Vol. 3: Quem tem medo de índia brava e nega maluca?
ESPECIAL CONSCIÊNCIA NEGRA:
RACISMO E HERANÇA AFRICANA
Vol. 3: Quem tem medo de índia brava e nega maluca?
– Post originalmente publicado em 31/7/2016.
Por Romulus
– Primeiro, nosso “senhor da guerra”, junior50, diz o que é religião.
– Igreja Católica com “padre” mulher, padre e casamento gay, contracepção e eutanásia. Sonho? Que nada: realidade aqui na Europa.
– Só no Brasil: “muito prazer, pai Davi Cohen de Oxalá ao seu dispor. Shalom e saravá!”
– O menino “branco”, que tinha medo de índia brava e de nega maluca, confrontado com o armário mal fechado que guardava – também mal – um segredo.
– E fechamos com arte sim, senhor: a atriz Fernanda Torres conta da sua tia mãe de santo (!), Dercy Gonçalves conta do seu encontro com uma Pombagira mal-humorada e Clara Nunes encerra: o “Canto das três raças”.
– Viva o Brasil: amem / saravá / namastê / shalom / salaam / evoé! … … … (complete você)
* * *
Ainda não embarcou na viagem cultural desta semana?
Ainda
não leu o “Vol. 1: Golpe, dê licença:
Santería, Candomblé e Calypso pedem passagem” e o “Vol. 2: ‘Traga sim o amado em 7 dias: mas ninguém pode saber, Ok?’”?
Certamente a nova aula do nosso “senhor da guerra” particular daqui do GGN, junior50, atiçará a curiosidade.
Generoso novamente, divide conosco, sob o título “Religião”, pontos fulcrais da sua vida e do seu caminho na fé, ricamente banhado na diversidade.
Tento, sem o mesmo poder de síntese dele (rsrsrs), retribuir a generosidade na sequência.
E, no final, um (senhor) bônus: os “prefácios” que a leitora-xodó do Blog, Maria, escreveu para o Vol. 1 e para o Vol. 2 da viagem.
Preparados?
Soltem os cintos – joguem fora todas as amarras – e vamos lá!
Religião
Por junior50
Como fui citado, permito-me classificar esta postagem [o Vol. 2] como política, em um sentido amplo, pois a cultura de um povo, somada à sua crença religiosa, é politica. Afinal, desde priscas eras, o controle politico de uma sociedade teve bases religiosas. Até mesmo o conceito de “banco” veio dos sacerdotes que acumulavam sementes (Tigre x Eufrates ), e as distribuíam entre os plantadores, cobrando “juros” sobre essas sementes anteriormente fornecidas.
O vocábulo “religião”, de origem, tem o significado de “religar”. Ou seja: uma ação eminentemente politica, com vistas a estruturar uma comunidade com base em uma crença unitária, com todas as inferências de poder que essa “religação” possa possuir, incluindo um sistema de governo que por ela seja constituído [e/ou legitimado].
Tipo assim:
A configuração da Igreja Católica representa a dimensão de poder do Império Romano, e, em contrapartida, os islâmicos possuem o conceito da “comunidade próxima”, a “Umma”, muito semelhante às comunidades judaicas. Todas elas possuem dimensão territorial e a necessidade de implantar a sua “fé” sobre outras populações.
Portanto, caro Romulus, isto, além de politica, é geopolítica. É muito assunto – até acadêmico – discutir nessa seara. Mas que religião e religiosidade são politicas é um fato.
Já eu, junior50, “macumbeiro” com orgulho, filho de Yansã com Oxalá, felizmente trafeguei por varias confissões religiosas, sempre procurando entende-las, compreende-las.
De base e origem era católico. Mas minha mãe foi comerciante… quando ela saía para vender roupas, eu ficava na casa de uma família judia. Comi muito gelfite fish, acendi muita vela de shabat, acompanhado de comer cholent após cair o sol. Levantei amigos que tenho até hoje em seus casamentos – se vc. for a um casamento judaico, que o noivo seja magro! – e também acompanhei recitações do kaddish quando amigos morreram. E óbvio: namorei uma Deborah. Fui também várias vezes com um amigo, o Israel, a festas na Hebraica. Assim como fui a jantares no Monte Líbano. [Os dois] clubes de São Paulo… o problema é que a comida do Sírio era bem melhor.
