os demais atos que antecedem e sucedem à manifestação do voto pelo eleitor são públicos. São, a rigor, atos administrativos cuja legitimidade suporta-se, dentre outros, na obediência ao princípio da publicidade. Se não é auditável não é público. Se não é público não é auditável, republicano, constitucional.

6- Não bastasse o fato inegável de que o sistema totalmente eletrônico de voto e apuração das eleições liquida o direito do cidadão a um sistema eleitoral confiável, como declarou o Tribunal Federal Constitucional alemão, a sociedade brasileira é surpreendida com a denúncia de que o sistema imposto pelo Tribunal Superior Eleitoral elimina inclusive o exercício da fiscalização pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário. É o que alerta a Associação Nacional dos Peritos Federais Criminais por meio de robusta nota técnica.

7- Na “NOTA TÉCNICA: Impossibilidade de fiscalização efetiva das eleições realizadas por meio de urnas eletrônicas, sem voto impresso, por parte do Cidadão, do Ministério Público e do Poder Judiciário”, os peritos federais criminais afirmam peremptoriamente: “As urnas eletrônicas possuem intrincado e complexo funcionamento que requerem conhecimento técnico-eletrônico especializado. Em face da ausência desse conhecimento, os membros do Ministério Público e do Poder Judiciário não têm como exercer sua função constitucional de fiscalizar a lisura de um sistema eleitoral eletrônico que não contemple a impressão do voto do eleitor.” ((https://docs.google.com/document/d/1JwHP7uIlcIU0sQ-_OZzWWi3BOq3zK1IZNHirmfwycmQ/edit ). )

8- A tenaz resistência do aparato burocrático que se organizou e se reproduz em torno do sistema eleitoral eletrônico à obviedade de que o sistema não é auditável pelos comuns dos mortais, sejam togados ou não, esconde histórias escabrosas, melhor contadas pelos scholars que, há décadas, dedicam-se ao tema, dentre os quais os professores doutores Pedro Antonio Dourado de Rezende, do Departamento de Computação da Universidade de Brasília, e Diego de Freitas Aranha, do Instituto de Computação da Universidade de Campinas, que participaram de testes de segurança com as urnas no ambiente do Tribunal Superior Eleitoral (https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/03/06/teste-feito-por-equipe-da-unicamp-revelou-falhas-de-seguranca-nas-urnas-eletronica).

9- Em duas situações distintas, separadas por um espaço de tempo de cinco anos, o professor Diego Aranha e outros técnicos da Unicamp conseguiram violar o supostamente indevassável sistema eleitoral eletrônico. Registre-se que a devassa do sistema alardeado como indevassável foi realizado em condições amplamente desfavoráveis, piores do que trabalhariam verdadeiros fraudadores, devido a restrições técnicas e de tempo impostas pelo TSE para os testes. Ainda assim, obtiveram os seguintes incríveis e aterrorizantes resultados: (i)  alteração de mensagens de texto exibidas ao eleitor na urna para fazer propaganda a um certo candidato, (ii) progresso no intento de desviar voto de um candidato para outro (que não teve êxito total por falta de tempo dado pelo Tribunal para testar o ataque) e (iii) pasme!, quebra do sigilo do voto, demonstrando que era possível recuperar os votos da urna em ordem, sabendo exatamente como votaram o primeiro, o segundo, o terceiro eleitores e assim sucessivamente.

10- Nada disso sensibilizou o fundamentalista Tribunal Superior Eleitoral, estranha e insanamente aferrado às suas próprias certezas ou aos interesses inconfessáveis de uma trama de burocratas e comerciantes que parece terem capturado a instituição. A todo argumento técnico e político, a toda prova de que o sistema é vulnerável, o TSE responde, batendo no peito: “La garantia soy yo!” Mas ninguém se convence.

11- A resistência do conglomerado burocrático, judicial e empresarial (comercial) que se alimenta do secretismo do sistema e do mito de sua suposta inexpugnabilidade suporta-se numa situação que é por si escandalosa: a existência da exageradamente poderosa Justiça Eleitoral nos contornos magníficos que assumiu no Brasil. Não é aceitável que uma mesma instituição regule o processo eleitoral expedindo regras, execute o regramento que urdiu e julgue a legitimidade tanto das regras que engendrou como da sua execução. O caso das urnas eletrônicas é exemplar: o Tribunal Superior Eleitoral criou as urnas, mandou-as fabricar, aprovou a fabricação, testou-as, aprovou os testes que fez, implementou-as e julga as irresignações que sejam opostas contra a inexistência de registro físico dos votos depositados eletronicamente pelos eleitores.

12- O poder de vida e de morte de que a Justiça Eleitoral dispõe sobre os partidos e os mandatos parlamentares e governamentais dificultam sobremaneira que políticos que dependem de eleições para acesso e manutenção dos mandatos apresentem a coragem que a cidadania espera para resistir à incontrolável vontade de poder da insaciável Justiça Eleitoral. A Justiça Eleitoral tem, de fato, colocado de joelhos tanto o Poder Executivo e o Poder Legislativo. Mas, de quando em quando, o Congresso Nacional faz valer a sua autoridade derivada da legitimidade haurida do voto popular. Fiquemos com dois exemplos. O primeiro é o episódio da anulação por decreto legislativo da resolução do TSE que regulava o tamanho das bancadas estaduais no Congresso Nacional é um notável exemplo de coragem institucional do Parlamento (http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/458112-CAMARA-ANULA-RESOLUCAO-DO-TSE-QUE-ALTEROU-BANCADAS-DOS-ESTADOS.html).

