“E Bolsonaro ganhou”: como João Paulo II – e Ratzinger – pariram Malafaia e Macedo
Por Romulus Maya, para o Duplo Expresso
Publicamos, a seguir, mais uma importante reflexão proposta por um expressonauta. Desta vez, um que assina “Filósofo da Colina”. E que reage à segunda parte do Duplo Expresso da última terça-feira (“nerd”). Nela, a sociólogo Thais Moya discorreu sobre o tema “Evangélicos: o que são, de onde vieram, o que querem e para onde vão nos levar”.
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Por “Filósofo da Colina”
Romulus, quer entender o que aconteceu na chamada “ascensão evangélica” nos últimos 20 anos e como retornar o diálogo de esquerda com evangélicos? Em alguns minutos farei um esboço breve.
Uma das bases do PT, inclusive do ponto de vista ‘genético’, chama-se: teologia da libertação (TL). Não existiria o PT – e nem mesmo o seu programa – sem as famosas comunidades eclesiais de base. Não por acaso FHC define o PT como o maior partido católico-popular do mundo. Em suma, o PT se forma na fusão de um triunvirato de frentes que militavam no final dos anos 70: as Comunidades Eclesiais de Base, o movimento sindical e intelectuais progressistas tanto exilados quanto nas estruturas acadêmicas das universidades.
Três classes aí: o clero, operariado e trabalhadores (como bancários) e a classe média. Sem qualquer destes 3 não haveria PT, por isso temos que tomar cuidado ao demonizar a “classe média intelectual petista”, porque assim se toma uma parte (hoje talvez hegemônica em seu espaço) pelo todo. Mas a intelectualidade universitária teve um papel fundamental (não maior que as outras frentes, mas tão grane quanto) na construção do maior evento fenomênico do PT: Lula.
Durante os últimos 30 anos todos esses três atores – chamemos assim – passaram por profundas transformações. Mas tem um detalhe aí. Enquanto a intelectualidade crescia, se expandia e, mais recentemente se tornava mais transversal (e isso não pode ser ignorado, fortaleceu a esquerda), com a inclusão de camadas outrora proibidas de entrar nas universidades; e os sindicatos passaram a gozar de livre trânsito nos palácios, participando ativamente da construção de políticas públicas, efetivando o aumento real do salário mínimo e garantido a CLT em meio a um Congresso que a isso sempre foi hostil, enquanto isso, a terceira frente, a TL simplesmente “deixou” de existir.
E isso tem um responsável, perdão se ofendo o catolicismo de alguns. Chama-se João Paulo II. Ferrenho anti-comunista, perseguiu com mão de ferro a TL nas estruturas eclesiais, nas curias, nas pastorais, até em sacristias. Ocorre que dentro do cenário político da Igreja, fortalecer a oposição existente então à TL, o bloco tradicionalistas, seria esfarelar o Concílio Vaticano II ou deixá-lo nas mãos da TL.
Qual a solução arrumada por São JPII: impulsionar a chamada Renovação Carismática Católica (RCC). Os tais “padres marcelos”, criando uma igreja alienada, infantilizada, descaracterizada, mas que se apropriou do Concílio Vaticano II blindando-o de qualquer teologia “esquerdista”. Boaventura de Souza Santos não titubeia ao nomear JPII como o responsável, assim, pela emergência da Teologia da Prosperidade (TP) no Brasil. Pois, com o esvaziamento e perseguição da TL, a RCC adotava (como adota) cada vez mais não apenas a estética litúrgica e as oralidades neopentecostais, não apenas seu apego ao midiatismo (o próprio JPII era a mídia em pessoa), mas também e, essencialmente, em seu estofo teológico, de qual todo movimento na Igreja necessita.
O que ocorreu é simples de entender: o trabalho de base do PT era estritamente dependente da articulação intelectual, mas estruturalmente dependente das Comunidades Eclesiais e da TL. Dom Helder, quem não se recorda? Quando bispo no RJ, a maioria esmagadora das paróquias periféricas tinham como párocos sacerdotes determinados em uma missão libertadora castiça, atenta, prática.