E por destino – ele existe, maktub – minha avó paterna era muçulmana de origem, mas “virou” católica espanhola e idosa, tipo Escrivá. Como a “língua paga e cobra”, uma sobrinha minha, morando na Alemanha (Rheinfelden, próximo a Romulus, pois é fronteira Suíça, próximo a Basel), virou islâmica. Pior ainda: “sufi “. Aprendeu árabe para ler o Corão no original, e, óbvio, veio ao Brasil e apareceu em Guarulhos de “hijab” completo, todo preto, pois era casada. Além disso, claro, como tenho amigos de negócios muçulmanos, o Ayub “Carlos”, não tive a menor dúvida em leva-la, para suas orações de sexta-feira, à Mesquita do Brasil (é de 1922 ). E, é claro, participei do culto normalmente, pois, como qualquer casa de oração, cobranças não devem existir. Como qualquer terreiro, igreja, sinagoga, templo… todas elas estão abertas. E proselitismo é politica.
Entender o outro – ele, suas crenças, sua cultura, suas práticas, sua concepção de sociedade – é política. Vai além desta realidade. É compreende-los. É aceitar as diferenças. Para mim é matemático: equacionar as diferenças, em um sentido comum, harmônico, é “zera-las”.
*
Canto – abafado – das três raças: quem tem medo de índia brava e nega maluca?
Por Romulus
Caro junior50,
Citado? Apenas?! Você co-escreveu o post, ora. E agora, generoso de novo, dá mais uma aula aqui. Tento, então, retribuir:
*
(i) CatolicismoS
Fui, também, criado no catolicismo. Continuo católico – que de tempos em tempos vai comungar aqui na missa, mesmo sem quase entender palavra (de alemão). E rezo toda noite, como faço desde menino. Além de rezas “extraordinárias” durante o dia, quando o bicho pega.
E a missa em alemão, Jesus?
Levo uma Bíblia em inglês e vou “acompanhando” o serviço pelos números dos versículos citados. Acabo, assim, entendendo a “onda” daquela missa em particular e do sermão.
O mais interessante?
Minha cidade é majoritariamente luterana – está a uma hora de Basel e da fronteira com a sua sobrinha de “hijab”, junior50. Há, aqui, uma “missão” católica romana, majoritariamente para os imigrantes latinos, mas não há igreja. Dessa forma, há lá um grupo de oração, mas não há nem paróquia nem missa.
E onde que eu vou?
Para uma igreja vétero-católica (“old Catholic”). Fruto de um dos últimos cismas da Igreja, esse de 1870. Não aceitaram os frutos do Concílio Vaticano I, como a infalibilidade papal.
Ao longo do tempo, as doutrinas se separaram ainda mais. Não muito, mas em partes, para mim, essenciais. Veja bem… de “old” os vétero-católicos não têm nada:
– Padres se casam e têm famílias.
– Ordenam-se mulheres. Muitas vezes a “minha” missa é oficiada por uma “padra”, com quem comungo com muito gosto.
– Ordenam-se gays e celebram-se casamentos homoafetivos. Outras vezes, quando não comunguei com a “padra”, comunguei com um padre gay, com brinquinho e tudo. Há, sim, um padre “homem-branco-heterossexual” na paróquia, mas, pelo horário, foi aquele com quem menos comunguei, vejam vocês.
O mais legal?
Ver a igreja cheia de velhinhas “carolas” que não veem nada de mais – nem na “padra” nem no “padre gay de brinquinho”. Pelo contrário: mantêm, no mesmo quarteirão, um centro comunitário para onde convidam a todos depois da missa de domingo para um café da manhã. Aproximam, assim, toda a comunidade.
– Não condenam nem a contracepção nem a eutanásia.