13- O segundo ocorre agora, na exigência legal do registro físico do voto. A mais recente afronta à vontade popular e ao Parlamento de parte da Justiça Eleitoral é a Resolução do TSE nº 23.521, de 1º de março de 2018, que “regulamenta os procedimentos nas seções eleitorais que utilizarão o módulo impressor nas eleições de 2018.” Através da referida Resolução, o Tribunal simplesmente recusa cumprimento ao art. 59-A da Lei 9.504/97, assim vazado:

Art. 59-A.  No processo de votação eletrônica, a urna imprimirá o registro de cada voto, que será depositado, de forma automática e sem contato manual do eleitor, em local previamente lacrado

Parágrafo único.  O processo de votação não será concluído até que o eleitor confirme a correspondência entre o teor de seu voto e o registro impresso e exibido pela urna eletrônica

14- Embora de clareza solar, o referido dispositivo legal passou a sofrer inaudita resistência do aparato de controle e judicial. A Procuradoria Geral da República (!) acionou uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5.889) e o Tribunal Superior Eleitoral esgrima frágeis sofismas para recusar-lhe cumprimento.

15- A Resolução nº 23.252/2018, que estabelece o registro do voto será realizado em apenas 30 mil das 600 mil urnas nas eleições deste ano. O art. 59-A da Lei nº 9.504/97, que o TSE não quer que “pegue”, foi vetado pela Presidente Dilma e revigorado pela derrubada do veto por 71% dos congressistas. Ainda assim, o Tribunal não quer dar-lhe cumprimento. O Tribunal acha que não é o caso de dar cumprimento à lei aprovada pelo Congresso Nacional. Não é caso, pensa o Tribunal, e brada: “La garantia soy yo!”

16- Diante da violação da lei pelo Tribunal Superior Eleitoral, o Congresso Nacional reagiu em defesa das suas prerrogativas e do direito do eleitor a um sistema eleitoral confiável e capaz de ser auditado. O senador José Medeiros, em representação de um conjunto de senadores que se opõe à insubordinação do Tribunal Superior Eleitoral, dentre os quais o senador Roberto Requião, propôs em 6 de junho de 2018 um projeto de decreto legislativo para sustar os efeitos da Resolução nº 23.252/2018. O projeto é proposto para “resguardar a competência legislativa do Congresso Nacional em face das atribuições normativas de outros poderes, conforme assevera o art. 49, XI, da Constituição Federal de 1988.” Ou seja, o Tribunal Superior Eleitoral, resolveu legislar, substituindo o Congresso Nacional e este reage em defesa das suas prerrogativas e da soberania popular.

17- Outra linha de ataque contra o Poder Legislativo vem da Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Procuradora Geral da República Raquel Dodge contra o art. 59-A da Lei 9.504/97, a regra legal que estabelece a impressão do voto. Ao invés de defender o aprimoramento do sistema eleitoral, seu caráter público e a ampliação dos mecanismos de controle da lisura das eleições, o Ministério Público resolve investir contra a lei que assegura a fiscalização e a lisura das eleições. É tudo muito estranho. Cada vez fica mais claro que os órgãos do sistema de controle e punitivo do Estado se autarquizaram, afastaram-se do corpo do Estado e da Nação e amalgamaram-se numa estranha e semi-secreta trama de interesses corporativos e estamentais compartilhados.

18- Na (ADI) 5889, a Procuradoria Geral da República incrivelmente vê o que ninguém mais vê: a impressão do voto, que será colocado automaticamente (e sem que o eleitor possa tocá-lo) numa urna acoplada à urna eletrônica, ameaçaria o sigilo do voto (https://www.jota.info/stf/do-supremo/dodge-questiona-no-stf-voto-impresso-nas-eleicoes-de-2018-05022018). É um “argumento” incrível, que fica marcado indelevelmente nas sandices mais inesquecíveis da história republicana

19- Nestes tempos complexos e perigosos de guerra híbrida, em que o Brasil é atacado para a rapinagem de suas riquezas naturais e inviabilização do seu projeto de desenvolvimento soberano, é mais do que nunca indispensável salvaguardar hígidos os mecanismos de expressão da soberania popular, porque só por meio dela enfrentaremos os nossos inimigos. É uma sandice e uma temeridade absolutas fiar a segurança do processo de escolha governantes às crenças, reais ou fake, deste ou daquele estamento burocrático judicial num sistema exclusivamente eletrônico de escolha dos governantes. Tudo o que não precisamos nesta crise é uma desconfiança generalizada no sistema eleitoral, pedra de toque do processo democrático.

20- É da democracia, portanto, que estamos falando. Esta é uma luta que vale a pena. Não é uma luta fácil. A resistência insana – e estranha, para dizer o menos – que a Justiça Eleitoral opõe ao direito do eleitor de votar num sistema confiável e auditável se apresenta quase invencível. Quase. Mas será vencido. É chegada a hora de colocar por terra o mito da inexpugnabilidade do sistema eletrônico de votação e apuração eleitoral. É chegada a hora da transparência, da fiscalização, da auditagem. É chegada a hora de colocar a Justiça Eleitoral no seu devido lugar, o da submissão à Constituição. É chegada a hora da República e de sua Constituição.

21- É chegada a hora da soberania popular.

Samuel Gomes é mestre e doutorando em Filosofia do Direito, advogado em Brasília, assessor parlamentar no Senado Federal e comentarista de assuntos institucionais do Duplo Expresso

 

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