O Saco de Pedras
Arte e texto por Geuvar Oliveira*, para o Duplo Expresso
Meados dos anos 80, Carolina – estado do Maranhão –, divisa com Tocantins. Entre os dois estados, o caudaloso Rio Tocantins. Eu deveria ter 16 para 17 anos e, além de desenhar, tinha outras atividades recreativas: jogar bola no fim das tardes com os amigos em um campinho de terra próximo, pescar, tomar banho nos riachos que tinha dentro ou em volta da cidade.
Outra atividade não muito costumeira era passarinhar ou caçar passarinho, matar e comer com farinha, sem exatamente ter a necessidade, apenas por vadiagem. Sempre ia em grupo para essa atividade, mas naquele determinado dia chamei os parças e nenhum se dispôs a ir. Então, resolvi ir sozinho. Enchi um saco de açúcar Cristal com as melhores pedras, escolhidas uma a uma, e me dirigi ao lugar.
Ficava distante da minha casa, quase uns nove quilômetros. Andei pelo mato. Era o mesmo caminho por onde íamos de vez em quando participar do torneio de futebol entre bairros. Meu time sempre perdia, quando não, empatava. Eu era zagueiro (mas não me responsabilizem!).
O caminho parecia longo devido ao fato de ir sozinho. De vez em quando, jogava uma pedra em um passarinho, com a baladeira (estilingue). Hoje, baladeira é a mulher viciada na noite!
Abre parênteses
Quando menino de 8 anos, presenciei um fato bem fora do contexto, no qual estava inserido. Fiz uma traquinagem e minha mãe me deu um castigo, mandando-me deitar mais cedo. Naquele momento a casa estava sem energia e nós estávamos na porta esperando sentados, conversando. Eu tinha puxado a cadeira e a menina caiu. Isso aconteceu em São Luiz – capital do Maranhão. Esse estado é um dos que tem mais concentração de religiões de matriz africana. Codó – uma pequena cidade perto da capital – é a mais famosa por ter a presença muito forte de praticantes da Umbanda. Voltando, castigo imposto, eu me dirigi aos aposentos. Eu e meu irmão mais novo que eu, alumiados pela luz de uma lamparina, enquanto balançávamos cada um em sua rede, cantávamos cantigas que aprendêramos em tempos idos.
Então, por um instante, pensei ter ouvido alguém bater na mesa da cozinha. Mas não havia ninguém lá. As batidas acompanhavam a cantiga. Parei subitamente e perguntei se meu irmão tinha ouvido também, ele confirmou. Para confirmar, recomecei a cantar e, novamente, ouvi o tamborilar na madeira. Veio o medo, e disparamos corredor a fora. Fim do corredor, a porta de saída era à direita. Os negros apavorados bateram na parede e, tal qual um par de gnus, pularam para fora, assustando as pessoas que ainda conversavam na frente da casa. Todas iluminadas por uma lua que já não lembro qual, mas ninguém vai ficar na porta da rua no escuro, não é mesmo?
Minha mãe já perguntou: – O que foi agora?
Pronto para o próximo castigo, no sufoco e parecendo jogador de futebol dando entrevista em final de partida, relatei o ocorrido. Ela ficou muda e, para o nosso alívio, a menina que estava com ela na porta disse que viu uma mão tentando me pegar naquele instante em que batemos na parede e pulamos para fora. Então ela deixou que ficássemos ali fora também até a hora de dormir. Estávamos esperando meus dois irmãos mais velhos que tinham ido com o vizinho pescar caranguejos. Meu pai – um militar –, não estava na hora. O vizinho era adepto da Umbanda, além de médium. Quando chegaram, repetimos o relata do caso a ele e o cidadão falou calmamente: – Não fica com medo, não! Eles queriam brincar contigo!
As palavras do vizinho de alguma forma me tranquilizaram e eu dormi menos desconfiado. Se a memória não me engana, era o ano de 1977. Sim, eu sou velho!
Fecha parênteses
Já estava chegado ao local onde caçava os passarinhos. A copa da árvore parecia uma enorme cabeleira black power, tão em voga nos idos dos 70. A copa verde topava no chão, no qual, por vários metros, deixava um tapete de folhas secas. Talvez servisse para avisar aos passarinhos quando chegávamos com nossas baladeiras… Era uma grande árvore como se fosse uma grande oca vegetal circular. Dentro, o caule grosso que sustentava os galhos. Eles subiam e, depois, caiam até a rés do chão.
Aproximei-me como um gato do mato até a parede verde. Olhei para dentro e os passarinhos pequenos pareciam em festa. Cantavam e voavam de galho em galho. Olhei mais para cima e vi um grupo de bem-te-vis e fogo-pagos. Agachei-me, pus o saco de pedras ao meu lado, e comecei a disparar contra as aves. Uma, duas, três pedras. Pegava de dentro do saco plástico, esticando a baladeira e disparando.
Havia vários passarinhos. Não olhava para o saco, para não perdê-los da mira, caso saíssem do alvo por causa dos disparos. Meu irmão é que era bom com as pedras. Quando ele disparava, a cabeça da rolinha ia para um lado e a pedra pro outro.
Depois de alguns disparos, baixei a mão uma vez mais para encher o couro da arma. Mantendo os olhos focados nos passarinhos. Bati com a mão no chão e não achei o saco. Tirei os olhos dos meus alvos e, rapidamente, olhei para o chão. Cadê o saco? O saco sumira; não estava mais lá! Esqueci por um instante os bichos emplumados e procurei-o em volta do meu corpo e no entorno imediato. Nem sinal de saco! Não houve pé de vento ali. Nem pé humano. Ninguém se aproximou. Eu teria ouvido o farfalhar naquela quantidade de folhas secas. Fiquei pensando: Como teria sumido?
Então fui para dentro da parte interna da imensa copa da árvore. Olhei para cima e vi uma enorme cobra verde deslizando pelos galhos. Talvez tentando, do jeito dela, pegar um passarinho também. Ou esperava por mim, não sei. Saí de lá e fui embora. Perto do lugar existia um cemitério que está lá até hoje. Voltei pelo mesmo caminho, com uma sensação estranha sobre o acontecido. Mas ainda era muito inexperiente para entender o que tinha acontecido naquele momento.
Cheguei em casa e contei para todos, mas ninguém deu muita importância: – Sério? Nossa!
Tudo bem, afinal a experiência foi minha. Desde aquele momento da batida na mesa e do sumiço do saco de pedras, que eu venho tentando entender onde estou realmente. Por que houve esse contato tão capital?
Já recentemente, estudando Mecânica Quântica, obtive parte dessas respostas. Hoje, mais consciente, compreendo melhor esta existência, esta dimensão. Coisas parecidas repetiram-se ao longo da minha vida até agora, mas isso eu contarei em outra oportunidade. Mas só se você prometer que não vai ficar com medo…
* Geuvar Oliveira é maranhense de Imperatriz, mas mora em Palmas – TO. Funcionário público, cartunista, quadrinista, escritor. Tem várias obras publicadas, entre as mais conhecidas estão: Mugambi (da qual está produzindo o último capítulo), Liga do Cerrado e Viagem ao Centro da Gramática. Formado em Letras e Arte Cênica, trabalhou em alguns jornais impressos do Tocantins como cartunista. Atualmente, publica suas charges nas redes sociais e aqui na Caixa de Pandora do Duplo Expresso, porque os jornais têm medo de fazê-lo.
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