Outros pontos interessantes:
– No seu aspecto mais “old”, a hóstia, antes de ser dada pelo padre, é molhada no vinho, como se fazia antigamente na Igreja romana.
– A Igreja está em comunhão plena com os Anglicanos. Assim, diversas vezes (que sorte!) a missa foi oficiada em inglês por um padre anglicano que visitava a cidade.
Não preciso dizer que concordo com todas as “inovações” dos “velhos” católicos, né?
Meu pensamento progressista não estava representado pela alta hierarquia romana nem sob João Paulo II nem sob Bento XVI. Definia-me, então, como um “católico crítico”.
Felizmente, pude deixar (um pouco) o adjetivo “crítico” de lado desde que o Papa Francisco chegou. Tenho esperanças, embora saiba ser impossível para apenas um homem levar a Igreja romana ao mesmo destino dos vetero-católicos.
Mas saibam: reza minha não vai faltar!
*
(ii) Shalom aleichem
Também cresci em grande parte dentro de uma casa judia. Só não comia gefilte fish porque a “minha” família judia era Sefaradi e não Ashkenazi, vindos do Marrocos e (quem sabe o quanto) antes da Península Ibérica. Em seu lugar comia tabule, lentilha, charuto de folhas de vinha, kafta, humms, pão árabe, etc.
Tudo isso, evidentemente, antes de a yoga e a preocupação com o planeta me levarem para o vegetarianismo.
E quem era essa família judia?
A família das minhas únicas primas, fruto de um casamento misto. Foram criadas no judaísmo, educadas em escolas judaicas e são membros ativos da comunidade no Rio. Moraram as duas em Israel por alguns anos e falam hebraico fluentemente. Têm inclusive primos, pelo outro lado, que lá vivem.
Também fui bastante ao Hebraica carioca! Mas não ao “Monte Líbano”, na Lagoa. A família é sionista light. Logo, pelo bem da harmonia familiar, nada de discutir o conflito israelo-palestino na mesa de jantar. Depois de casar com descendente de sírios então, nem pensar!
Mas a interdição não parou por aí:
Desde 2014, nada de discutir política brasileira tampouco. Sou, junto à mãe brizolista agora casada com um cubano, a única ovelha vermelha da família. Para “piorar”, a prima mais velha casou com um operador do mercado financeiro.
As ovelhas vermelhas estão sitiadas.
Política é assunto banido – com ditame solene e tudo – do grupo de Whatsapp da família. E não poucas vezes meus artigos aqui geraram mal-estar na família.
Isso para além dos clamores do meu pai, tucano de raiz. Apelava para tentar proteger o filho de (mais) retaliações, pedindo (acho que já desistiu…) para que não mais escrevesse “sobre política”.
O problema era a política? Ou será que era apenas para eu parar de escrever com “um certo posicionamento” político?
– Bom, papai… essa semana atendi ao seu pedido. Nada de política brasileira.
Nada de política…
😉
*
(iii) O “Batuque” também se fez ouvir lá em casa
As religiões de matriz africana não me são de todo estranhas, embora sempre fosse um assunto perdido entre o tabu e o orgulho discreto.
“Tabu” e “orgulho discreto”…
Parece a descrição de um “bastardo”, não?
Bastardo ou não, o tratamento dado ao assunto era algo deliberadamente esquizofrênico e paradoxal, com narrativa cuidadosamente incompleta.
A historia é longuíssima e talvez um dia escreva aqui o restante porque é muito interessante – daria roteiro de filme! Envolve, na origem, até uma estrela da Rádio Nacional, na era do rádio.
Mas, resumindo a parte final, a minha avó, mãe da minha mãe, era “médium” (alguém que entende já me repreendeu pelo uso equivocado do termo). E foi forçada pelo meu avô, inicialmente contra a sua vontade, que rejeitava esse mundo, a ir trabalhar em um “centro” (a mesma pessoa que entende também já me repreendeu pelo uso equivocado desse outro termo). Isso porque outro “médium” (sic) disse que enquanto ela não trabalhasse o dom, a vida da família continuaria tendo os problemas que eles então viviam.