Atualmente, a TL encontra-se esfacelada, para não dizer desfigurada. Suas maiores lideranças estão octogenárias e longe das paróquias. Na CNBB, apenas alguns membros das alas mais “light” da TL permanecem em cargos-chave, e mesmo assim sem grande influência. Pense no Rio de Janeiro, com o conservador tradicionalista Dom Orani, um monge trapista cisterciense. Pense em Dom Odilo, que foi lá jogar água benta na política social de Dória e sua ração humana.
A perseguição ocorreu nas paróquias, retirando do paroquiato membros da TL e colocando em seu lugar lideranças ligadas a uma das outras alas da igreja hoje: tradicionalistas ou carismáticos, que mantém união tática contra a TL. Enquanto o padre conservador ficava gastando latim e roquetes de renda em paróquias em favelas e o padre carismático fica lá pulando, cantando e imitando pastor, a TL e seu trabalho de base foi jogado pra escanteio, abrindo caminho para que as igrejas pentecostais passassem a fazê-lo. Claro, a direita viu nisso o seu ‘wet dream’, uma “comunidade eclesial de base” de direita sabendo que os pastores tinham maior interesse pecuniário que ideológico foi fácil subcontratá-los nesse campo.
Não haverá diálogo da esquerda com as periferias “religiosas” sem a reconstrução da Teologia da Libertação. E se você for visitar um seminário você vai chorar mais que as santas “milagrosas” que a RCC e os tradicionalistas adoram apresentar por aí, alienando o povo. Padres TL sempre combateram esse “supersticionismo”, coisa que hoje é feita por pastores.
Nunca imaginei que veria seminaristas xingando um papa, mas Francisco é este papa. É uma esperança, mas é uma novidade de cima pra baixo e por mais hierárquica que seja a Igreja, não é simples recriar um trabalho de base TL na base de “sumoruns” e decretos papais. E, na outra ponta, os poucos padres TL que ainda resistem nas periferias (existem), estão abandonados pela esquerda “anti-religiosa” e esquecidos pelo PT orgânico. Sobrevivem lendo o Frei Betto no Globo e o Leonardo Boff na Folha. E nada mais. A TL era uma imensa estrutura, tinha o clero, as paróquias, o trabalho de base, a articulação com a intelectualidade, editoras (Malafaia é dono de uma das maiores editoras do país), mídia, pessoas da sociedade civil, partidos.
Curiosamente quem tem um bom laboratório no sentido de retomar isso é o Boulos no MTST. Lá ele tem um amplo contingente de pessoas pobres e religiosas que não caem nas mãos de pastores conservadores, é um caso a ser estudado.
Sem retomar a TL, com toda sua estrutura, ganhado de altas paróquias aos noviços dos seminários, suas comunidades eclesiais de base com um amplo diálogo com igrejas neopentecostais progressistas (e que realizam belo trabalho de base) nada será feito.
A vitória de JB foi amplamente comemorada pelos tradicionalistas que fizeram até campanha, e pela RCC, que fingiu neutralidade como sempre, mas comemorou (Alckmin adora comungar nas missas do padre Marcelo, o contratado pela Globo…). Mas também nada será feito se essas comunidades não abrirem a pauta doutrinária social da igreja para questões como LGBT, drogas e inclusive pautas identitárias, pois o próprio Papa expressamente ordena isso. É uma nova simbiose. Um abnegado como o padre Júlio Lancelotti (ainda que já um idoso perto de aposentadoria de sua paróquia) é um dos poucos sacerdotes da arquidiocese de SP quem enxergam isso.
Haddad de uma forma vertical e errônea tentou fazer isso, mas no fundo só conseguiu aliança com um setor minoritário achando que bastava ir lá comungar na missa de um padre TL para ganhar os votos de evangélicos e recriar uma comunidade eclesial que já não existe mais. O trabalho é longo…
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