Disse-lhes o “médium”:
– Os Orixás, irados, estão punindo – a ela e a família – pelo desprezo com que o dom que lhe deram foi tratado.
Quem quer provocar a ira dos Orixás?
Bate na madeira três vezes!
A minha avó acabou se tornando uma das “médiuns” (sic) principais desse terreiro. Aliás, não sendo “médium”, qual seria o termo para ela se havia o pai de santo do lugar? “Cavalo”? “Égua”?
“Trabalhou” lá por anos. Tomou gosto…
Ora, é lógico que tomou gosto: foi a única realização, fora do lar, da dona de casa. Da mãe de três filhas de sangue e de várias adotivas. Ela que foi, ademais, mãe e avó muito cedo: 16 (da minha tia) e 46 anos (de mim!), respectivamente.
Meu pai contou-me certa vez que ela, morena de cabelos fartos negros,* ficava linda “vestida de baiana”. Sim, porque ela lá com seus 33, 34 anos, tinha sua beleza notada até mesmo pelo rapazote de uns 16, então (apenas) colega de classe da sua filha do meio, e que, por aquela época, começava a frequentar a casa. Casa essa da qual terminaria por retirar a tal filha. Mas não sem devolver, mais tarde, netos em troca.
Sim, netos… inclusive este aqui que vos escreve.
*
(iv) Quem tem medo de índia brava? E de nega maluca?
*Sim, “cabelos fartos negros” de uma bela morena. Parte da morenice, segundo a tradição familiar, seria devida a uma índia, “caçada no laço” por um antepassado, (tetra?) avô fazendeiro colonizador do Norte do país. Ou seja, tenho no DNA (ao menos) 1/16 do genocídio e do estupro do Brasil pré-colombiano. E que, subjugado, raptado e violado, terminou por se esconder (ou seria “ser escondido”?) ali no meio dos frutos daquela violação. Calado dentro das cadeias do DNA.
Quantas outras índias como essa – e também negras – formaram o nosso Brasil?
Incontáveis, é certo.
Que a sua herança – delas arrancada à força – ao menos não seja “esquecida” debaixo de um “tapete branco”, prontamente dado – ou seria imposto? – pela Casa Grande àqueles milhões que ficaram no meio do caminho, entre ela e a Senzala.
Assim, digo: não perpetuemos a espoliação ad eternum. Se lhes tiraram o futuro, não deixemos que lhes tirem, além disso, a memória… o passado.
Certo?
Voltando ao título da seção:
– Por que tanto medo das índias bravas e das “negas malucas”?
– Esse “medo”… ele é espontâneo ou nos é ensinado?
– Se ensinado, por quê?
– Hein?
De outros lados me vem a herança “bonita”, a herança que é “de se mostrar”: a europeia. Aquela, inclusive, que me deu o passaporte europeu e o visto aqui na Suíça.
Do outro, fora o episódio da índia laçada, não sei nada.
E como ficou o rio em que esses dois afluentes – o “legítimo” e o “bastardo” – desaguaram?
Bem, protegido pelo ventre materno, nasci com os cabelos fartos e negros da avó.
Depois, o cabelo preto caiu e no seu lugar nasceu um que foi ficando cada vez mais alourado.
Alourado? Por que será? Terá sido a influência ambiental – agora já fora da barriga da mãe – da sociedade brasileira?
Será que, na sua fixação pelo branqueamento, conseguiu ligar os genes “certos” e desligar os “errados” no menino?
O certo é que a disputa terminou num empate: cabelo marrom. Ou melhor, castanho.
Mas a pele continuou clareando, clareando… até fazer com que eu virasse, involuntariamente, ponto de referência:
– Tá procurando o Carlinhos? Tá ali… do lado daquele menino branquinho.
Sim… tão branquinho ficou o menino que não raro os suíços dizem que “não pareço brasileiro”. Ao que – como desperdiçar a oportunidade? – respondo com uma pergunta:
– O que é “parecer brasileiro”?
Se falo com latinos ou ibéricos, saco do bolso logo o (ex) casal: Pelé, “rei do futebol”, e Xuxa, “rainha dos baixinhos”.
Já para os demais, sai Xuxa e entra outra rainha, a das passarelas: Gisele Bündchen.
Repito:
– O que é “parecer brasileiro”?
*
(v) Chega o amor, mas traz na bagagem a censura do macho alfa
Quando saiu a lei do divorcio, em 1979, minha avó deve ter sido a sua primeira usuária. Separou-se do meu avô, num casamento em que havia respeito, mas nunca houve amor.
Separou-se para casar com a paixão da sua juventude. Era um tio, irmão do próprio pai, apenas 10 anos mais velho que ela. Acabou ficando mais para primo do que para tio na convivência da juventude. Reencontrou-o décadas depois, quando houve uma morte na família e todos os herdeiros foram reunidos para dividir a herança.
Esse tio-marido não gostava desse lado religioso afro-brasileiro e tirou-a do terreiro imediatamente. Foi isso? Ou esse foi o discurso para negar a ela a existência fora da casa? Para negar-lhe aquele protagonismo? Para não mais dividir a sua atenção e o seu tempo?
Seja o que fosse, tio-marido impôs a sua vontade. E o tema virou tabu. Na vida inteira ela me falou sobre isso apenas uma vez, com só 2 ou 3 frases. Faladas à meia voz, quando o tio-marido e os meus pais não estavam.
E, mesmo nessas pequenas frases, faladas ali depois de um almoço, na mesa da sala ocupada apenas pela senhora e pelo menino, ficou claro o orgulho que ela tinha daquela sua posição naquele terreiro e daquele capítulo da sua vida. Falava com um olhar perdido… sorriso de canto de boca. Sobressaía na sua linguagem um carinho, traído pelo sorriso cúmplice com que falava, muito por alto, da entidade que recebia. Entidade essa que “favores” e dons dava às pessoas, inclusive da família. Sim, fazia favores. Mas sempre de um jeito torto, meio gauche. Porque “era do bem”, mas, ainda assim, um “malandro”.
Exemplo?
Minha tia, ainda estudante, queixou-se à entidade de que estava “dura”. Ora, falta de dinheiro? A entidade prontamente resolveu o problema: fê-la encontrar, dias depois, uma carteira cheia de dinheiro lá na faculdade, na Ilha do Fundão (UFRJ).
Novamente: “do bem” mas gauche.
Gauche?
Ou seria apenas direto?
Afinal, a geometria ensina que a menor distância entre dois pontos é uma linha reta. É ou não é?
– Estás dura? Toma! Aí está o dinheiro de que precisas na tua mão, moça.
Ou seja, para resolver o problema traçou uma linha reta.
Bem… talvez não “reta”, mas certamente expressa!
E, como malandro que era, deliberadamente ignorou na sua peculiar geometria todos os círculos, voltas e entraves que as regras da sociedade impõem. Coisas para “zé manés”, certamente. Malandro que é malandro não conhece nada disso: vale a lei do menor esforço, ora não.
E sim: havia bastante dinheiro recheando aquela carteira. Mas lá, “infelizmente”, também estavam os documentos do descuidado que a “perdera”. Minha tia, “ingrata”, não conseguiu aceitar o favor do malandro. Entregou tudo – carteira, documentos e… dinheiro – na secretaria da faculdade.
Nada malandra a tia.
Tsc, tsc, tsc.
*
(vi) Um certo armário velho mal fechado
Toda essa realidade paralela nunca me foi falada de uma maneira aberta, nem ali na casa da matriarca nem na minha própria casa. Era sempre meio tabu. Meio segredo de família.
Mas tudo indica foi bastante importante.
Minha avó nunca se desfez das imagens e das guias, que ficavam num armário na sua grande casa. Oficialmente, “não encontrou tempo ou meios para dar a elas o destino adequado segundo a doutrina”. É, coitada: tão atarefada, não encontrou uma oportunidade nos 37 anos que se seguiram (!)
Menino, eu morria de medo de olhar praquele armário! Nunca o abri. Só olhava – de lado! – quando a porta, por acaso, ficava mal fechada.
Era um armário bem velho. Aliás bastante adequado: velho também era aquele capítulo da sua vida e velha – ancestral – também era aquela religião “proibida”. A tal porta “que ficava meio aberta meio fechada” também refletia muito bem as esquizofrenias e os paradoxos, perdidos em algum lugar entre o orgulho cúmplice e o tabu.
*
(vii) Só no Brasil: pai Davi Cohen de Oxalá
Foi nesse terreiro, por exemplo, que o tal tio judeu conheceu a minha tia. É muito comum os judeus buscarem terreiros de cultos afro-brasileiros. Ouvi isso não apenas na anedota familiar, mas em menção em uma disciplina obrigatória da PUC-Rio para todas as faculdades, incluindo a minha Economia*: “O homem e o fenômeno religioso”. Parece que o Deus do Velho Testamento é distante e abstrato demais (além de rigoroso e duro?). Eles buscam complementar sua vida religiosa com a maior proximidade proporcionada pelos cultos afro.
O suprassumo do sincretismo brasileiro?
O irmão mais novo desse tio, sem deixar em qualquer momento de ser judeu, social ou religiosamente, tornou-se, ele próprio, pai de santo. Sim: pai de santo… judeu… na aristocrática Ipanema!
Onde mais essa “avacalhação” senão no Brasil?
*
*PUC-Rio? Eu? Cursando Economia no templo do neoliberalismo financista…
“Templo”?
Sim, “templo”, ora. Onde “mercado” é deus, “laissez-faire” é dogma e “moeda” é hóstia.
Como o culto afro para a minha avó, capítulo antigo e encerrado na minha vida. Entende, junior50, o porquê daquela auto-definição da deputada suíça, que eu usava como assinatura aqui no GGN? A qual você, inclusive, já anotou para fazer troça deste crítico do neoliberalismo aqui?
Para os demais, segue a tal definição:
“Quando perguntei, uma deputada suíça se definiu em um jantar como ‘uma esquerdista que sabe fazer conta’. Poucas palavras que dizem bastante coisa. Adotei para mim também”.
A deputada, física de formação, sabe mesmo fazer conta. E eu também. Conheço os limites da realidade. Mas, como sabemos, as minhas contas não casam com as suas, junior50. Isso porque as premissas de que partimos – as identidades das nossas equações refletindo a sociedade – são irremediavelmente diferentes.
*
(viii) Mas voltando ao colo da avó…
Essa avó, dividida entre o orgulho e o tabu, está hoje lentamente descendo a ladeira. Sua cabecinha, de uma hora para a outra, saiu da (nossa) realidade, com delírios mil. No inicio supunha-se, inclusive, que os delírios eram “visões”. Ela mesma totalmente convencida disso, como me falou em visita ao Brasil. Mas depois a coisa se acelerou e ela passou a viver a cada hora do dia em uma década diferente da sua vida. Ora falava com a velha madrinha que a criou, ora falava com a minha mãe e as irmãs ainda meninas, ora chamava o tio-marido falecido do quarto para a sala.
Fui o primeiro neto dela. O único varão. Sempre fomos muito apegados. Quantas férias na sua grande casa? Férias das quais eu, menino então mirrado, voltava com as coxas roçando uma na outra ao andar. Culpa da sua mão cheia para cozinhar.
– Perdoem-me Yoga, vegetarianismo e ecologia: vovó, não há nem nunca haverá feijoada nem bife acebolado como o seu. Nem outro como o seu cuscuz e os seus pudins, de leite e de pão dormido.
Esses vinham de sobremesa. E, no Natal, as inesquecíveis rabanadas que seguiam o peru. Que mané panetone Bauducco o quê! No nosso Natal reinava a tradição das rabanadas portuguesas, ora.
E digo com orgulho:
– Já rodei Portugal de cima a baixo. Pode estufar o peito, vovó: não há, na “matriz”, rabanada nem igual nem melhor que a sua. Nada chega nem perto!
*
Confissões
Em criança, quando queria falsificar um choro com lágrimas (de verdade), pensava na morte dela.
Algo tão “distante”, tão “absurdo”, que não era (tanto) pecado usar como artifício para fazer manha.
Sim… era então distante e absurdo.
O tempo passa.
*
(ix) E como fechar este post? Com arte, é claro!
(a) O drama
Como já disse, havia um “armário mal fechado” lá na minha casa. Mas quem sabe quantos outros armários menos ou mais bem fechados haverá em outras?
De um desses “armários” nos foi dado endereço certo: o da maior atriz brasileira. No documentário “Jogo de Cena”, de Eduardo Coutinho, Fernanda Torres abre uma frestinha daquela porta mal fechada. Conta da sua “tia Aurinha”, irmã da sua mãe, Fernanda Motenegro.
Sim, tia Aurinha: nada menos do que uma mãe de santo!
Seu terreiro, onde, segundo Fernanda Torres, “ficava reinando, vestida de branco, sob o som dos pontos de Iansã”, era em Tinguá, na Baixada Fluminense. Distante, pois, concreta – mas também figurativamente – da casa bacana, na aristocrática Zona Sul do Rio, da irmã, do cunhado e da sobrinha – todos artistas consagrados, famosos.
Distante, mas nem tanto: de tempos em tempos lá vinha a tia distribuindo “umas sementes”, “umas coisas”, entre os parentes que ficavam “do lado de cá”. Sem muito conversar sobre aquilo, ficavam todos na certeza, mal informada – ignorância é benção? – de que, lá de longe, a tia Aurinha velava também por eles no terreiro.
Não deixem de assistir ao belíssimo depoimento de Fernanda Torres, do min 30 ao 34 do documentário. Nele, como faço aqui, ela levanta um pouquinho do “tapete branco” que escondia, até ali, uma mancha “escurinha”, “morena”, em casa.
Arre, tapete branco danado!
Vai tapar mancha lá das tuas negas!
Digo, das tuas brancas!
<<junior50>>, faço questão de colocar o link para o documentário do alto do meu preconceito de esquerdista que, sabendo fazer conta ou não, supõe que o “homem mau do mercado” não assistiu a esse belo documentário do (muito) engajado Eduardo Coutinho.
Ah, que falta Coutinho faz…
*
(b) A comédia
Como o meu jeito gauche me faz falar de coisa séria com leveza, coloco outro link: o impagável encontro entre Dercy Gonçalves e uma Pombagira mal humorada, contado a Jô Soares.
*
(c) O “canto das três raças”
E agora música. Tem jeito mais sintético para terminar este post do que:
– (1) um samba;
– (2) louvando as três (primeiras) raças que formaram o Brasil;
– (3) cantado por Clara Nunes, belíssima morena (ou será “mulata clara”?) lá das minas de ouro do meio do Brasil… do meio das Minas Gerais;
– (4) cantora popular que ousava gravar pontos de macumba?
Impossível!
– Vai, Clara! Arrasa! Saravá!
Aliás:
Amem / Saravá / Namastê / Shalom / Salam / Evoé!
*
(x) (Senhor) Bônus: os “prefácios” de Maria
Realmente a generosidade do junior50 deve ter me contaminado. Como mais explicar a falta de egoísmo que se segue?
Divido, com todos vocês, os “prefácios” que a minha leitora-xodó, a Maria (olha ela aqui, aqui e ainda aqui), fez ao ler os meus dois posts desta semana.
Spoiler: acho que meu pai tucano não vai gostar muito de ela retirar o véu que cobria meus posts “não políticos”. Rs
(i) Prefácio de “Vol. 1: Golpe, dê licença:
Santería, Candomblé e Calypso pedem passagem”
Santería, Candomblé e Calypso pedem passagem”
Eis um tema incomum para o brilhante comentarista político que tenho frequentemente compartilhado aqui com meus caros amigos. Incomum, porém não menos político. Apenas uma mudança de foco, e ela é essencial.
Atordoados com os desastres do golpe, facilmente esquecemos que política não é apenas um embate entre interesses do mercado e direitos a serem eliminados a qualquer custo. Nem é só também instituições de governo que se desmantelam entre as mãos de verdadeiros facínoras. Mais do que isso, política é também a construção de um projeto de destino de um país e uma nação. Contando com a participação de seu povo, ele será democrático e inclusivo se for dada voz e vez a esse povo. Estamos nos antípodas daquilo que o golpe tenta nos empurrar goela abaixo.
Eis a razão do foco incomum. Virando as costas a golpe, economia e grande política, trata-se de pensar o substrato que faz de nós povo e nação. Pensar heranças do passado que nos cabe apropriar no presente como patrimônio. É nesse campo da cultura e da história que um projeto político se enraíza em corações e mentes é aí que se constrói sua hegemonia. Nisso, perdemos de goleada.
Daí por que mudar de foco, num post falsamente “não político”. Haverá algo mais político que nosso legado de mais de três séculos de escravidão? Esse o substrato que partilhamos com as Américas, uma história comum de opressão e resistência que nos negamos a encarar. Raízes profundas da hipocrisia e da quase esquizofrenia em que não nos reconhecemos como povo e nação. Origem do preconceito, discriminação, violência que nos impede de ver o Brasil como um país de todos nós.
(ii) Prefácio de “Vol. 2: ‘Traga sim o amado em 7 dias: mas ninguém pode saber, Ok?’”
Não deixem de ler, logo abaixo. Romulus continua sua exploração demolidora das camadas de hipocrisia que atravessam de alto a baixo nossa sociedade, nas dobras de ambivalência de uma cultura que recusa reconhecer a si mesma. E quanto mais as reconhecemos sem admitir, na familiaridade do cotidiano, como disfarce que mal chega para tapar o sol com a peneira, mais elas servem, por outro lado, para dar vida às expressões de medo e recusa que atendem pelo nome de preconceito, discriminação, falso moralismo e seu variado cortejo de opressão e violência. É no plano político que as consequências dessa lógica perversa se fazem sentir com mais veemência. São elas que nos impedem de construir a hegemonia, no plano da cultura, de valores e visão de mundo, que nos permitisse construir uma nação capaz de assumir em suas mãos o próprio destino.
O interesse dessa análise “de segundo grau”, que retoma o tema de um post anterior, é que Romulus como que lança uma pedra num lago, para depois recolher – e incorporar – as sucessivas ondas de sua repercussão. Os comentários de leitores que passam a integrar o novo texto nos permitem ver como se ampliam as “camadas de significado” socialmente compartilhados, como nos ensina Geertz, enriquecendo e trazendo novas nuances de interpretação de um texto que não está fechado numa publicação, porque vai sendo escrito na própria vida social. No caso deste post, escrito por leitores os mais inesperados, como alguns dos mais sérios e assíduos comentadores do seríssimo GGN do Nassif…
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(iii) Prefácio de “Vol. 3: Quem tem medo de índia brava e nega maluca?”
Romulus mais uma vez compartilha conosco um texto saboroso, o terceiro capítulo do seu inventário da hipocrisia da sociedade brasileira, mas desta vez com alguns aspectos positivos das nossas misturas religiosas e de posições progressistas da igreja na Europa.
A dimensão política das religiões enquanto visão de mundo é enfatizada pelas observações de um dos sérios comentadores do GGN do Nassif e da minha introdução dos seus dois textos anteriores, que ele teve a gentileza de reproduzir no artigo.
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Achou meu estilo “esquisito”? “Caótico”?
– Pois você não está só! Clique na imagem e chore suas mágoas:
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(i) Acompanhe-me no Facebook:
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(ii) No Twitter:
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(iv) E também no GGN, onde os posts são republicados:
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Quando perguntei, uma deputada suíça se definiu em um jantar como “uma esquerdista que sabe fazer conta”. Poucas palavras que dizem bastante coisa. Adotei para mim também.
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